Crime e castigo
Desde que supostas conversas entre os procuradores da Lava Jato e o ex-juiz Sergio Moro começaram a ser publicadas no site The Intercept e em veículos parceiros do site, comparações com os hackers Julian Assange, Edward Snowden e Chelsea Manning foram ventiladas para tentar legitimar ou dignificar os atos criminosos cometidos no Brasil. A ideia subjacente é a de que, ao roubar mensagens privadas e publicá-las, os envolvidos na ação brasileira estariam seguindo a trilha dos que revelaram dados secretos do governo americano em nome da transparência e do combate ao abuso de autoridade. Se este é o caso, então o destino dos hackers estrangeiros deveria servir de aviso. Após desafiar o sistema de Justiça dos Estados Unidos e da Inglaterra, Assange, Chelsea e Snowden levaram a pior. Os dois primeiros estão presos. Snowden só não teve a mesma sorte porque se exilou na Rússia.
Snowden é, dos três, o que mais se aproximou do americano Glenn Greenwald, o chefe do Intercept que mora no Rio de Janeiro. No final de 2012, ele procurou Greenwald, que escrevia colunas para o jornal The Guardian, em busca de ajuda para divulgar documentos da Agência Nacional de Segurança, NSA na sigla em inglês, do Departamento de Defesa americano e da sede de comunicações do governo britânico, entre outras entidades. Snowden fugiu dos Estados Unidos, passou por Hong Kong e foi parar na Rússia, onde ganhou asilo temporário. Por ter exposto dados sigilosos, ele pegaria, pelo menos, 30 anos de prisão. No início do ano passado, o governo de Vladimir Putin esticou seu asilo por mais alguns anos. Como Snowden já completou cinco anos no país, ele já poderia até solicitar cidadania russa.
Não que esse fosse o seu plano inicial. Em janeiro de 2017, Snowden alimentou a esperança de que o então presidente americano, Barack Obama, em seus últimos dias de mandato, o perdoaria para que ele pudesse retornar aos Estados Unidos. O gesto de misericórdia não aconteceu. Quem Obama perdoou foi Chelsea Manning, que tinha cumprido sete anos de prisão.
Em 2011, então com 29 anos, Chelsea, antes Bradley, foi condenada a 35 anos de cárcere. Ex-analista de inteligência do Exército americano no Iraque, ela foi acusada, entre outras coisas, de ajudar o inimigo por meios indiretos. Ao entregar dados secretos para o site Wikileaks, de Julian Assange, Chelsea permitiu que grupos terroristas, como a Al Qaeda, tivessem acesso ao material. A ex-analista também foi condenada por desobedecer a ordens superiores, modificar e instalar softwares não autorizados nos computadores do governo e driblar sistemas de segurança.
Quanto a Julian Assange, ele foi preso na Inglaterra por ter desrespeitado uma ordem de prisão ao se exilar na embaixada do Equador, em Londres, em 2012. Em fevereiro do ano que vem, a Justiça britânica julgará um pedido de extradição feito pelos Estados Unidos.
A primeira acusação feita pelo Departamento de Justiça americano contra Assange foi a de que ele teria ajudado Chelsea a quebrar uma senha para entrar no sistema de computadores. A lei citada é a que versa sobre fraudes computacionais. Passa longe, portanto, da Primeira Emenda da Constituição americana, o pilar da liberdade de imprensa no país.
Em maio deste ano, uma segunda acusação, mais ampla, foi formulada pelos procuradores federais americanos, desta vez com base na Lei de Espionagem. O processo não anula o primeiro, mas o inclui. Nele, o Departamento de Justiça afirma que o australiano foi muito além da mera publicação de arquivos secretos. Assange teria sido cúmplice de Chelsea Manning ao incitá-la e ajudá-la a obter informações secretas de forma ilegal com o objetivo de prejudicar os Estados Unidos ou favorecer uma nação estrangeira. “Um jornalista não está automaticamente isento da Lei de Espionagem. Se ele tiver pedido para alguém fornecer informações secretas ou ajudado ativamente um hacker a invadir um sistema, então tais atitudes teriam de ser defendidas na Justiça, o que seria mais difícil”, diz Jane Kirtley, professora de ética e comunicação da Universidade de Minnesota, nos Estados Unidos.
A acusação sustenta que Assange e o Wikileaks solicitaram publicamente informações secretas no final de 2009. O site chegou até mesmo a publicar uma lista de “vazamentos mais desejados”. “Manning respondeu ao pedido de Assange ao usar seu acesso como analista de inteligência para buscar documentos secretos”, diz o texto do Departamento de Justiça.
Além disso, Assange também é acusado de ter publicado no Wikileaks nomes de pessoas que forneciam informações para os diplomatas americanos no Iraque e no Afeganistão. Entre eles estavam jornalistas, líderes religiosos, ativistas de direitos humanos e dissidentes políticos. Com a divulgação de seus nomes, eles ficaram sujeitos a prisões arbitrárias e ataques físicos. Se for provado que Assange conspirou para invadir computadores, ele pode pegar até cinco anos de cárcere. Para cada uma das demais dezessete acusações, a pena máxima é de dez anos.
Os vazamentos divulgados pelo Intercept no Brasil aparentemente não entram em questões de segurança nacional, como os casos que afetaram os Estados Unidos e seus colaboradores pelo mundo. Ainda assim, o Código Penal brasileiro inclui previsões para vários delitos que podem ter ocorrido por aqui. “Se os dados foram obtidos ilegalmente e adulterados antes de serem retransmitidos, então podemos ter crimes como falsidade ideológica, falsidade de documento particular, comunicação falsa de crime, calúnia ou associação criminosa”, diz o advogado Dorival Guimarães Pereira Júnior, professor de relações internacionais do Ibmec, em Belo Horizonte. “A intenção de informar o público é essencial a um estado democrático, mas se o material foi obtido de maneira fraudulenta e adulterado, isso poderia complicar a vida dos que se envolveram nessa ação.”
Se a sina de Assange, Snowden e Chelsea são um prenúncio do que pode acontecer com os hackers que roubaram dados de autoridades brasileiras, então há motivos de sobra para eles ficarem bastante preocupados.
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