CrusoéRestaurante

Onde o ‘rachid’ e a milícia se encontram

Um restaurante liga uma ex-funcionária do gabinete de Flávio Bolsonaro aos negócios de uma das milícias mais poderosas (e perigosas) do Rio
16.08.19

A investigação do caso Fabrício Queiroz, o ex-assessor de Flávio Bolsonaro, está parada por decisão do Supremo Tribunal Federal desde julho, mas se for retomada poderá cruzar com o caminho das milícias. O Ministério Público do Rio abriu inquérito para investigar se Queiroz embolsava parte dos salários de funcionários da Assembleia Legislativa e para repassar ao chefe. Crusoé obteve documentos que acrescentam um novo elemento à história. Pela primeira vez surge uma ligação entre o “rachid” atribuído a Queiroz com a milícia de Rio das Pedras, uma das mais violentas do Rio de Janeiro. A organização criminosa opera na Zona Oeste da capital carioca e é responsável por homicídios, extorsão de moradores e venda de imóveis, alguns tão mal construídos que levam a tragédias como a que resultou na morte de 24 pessoas, em abril passado.

O elo está em um negócio aberto por uma ex-funcionária do gabinete de Flávio que chegou a ser investigada pelo MP no inquérito do “rachid”. Raimunda Veras é mãe do suspeito de chefiar a milícia, o ex-capitão da PM Adriano Magalhães da Nóbrega. Logo após deixar o cargo na Assembleia Legislativa, em novembro de 2018, ela abriu na Junta Comercial um restaurante em Rio Comprido, bairro da Zona Norte da cidade. O estabelecimento tem o mesmo endereço de outro que, desde 2015, está em nome de dois acusados de serem o tesoureiro e o gerente da milícia de Rio das Pedras.

Nos papéis da Junta e da Receita Federal, o negócio de Raimunda e o dos milicianos são duas empresas distintas, com registros diferentes no CNPJ, que podem movimentar dinheiro em contas bancárias próprias. Na realidade, porém, há apenas um restaurante no local. É uma ponta a ser averiguada pelos investigadores se um dia a apuração for reaberta: segundo a Promotoria de Investigação Penal, a milícia costuma lavar dinheiro em estabelecimentos comerciais de comida e bebidas abertos em nome de laranjas ou até mesmo de membros da quadrilha.

Raimunda trabalhou no gabinete de Flávio de 2016 a 2018 com salário de 6,4 mil reais. O então deputado também empregou a mulher do capitão Adriano. Quando as nomeações vieram a público, em janeiro passado, Flávio disse que ambas foram contratadas a pedido de Queiroz. O ex-assessor, que também é ex-policial, confirmou a versão e disse que apenas ajudou a família de Adriano, seu antigo colega de PM, que passava por dificuldades financeiras. Raimunda transferiu para a conta bancária de Queiroz 4,6 mil reais, segundo relatório do Conselho de Controle de Atividades de Financeiras, o Coaf. A transação é listada entre as suspeitas de “rachid”: a mãe de Adriano Magalhães teria recebido salário e devolvido parte do valor a Queiroz, assim como os demais funcionários.

DivulgaçãoDivulgaçãoCapitão Adriano, acusado de chefiar o Escritório do Crime: a mãe dele é  suspeita de participar de “rachid” no gabinete de Flávio
Os documentos mostram que Raimunda não vivia exatamente no aperto, como disse Queiroz ao justificar a nomeação. Em 14 de dezembro, um mês após ser exonerada, a ex-funcionária abriu o restaurante (que também é pizzaria) com capital social de 50 mil reais. O documento da Junta Comercial mostra que Raimunda aportou 25 mil reais no negócio e a sua sócia desembolsou a outra parte.

A investigação do MP sobre o “rachid” poderá chegar à origem de dinheiro. A Justiça do Rio quebrou o sigilo bancário de vários ex-funcionários da Assembleia, incluindo a própria Raimunda. Isso, porém, dependerá do STF. Em julho, o ministro Dias Toffoli suspendeu, a pedido de Flávio, o andamento do inquérito até que o Supremo decida sobre a legalidade do uso de dados do Coaf em investigações criminais. O relatório do Coaf diz que Queiroz movimentou 1,2 milhão de reais entre janeiro de 2016 e janeiro de 2017.

O restaurante funciona num ponto movimentado de Rio Comprido. Tem dois ambientes (um fechado e outro aberto, voltado para rua), banheiros bem cuidados, mesas de madeira suficientes para acomodar sessenta pessoas e churrasqueira. No cardápio há várias opções de pratos e bebidas. Em alguns dias, oferece música ao vivo (cobra-se couvert). A região é cercada por morros disputados por facções de traficantes. Recentemente, os moradores ouviram falar que milicianos entraram na briga.

Esmiuçando os dois CNPJs registrados no mesmo endereço, foi possível descobrir a coincidência. Em uma das empresas, Raimunda aparece como sócia. Na outra, cujo nome aparece na nota fiscal do estabelecimento, os donos são Júlio Cesar Serra e Daniel Alves de Souza. Em janeiro passado, o MP denunciou Júlio e Daniel, juntamente com o capitão Adriano, o filho de Raimunda, por formação de organização criminosa.

O registro da empresa de Raimunda: mesmo endereço de milicianos
Os promotores afirmam que Júlio era o responsável pela movimentação financeira da quadrilha. Daniel atuava como gerente da milícia na Muzema, comunidade onde ocorreu o desabamento de prédios em abril, com 24 mortos. Em outra investigação, a Promotoria chegou a um bar em nome de Júlio usado em lavagem de dinheiro. Ele está foragido da Justiça. Daniel foi preso em fevereiro.

Raimunda já era sócia de outro restaurante, desde 2012, também no bairro de Rio Comprido. O self service fica em frente à agência do Itaú onde foram realizados, segundo o Coaf, ao menos 17 depósitos em dinheiro numa conta de Queiroz que somaram cerca de 92 mil reais entre 2016 e 2017. O capitão Adriano também aparece como proprietário de um restaurante nas imediações, em sociedade com outras pessoas.

Expulso da PM por envolvimento com bicheiros para quais faria segurança, Adriano recebeu duas homenagens de Flávio Bolsonaro na Assembleia Legislativa: uma moção de louvor, em 2003, e a Medalha Tiradentes, a mais alta honraria da casa, em 2005. A última condecoração ocorreu mesmo com o ele atrás das grades, acusado de matar um guardador de carros. Adriano acabaria absolvido desse crime meses depois.

Júlio César e Daniel: denunciados pelo MP junto com o ex-PM acusado de chefiar a milícia
Agora ele está foragido da Justiça. Desapareceu em janeiro, quando o MP denunciou 13 acusados de pertencer à milícia de Rio das Pedras. Recentemente, a família de Adriano contratou um escritório sediado em Brasília para defendê-lo.

No mês passado, sob alegação de que não teve acesso a todos os elementos, a defesa entrou com habeas corpus no Supremo Tribunal Federal para suspender a audiência na qual seriam ouvidas testemunhas de acusação. O pedido não foi atendido.

O advogado Paulo Emílio Catta Preta, um dos responsáveis pela banca, afirma que não existem provas contra Adriano. “Ele não teve diálogos gravados nas escutas telefônicas e nem há testemunhas do envolvimento com organização criminosa”, diz.

Paulo Klein, defensor de Fabrício Queiroz, sustenta que seu cliente não se envolveu com atividades ilícitas. “A defesa de Fabrício Queiroz já esclareceu exaustivamente que nem ele, seus familiares ou qualquer das pessoas com quem mantinha contato pessoal ou profissional [se envolveram] com qualquer prática ilícita”, disse.

Raimunda não foi localizada. No self service do qual também é sócia, uma das donas disse que ela não aparece há tempos. No site do Disque Denúncia, que oferece recompensas em troca de informações sobre foragidos, o prêmio por pistas sobre o paradeiro do Capitão Adriano é de mil reais. A página diz que, além de comandar a milícia, ele é matador de aluguel e chefe de uma organização chamada Escritório do Crime.

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