Divulgação/TSTO ministro Emmanoel Pereira, do TST: ele e o filho já haviam aparecido em outras investigações

Filhotismo explícito

Um áudio inédito obtido por Crusoé lança mais suspeitas sobre a relação entre o ministro Emmanoel Pereira, do Tribunal Superior do Trabalho, e seu filho advogado, já investigado por tráfico de influência
12.07.19

Responsável por uma devassa sem precedentes no mundo político e empresarial, a Operação Lava Jato ainda tem um front inexplorado: os indícios de irregularidades envolvendo autoridades do Judiciário. Recorrentes nas grandes investigações policiais, as suspeitas contra os togados nunca foram investigadas a fundo e, quase sempre, acabam relegadas ao esquecimento. Nos últimos anos, porém, os desdobramentos da maior operação anticorrupção da história têm lançado luz sobre um velho tabu brasiliense: a atuação de filhos de ministros de tribunais superiores nas cortes onde os pais atuam como magistrados. O filhotismo nunca foi seriamente investigado, embora seja, há tempos, motivo de incômodo. Quando era corregedora nacional de Justiça, a ex-ministra Eliana Calmon, conhecida por não ter papas na língua, falava abertamente sobre o tema, embora seus colegas fizessem ouvidos moucos. “É uma realidade, que inclusive já denunciei no STJ. Mas a gente sabe que continua e não tem regra para coibir. É um problema muito sério. Eles (os filhos) vendem a imagem dos ministros. Dizem que têm trânsito na corte e exibem isso a seus clientes”, disse ela em uma das ocasiões. Pouco ou nada mudou.

Compostas essencialmente por indicação política, as cortes máximas da Justiça contam com os mais experientes e renomados nomes do direito nacional e sustentam um profícuo mercado para bancas de advocacia dos mais diversos ramos. Aquelas que contam com os serviços de filhos de ministros, por vezes, sobressaem nesse mercado. Muitos dos filhos, mesmo jovens, e em muitas das vezes bem longe de integrarem a galeria de ases do direito, ostentam um padrão de vida incomum. O sobrenome pesa. E, como mostram indícios coletados pela Lava Jato, atraem interesse de gente que, à custa de muito dinheiro, busca atalhos para ganhar processos nos tribunais sediados na capital. Em pelo menos uma delação premiada sob análise no gabinete da procuradoria-geral da República, Raquel Dodge, há pistas sobre essa prática. No quartel-general da Lava Jato no Rio, há outras mais, entre elas os já conhecidos (e vultosos) pagamentos da Fecomércio para bancas de parentes de ministros.

Agência BrasilAgência BrasilO advogado Erick Pereira: ele recebeu “missões” da JBS
Um áudio inédito obtido por Crusoé traz mais um episódio que pode interessar – e muito – aos investigadores que tentam mapear esse ramo da alta advocacia. Trata-se de um grampo feito pela Polícia Federal em 2014, e esquecido até agora, no celular de Ricardo Saud, então diretor de relações institucionais da J&F, a holding da JBS. No dia 12 de dezembro daquele ano, Saud telefonou para um advogado que atuava para a empresa, Erick Wilson Pereira, para marcar uma reunião. Além dos dois, participariam do encontro o chefe de Saud, Joesley Batista, e mais um executivo da JBS. O que, no começo, parecia uma conversa corriqueira entre advogado e cliente termina com um diálogo em que Saud indica expressamente que desejava contar com o pai do advogado Pereira em uma “missão”. Detalhe: o pai de Pereira é Emmanoel Pereira, ministro do Tribunal Superior do Trabalho (TST) que até hoje tem em seu gabinete processos da JBS — e que, à diferença do filho, não pode aceitar “missões” de empresa nenhuma.

“Bom dia, querido. Prazer falar com você. Deixa eu te falar: queria te chamar pra almoçar. Bom, primeiro é o seguinte: você está aqui em São Paulo, não?”, perguntou Saud. O advogado explica que naquele dia estava na Bahia, mas que poderiam se encontrar na semana seguinte. “Na próxima semana vou praí (sic). Saio de Brasília na quarta e vou na quinta-feira praí (sic). Fico quinta e sexta aí em São Paulo”, responde o advogado. Além da reunião com os outros executivos da JBS, Saud diz que também precisava falar pessoalmente com o advogado sobre outro assunto. Eles, então, combinam de se ver um dia antes em Brasília, onde Pereira mantém seu escritório e onde Saud, como lobista-mor do grupo, passava a maior parte de seu tempo.

“Tá bom, e eu encontro com você quarta lá em Brasília então, né? Estou precisando falar pra você o que que eu fiz aí esta semana”, comenta Saud. “Tá ótimo, você me deu duas missões né? Aquelas duas missões eu cumpro”, responde Erick Pereira. “Tá… Eu vou te dar mais uma que talvez vá precisar do seu pai, vamos ver, mas eu te falo”, completa o executivo, que ouve uma resposta tranquila de Pereira: “Tá ótimo”. Os dois evitam entrar em detalhes sobre as “missões”, se despedem e deixam para retomar a conversa pessoalmente, na semana seguinte. Nos dias posteriores, eles não voltaram a tocar no assunto por telefone. Naquele ano, a JBS figurava como uma das maiores litigantes no TST. Saud estava grampeado porque era alvo de uma investigação da Justiça Eleitoral por suspeita de corrupção eleitoral.

Anos mais tarde, o lobista da JBS relataria em um dos depoimentos do acordo de delação premiada que firmou com a Procuradoria-Geral da República na companhia dos chefes, Joesley entre eles, que o escritório de Erick Pereira foi utilizado pelo grupo em 2014 – justamente em 2014, ano da gravação – para emitir duas notas frias para justificar o repasse de 1,6 milhão de reais para as campanhas do deputado federal Fábio Faria, do PSD, e de seu pai, Robinson Faria, eleito governador do Rio Grande do Norte naquele ano. Ainda segundo Saud, o advogado atuou para as campanhas eleitorais dos dois políticos. De acordo com o delator, o grupo de Joesley havia negociado com os dois políticos potiguares para conseguir, no ano seguinte à eleição, controlar os serviços de saneamento básico do estado, que Robinson havia prometido privatizar. A contrapartida acabou não acontecendo devido às dificuldades da privatização. Talvez essa até fosse uma das duas missões que o lobista delegara a Erick. A terceira missão, aquela em que Saud diz que talvez precisasse da ajuda do pai do advogado e ministro do TST, porém, nunca apareceu nos depoimentos do ex-executivo.

Em junho deste ano, o nome de Erick Pereira voltou a aparecer em uma investigação por suspeita de tráfico de influência e venda de prestígio envolvendo processos no TST. Desta vez, também havia menção ao pai do advogado. Ao analisar os e-mails de Erick no curso de uma investigação sobre um esquema de compra de decisões no Tribunal Regional Eleitoral do Rio Grande do Norte, do qual ele também é suspeito de participar, a Procuradoria da República no estado deparou com anotações salvas no rascunho onde havia referências a processos do TST. Havia ali sinais de que Erick atuaria nessas ações, mas por meio de uma terceira pessoa. Em um dos casos, Erick chegou a elaborar uma minuta de contrato na qual constava que o processo seria tocado por um outro advogado, parceiro dele em várias causas. Essa minuta foi posteriormente encaminhada a um funcionário do escritório de Erick que havia sido assessor de seu pai no TST. Formalmente, nenhum dos três constou nos autos como advogado no processo. Até por isso, o ministro Emmanoel Pereira não se declarou impedido de julgar o caso — e acabou acolhendo o recurso, justamente como queria a cliente de seu filho.

No outro processo do TST que figurava nos rascunhos de Erick, o parceiro dele surge advogado de uma das partes. “Aparentemente, o advogado Erick Pereira pode estar utilizando a sua influência enquanto filho de Ministro do TST para atuar como uma espécie de ‘lobista’, nos bastidores, a fim de influenciar o julgamento de processos perante aquela corte, sem constar como advogado oficialmente habilitado”, aponta a Procuradoria da República no Rio Grande do Norte em uma das peças da investigação que apura se o filho do ministro do TST cometeu os crimes de tráfico de influência e exploração de prestígio. O caso chegou a ser remetido para a procuradora-geral da República, Raquel Dodge, mas ela considerou não haver indícios suficientes de envolvimento do ministro e chegou a aventar a possibilidade de Emmanoel Pereira ser “vítima” do esquema articulado entre os advogados – incluindo seu próprio filho. Com o despacho da PGR, o caso voltou para a primeira instância e, agora, apenas os advogados estão sob investigação.

A apuração no Supremo envolvendo Fabio e Robinson Faria, iniciada a partir da delação da JBS, não foi adiante. Ao depor na Polícia Federal em março do ano passado, Erick Pereira negou ter relação pessoal ou social com os dois políticos e garantiu que não prestou assessoria jurídica para eles em 2014. Indagado pelos policiais sobre os pagamentos recebidos da JBS, ele explicou que seu escritório foi contratado para realizar um “relatório temático” sobre os 1,2 mil processos trabalhistas que a empresa tinha no TST. Ele chegou a anexar aos autos uma planilha com a lista dos processos. Nela, por sinal, há dois processos que tramitavam no gabinete de seu pai, o ministro Emmanoel Pereira — um com decisão favorável à JBS e outro com decisão contrária.

L. Adolfo/Futura PressL. Adolfo/Futura PressSaud, em foto de 2006: o lobista da JBS tinha altos contatos na política e no mundo da Justiça
Emmanoel e Erick Pereira apareceriam no mapa da Lava Jato em mais uma oportunidade. Ao pedir a prisão preventiva dos ex-presidentes da Câmara Eduardo Cunha e Henrique Eduardo Alves, em 2017, como parte dos desdobramentos da operação iniciada em Curitiba, os procuradores em Natal apontaram 118 telefonemas entre os terminais dos dois políticos, de um lado, e números do escritório de Erick, de outro. Os investigadores também anexaram aos autos trocas de mensagens de WhatsApp entre Alves e o então presidente da OAS, Léo Pinheiro, nas quais o ex-deputado faz a ponte entre a empreiteira e o gabinete de Emmanoel Pereira, no TST. Em outra conversa, de junho de 2014, o executivo afirma ao político que vai utilizar Erick Pereira para um caso de interesse da empresa no Tribunal Regional Federal da 5ª Região, que abrange o Rio Grande do Norte. A investigação sobre a relação da dupla com os dois políticos do MDB também não avançou.

Crusoé analisou 33 decisões do ministro Emmanoel Pereira em processos de interesse da JBS. Os despachos foram assinados entre 2013 e 2015. Em 28 dos casos, o magistrado deu decisões contrárias à empresa. As demais foram favoráveis. Duas delas ocorreram em julgamentos realizados em 3 de dezembro de 2014, um dia após o segundo pagamento da JBS para o escritório do filho do ministro. Indagado pela revista sobre o teor de sua conversa com Ricardo Saud, Erick Pereira afirmou, por meio de nota, que houve “grave violação” da comunicação entre cliente e advogado. Sobre sua relação com a JBS, ele disse que o serviço prestado à empresa “não guardou relação específica com nenhum gabinete, mas com a confecção de relatório de análise de vários temas jurídicos na época”. Crusoé também tentou falar com o ministro Emmanoel Pereira, mas ele não retornou os contatos. Por meio de nota, a assessoria de imprensa do TST informou que quase 80% de todos os processos da JBS no gabinete de Emmanoel Pereira foram decididos a favor de trabalhadores. “Os demais foram julgados conforme jurisprudência consolidada pelo TST ou pelo STF”, prossegue o texto. Na última terça-feira, 9, o plenário do Senado aprovou o nome do ministro para ocupar a vaga do TST no Conselho Nacional de Justiça, o CNJ, órgão encarregado de fiscalizar a conduta de juízes de todo o país.

A apuração atualmente em curso no Rio Grande do Norte pode ser uma oportunidade para, finalmente, colocar todos os elementos sobre uma mesma mesa e tentar compreender como se davam as interações de Erick Pereira com empresários e políticos. Se os procuradores concluírem pela necessidade de investigar também o pai dele, o caso deverá ser novamente enviado para a PGR. O áudio em que Ricardo Saud fala a Pereira da missão na qual o ministro do TST talvez pudesse ajudar — e que esta reportagem revela — nunca havia nem sequer chegado ao conhecimento das autoridades que lidavam com o caso. Talvez agora possa ter alguma utilidade.

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