RuyGoiaba

Aqui não tem Chanel

02.08.19

Assim como Talquei ama sua prole, a imprensa brasileira – com quase a mesma intensidade — ama fidalgos. Não na acepção de pessoa nobre, generosa etc., mas no sentido estritamente etimológico: filhos d’algo. Nada explica que alguns deles tenham emprego e espaço nos veículos de comunicação, a não ser o pedigree e as conexões. E mesmo os realmente talentosos se beneficiam dos atalhos que o sobrenome ilustre proporciona.

Eu, por exemplo, gosto de ler as colunas da neta do Hélio Pellegrino e da filha do Paulo Miklos sobre empoderamento feminino. É bom para que eu me mantenha sempre consciente do meu lugar de fala como macho branco cis-hétero mansplainer gaslighter, que é basicamente nenhum: tenho de manter a boca fechada, a não ser para pedir desculpas pelos milênios da opressão exercida por todas as categorias que eu assinalo no Bingo do Opressor.

O caso é que, alguns dias atrás, a neta e a filha dos dois prominent men chocharam Tabata Amaral, deputada nascida e criada na periferia de São Paulo, mas que infelizmente se vendeu ao capitalismo financeiro e abandonou as causas verdadeiramente progressistas, como ser contrária à reforma da Previdência. É uma operação semelhante à que o petismo fez com Marina Silva em 2014, transformando a ex-empregada doméstica e ex-seringueira em “candidata do Itaú” e a branca com modos de patroa mandona — Dilmãe — em legítima representante das aspirações do povo brasileiro.

Geralmente, o que permite que uma senhora bem-nascida, que abre a casa rústica-chique no sul da Bahia para o fotógrafo da Casa Vogue enquanto “prepara um clericot na cozinha integrada ao living principal”, dê lições de progressismo a uma jovem mulher egressa da periferia é uma coisa só: a devoção a São Lula, que purga todos os pecados de classe. O Cordeiro de Deus, aquele que tirava o pecado do mundo, já era: é o hóspede da carceragem da Polícia Federal em Curitiba que lava mais branco a culpa dos ricos e transforma até Kátia Abreu, ex-rainha da motosserra, em amigona da galera.

(Abro um parêntese para observar que, no Brasil, já existe uma tradição de artistas que dedicam toda a sua obra à expiação de sua culpa burguesa, dos quais Petra Costa, de Democracia em Vertigem, é só o exemplo mais recente. “Somos milionários, mas vejam, estamos do lado certo da história: somos gente também. E minha família pode financiar seu partido, wink-wink”.)

Por outro lado, Tabata, Marina e muitos outros que não assinam embaixo da lista de causas certas – uma por uma — podem se preparar para ter suas carteirinhas de pobre (ou de ex-pobre) e de minoria (mulher, negra, LGBT) cassadas. Perdem o lugar de fala no ato. Passam a ser não pessoas de quem simplesmente se discorda, mas capitães do mato, aliados dos opressores, Judas Iscariotes reloaded; em suma, gente indigna de pôr os pés no apê de Paula Lavigne.

Dirão vocês que é inveja, ressentimento de classe. E estarão certos. Mas também é mais do que isso: cansei de ouvir discurso “progressista” condescendente de gente riquinha que não aguentaria meio minuto nas minas em que meu avô trabalhava no século passado. Aqui não tem Chanel (nunca vai ter, diferente do que cantavam os clubbers otimistas do Que Fim Levou Robin?), mas bem que o Iluminismo e a Revolução Francesa poderiam incluir o Brasil na sua turnê mundial. Até o que sobrou dos Beatles veio para cá e nada de eles aparecerem.

Enquanto isso não acontece, minha sugestão a Tabata e a todos que não têm pedigree é nascer de novo. Quem sabe na próxima encarnação a gente acerta.

***

A GOIABICE DA SEMANA

Já chamei Jair Bolsonaro de tiozão do churrasco, mas as barbaridades ditas pelo presidente ao longo de toda a semana que passou comprovam: na verdade, ele é uma caixa de comentários de blog que os brasileiros colocaram no Palácio do Planalto. Pensando bem, é ainda pior que isso, porque a caixa de comentários você pode ignorar – inclusive eu ignoro os seus aqui, a não ser quando vocês dizem que me amam –, mas o bestialógico do capitão é esfregado na nossa cara “diuturna e noturnamente”, como diria aquela outra besta lá.

Invertendo o sinal ideológico, o atual governo é um pouco como, no Teatro Oficina, ficar na fila do gargarejo — que ali pode ser perigosamente literal.

Karime Xavier/FolhapressKarime Xavier/FolhapressZé Sexo Martinez Corrêa, o inventor de um novo conceito em fila do gargarejo

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