Adriano Machado/Crusoé

Todo o poder a Toffoli

Mudanças no Coaf, reestruturação na Receita, sucessão na Procuradoria-Geral da República: cada vez mais próximos, Dias Toffoli e Jair Bolsonaro costuram movimentos que apontam para um acordão a partir do qual a Lava Jato e outras investigações devem ser as maiores prejudicadas
16.08.19

O apurado filtro que o Planalto implementou para deixar longe do palácio e de Jair Bolsonaro figuras que já tenham servido à esquerda foi desligado desta vez. Estrategicamente desligado. O novo aliado do presidente começou a carreira, ainda nos anos 1990, como consultor jurídico da Central Única dos Trabalhadores, o braço sindical do PT. Depois, foi assessor parlamentar do partido na Assembleia Legislativa de São Paulo e na Câmara dos Deputados. Também atuou na defesa das campanhas presidenciais petistas. Foi ainda chefe de gabinete de uma secretaria na gestão de Marta Suplicy na Prefeitura de São Paulo, de onde saiu para ser subchefe de Assuntos Jurídicos da Casa Civil e advogado-geral da União do governo Lula, que o nomeou em 2009 ministro do Supremo Tribunal Federal. A se considerar tudo que o Bolsonaro já disse (e continua dizendo) sobre petistas e aliados do PT de agora e de outrora, José Antonio Dias Toffoli tinha tudo para ser uma figura indigesta para o gabinete presidencial. Mas os interesses de ambos os lados fizeram com que ele se transformasse, nos últimos tempos, em um dos aliados mais diletos do presidente. Um verdadeiro casamento de conveniência. E que tem como padrinhos o presidente da Câmara, Rodrigo Maia, e do Senado, Davi Alcolumbre.

As bodas ocorreram, de fato, no dia 16 de julho. Foi quando Toffoli deu a decisão que travou a única investigação com potencial de causar embaraços sérios para o clã Bolsonaro na Justiça. “Foi uma catarse”, diz uma fonte sobre a maneira como a primeira-família da República recebeu a decisão. Havia motivos para tanto. Em uma canetada solitária, durante o recesso do Judiciário, Toffoli atendeu a um pedido dos advogados de Flávio Bolsonaro e suspendeu o inquérito aberto a partir do relatório do Conselho de Controle de Atividades Financeiras, o Coaf, que havia apontado transações financeiras suspeitas envolvendo o agora senador e alguns funcionários e ex-funcionários de seu gabinete na Alerj, a Assembleia Legislativa do Rio, na época em que ele era deputado estadual. O documento apontava indícios da existência de um esquema destinado a coletar parte dos salários dos assessores, o chamado “rachid”. Em alguns casos, havia a suspeita de que se tratava de funcionários fantasmas. Havia, entre as informações, outros elementos desagradáveis para a família. A apuração localizou, por exemplo, um repasse de 24 mil reais de Fabricio de Queiroz, ex-motorista de Flávio e amigo pessoal de Jair, para a primeira-dama Michele Bolsonaro. Queiroz desde então está desaparecido.

A investigação vinha sendo realizada pelo Ministério Público do Rio. A decisão de Toffoli, que entendeu serem indevidas as apurações iniciadas a partir de documentos do Coaf e de outros órgãos de fiscalização que não tenham passado anteriormente pelo crivo do Judiciário, não só impediu qualquer avanço por parte dos investigadores que trabalhavam nesse caso, como bloqueou também todos os inquéritos em andamento no país baseados nessas mesmas fontes. O despacho teve dupla utilidade. Se por um lado beneficiava Flávio Bolsonaro, por outro contemplava o próprio Toffoli e outros ministros de cortes superiores, como Gilmar Mendes, que andavam furiosos desde que descobriram haver apurações internas na Receita Federal sobre movimentações financeiras deles próprios e de seus familiares — além de barrar as investigações baseadas em informações do Coaf, a decisão do presidente do STF também abarca apurações com origem em dados do Fisco e do Banco Central. Ou seja: a canetada de Toffoli foi útil em vários sentidos.

De lá para cá, os gestos do Palácio do Planalto em retribuição ao ministro se acumulam. Bolsonaro passou a ouvir com mais atenção os pleitos oriundos do outro lado da Praça dos Três Poderes. Por exemplo: Toffoli e Gilmar entendiam que o Coaf estava aparelhado pela Lava Jato — a qual, na visão de setores importantes dos tribunais, estaria interessada em avançar sobre o Judiciário. A queixa tinha endereço certo: Roberto Leonel, o presidente do conselho, escolhido no início do governo por Sergio Moro. Antes de desembarcar em Brasília juntamente com o próprio Moro, Leonel havia integrado a força-tarefa da Lava Jato no Paraná, como representante da Receita, órgão do qual é funcionário. Bolsonaro, ao que tudo indica, rendeu-se à pressão do Judiciário e ordenou a Paulo Guedes que tirasse Roberto Leonel do posto. A demissão ainda não foi consumada, mas está em vias de ocorrer. A ideia central é a mesma que motivou a pressão: o Coaf estaria muito poderoso, e precisando de travas. A mudança, aliás, sairá melhor do que a encomenda. Agora o governo já planeja fazer alterações mais profundas no conselho. Além de ter novo chefe, o Coaf deverá se subordinar ao Banco Central e ter apenas servidores do órgão em seus quadros – hoje, ele é formado por representantes de várias instituições, incluindo a Polícia Federal. Investigadores acreditam que as mudanças serão prejudiciais não apenas à Lava Jato, mas também a outras iniciativas anticorrupção.

Adriano Machado/CrusoéAdriano Machado/CrusoéRodrigo Maia, amigo de Toffoli, é um dos estrategistas da aproximação do ministro com o Planalto
Em outra frente, a própria Receita Federal, outro alvo da fúria de Toffoli, Gilmar e companhia, passará por profundas transformações. A caça às bruxas já começou – e justamente pelos setores ligados às apurações internas que miraram as transações financeiras de ministros e seus familiares. Já é dado como certo, internamente, que haverá mudanças, por exemplo, em posições estratégicas da área de inteligência. No atacado, a Receita será reestruturada. Deverá virar uma autarquia. A exemplo do que está em marcha no Coaf, a ideia é limitar o campo de ação do órgão. Auditores perderão poder de investigação.

Partindo de dentro do governo, essa é a maior investida contra as duas instituições, que foram determinantes para as investigações iniciadas em Curitiba e espalhadas pelas principais capitais do país. Tudo isso em comum acordo – e com  benefícios — para as cúpulas dos três poderes. O presidente conseguiu a proteção do seu filho senador e, por via transversa, do seu próprio mandato, que poderia sofrer com estilhaços da apuração. Os ministros de tribunais, por sua vez, arrumaram um jeito de responder à altura ao que consideravam uma ofensiva indevida dos investigadores sobre o Judiciário. E a parcela enrolada do Congresso, que sempre tentou minar a Lava Jato, não hesitou em apoiar as iniciativas. Mais do que isso, também está fazendo sua parte para enfraquecer ainda mais o poder dos órgãos de investigação — na quarta-feira desta semana, o plenário da Câmara aprovou o projeto de abuso de autoridade. A grande ironia é que tudo isso ocorre no oitavo mês de um governo eleito sob a bandeira do combate à corrupção e na esteira do apoio maciço do eleitorado à Lava Jato. Os efeitos colaterais do casamento de Bolsonaro com Toffoli não poderiam ser mais nocivos. O presidente da República festeja o sucesso da relação. “Toffoli é nosso”, tem dito Bolsonaro. O presidente do Supremo, do outro lado da praça, aproveita todas as oportunidades para repetir que tem feito sua parte para garantir a estabilidade do país.

Como todo casamento que se preze, houve uma boa fase de namoro. Ela começou tão logo as urnas anunciaram, em 28 de outubro de 2018, a vitória de Jair Bolsonaro. Ao contrário de grande parte dos seus colegas ministros do Supremo, que temiam que a retórica autoritária do então deputado federal fosse colocada em prática (Bolsonaro chegou a avaliar na campanha ampliar o número de ministros da corte e um de seus filhos, o deputado Eduardo Bolsonaro, disse que para fechar a corte bastava “um tanque e um soldado”), Toffoli deixou claro a interlocutores que, como presidente do STF, não pretendia adotar uma postura crítica ao presidente. Seria, ao contrário, uma oportunidade para finalmente tentar se livrar da imagem de homem do petismo na mais relevante corte brasileira. Pôs o plano logo em prática. Primeiro, cedeu o general Fernando Azevedo, que estava em sua assessoria especial, para o Ministério da Defesa de Bolsonaro. Azevedo tornou-se sua primeira ponte com o Planalto. Foi ele, por exemplo, que Toffoli procurou para passar aos integrantes do governo eleito o recado de que reverteria a decisão solitária do ministro Marco Aurélio Mello, em dezembro, que poderia resultar na soltura de milhares de presos condenados em segunda instância – na prática, a medida beneficiaria Lula. Para fazer valer o compromisso, ele alinhavou com a procuradora-geral da República, Raquel Dodge, qual deveria ser o melhor atalho a ser apresentado pela PGR para reverter o despacho de Marco Aurélio. Toffoli sabia que sua movimentação agradaria o novo presidente. Meses depois, em abril, ele ainda retirou de pauta o julgamento que pode rever a prisão após condenação em segunda instância. Os gestos criaram o ambiente ideal para que fosse finalmente realizado o primeiro encontro a sós registrado oficialmente em agenda. A conversa se deu em 21 de maio. Foi a primeira de muitas. Em 1º de julho, Toffoli e Bolsonaro se encontraram de novo a portas fechadas. Duas semanas depois, veio a decisão do presidente do STF sobre Flávio Bolsonaro e o Coaf.

Pedro Ladeira/FolhapressPedro Ladeira/FolhapressGilmar em sessão do Supremo: para ele, é preciso reagir aos “abusos” da Lava Jato
Quem circula pelas altas cortes de Brasília vê na aproximação com Bolsonaro um cálculo político claro por parte do ministro: com o avanço da estratégia, ele se torna um influenciador em potencial de decisões presidenciais referentes ao Judiciário. Está conseguindo. Na intensa disputa de bastidores pela indicação do novo procurador-geral da República, Toffoli já virou um player importante. Até esta semana, ele apoiava a recondução de Raquel Dodge. Mas, conforme mostrou o Diário de Crusoé na terça-feira, 13, mudou de posição e agora defende Paulo Gonet, ex-sócio de Gilmar Mendes no famoso IDP, o Instituto de Direito Público (Gonet também é o preferido de Gilmar, claro). É um cargo chave para o futuro da Lava Jato e das investigações em geral no país. Além disso, até 2022 haverá mais duas nomeações de relevo em Brasília, ambas para o STF, para as vagas abertas por Celso de Mello e Marco Aurélio. Sem falar nas que se abrirão para preencher vagas em outras cortes relevantes, como o Superior Tribunal de Justiça e o Tribunal Superior do Trabalho. Nada mal para quem tem mais pelo menos 24 anos de STF pela frente (sim, senhores, pelas regras atuais Toffoli só se aposenta em 2044).

Enquanto construía sua aproximação com o governo, Toffoli adotava medidas para conter eventuais arroubos do Planalto e de radicais bolsonaristas. O famigerado inquérito das fake news, que ele instaurou por conta própria e entregou para o colega Alexandre de Moraes, foi arquitetado como um repositório no qual poderiam ser juntadas possíveis evidências de que o governo estaria operando nas sombras para minar o poder do Supremo. Àquela altura, havia a desconfiança de que robôs em ação nas redes que defendiam e propagavam iniciativas contra a corte poderiam estar sendo financiados por alas extremistas do bolsonarismo, talvez até com apoio do núcleo duro do presidente. O inquérito secreto, o mesmo no qual foi ordenada a censura a Crusoé, segue em aberto sem que se saiba exatamente o que há lá dentro. Se a ideia era usá-lo como uma possível arma de dissuasão na guerra fria que se desenhava com o Planalto, talvez nem tenha sido preciso utilizá-lo para esse fim. Se não foi primordial, a investigação sobre Flávio Bolsonaro facilitou tudo.

O processo de aproximação do presidente do STF com o Planalto contou com o auxílio de dois outros personagens importantes: Rodrigo Maia, presidente da Câmara, e Davi Alcolumbre, presidente do Senado. Toffoli é muito próximo de Maia. Os dois conversam muito. A estratégia foi sendo discutida passo a passo. Quando ambos viam o dedo do Planalto nos ataques ao Supremo, que também se estendiam ao Congresso, pensavam conjuntamente em como reagir. Quando enxergaram a oportunidade de compor, e de convencer Bolsonaro a atender seus pleitos, não pensaram duas vezes. Foi aí que nasceu a ideia do tal “pacto institucional” dos Três Poderes, anunciado em maio. Alcolumbre, que não conhecia Toffoli de perto até se eleger presidente do Senado, foi levado de roldão na estratégia. Em nome da tranquilidade na Praça dos Três Poderes, Toffoli passou a ser o portador do discurso da estabilidade em sucessivas conversas com parlamentares. E assim tem feito, sistematicamente, em reuniões com bancadas da Câmara e do Senado. Com parlamentares do DEM, por exemplo, a conversa foi em um restaurante do Lago Sul de Brasília. Nesta semana, ele foi até o Senado para almoçar com representantes de três partidos. Segundo os presentes, ele disse se dar “muito bem” com o presidente da República. A boa relação com o Congresso é a outra ponta da equação. Se por um lado parlamentares têm interesses no Supremo, por outro é no Congresso que tramitam, por exemplo, pedidos de impeachment de ministros da corte e propostas de CPIs como a da Lava Toga, engavetada por Davi Alcolumbre. O discurso da estabilidade nunca foi tão útil.

Símbolo do combate à corrupção no país, o ex-juiz e atual ministro da Justiça, Sergio Moro, é um alvo colateral da guerra deflagrada, ironicamente, a partir do casamento de Jair Bolsonaro com Dias Toffoli. Visto como um ponta de lança da Lava Jato dentro do governo, o ministro viu sua relação com o presidente se esgarçar nos últimos tempos – a anunciada demissão do presidente do Coaf é apenas um sintoma disso. Bolsonaro tem adotado uma política de morde e assopra com seu subordinado mais famoso e popular. Sabe que não pode largá-lo na sarjeta, uma vez que se elegeu com grande apoio do eleitorado pró-Lava Jato — uma ação mais direta contra o ministro poderia lhe causar sérios prejuízos, portanto. Por outro lado, cuida para não bombá-lo a ponto de ele se tornar maior do que a própria figura presidencial. Sempre que pronuncia uma frase agressiva contra Moro (“Tem que entender que não é mais juiz”, por exemplo), vem um afago (como um convite para um café da manhã no palácio). Há até um monitoramento de redes sociais no Planalto específico para equalizar essa relação. Quando elas apontam críticas à forma como Moro e seu legado vêm sendo tratados, Bolsonaro procura manifestar apoio.

É nesse ambiente que caminha o esvaziamento da Receita e do Coaf, órgãos que dão suporte à Polícia Federal e ao MPF nas grandes operações de combate a corrupção. No caso da Receita, por exemplo, há uma insatisfação geral do universo político com a evolução do trabalho de investigação desenvolvido pelos auditores fiscais. Acostumados por anos aos questionamentos sobre onde estava o Fisco enquanto milhões em desvios eram expostos pelas grandes operações da Polícia Federal, os servidores resolveram redefinir o modelo de atuação para se antecipar aos interessados em esconder os rastros de sonegação tributária deixados pela lavagem de dinheiro. O maior banco de dados do país — transações imobiliárias, pagamentos com cartões e movimentações bancárias — passou então a ser monitorado por computadores programados para buscar os padrões similares aos encontrados nas fiscalizações de criminosos e empresas envolvidas com corrupção. O resultado: 24 bilhões de reais foram recuperados de 2012 até 2018. Se o trabalho tivesse parado aí, a reação contra os auditores não seria tão forte. Mas no início de 2018, a cúpula da Receita decidiu dar um passo além. Os vários anos de experiência na colaboração com grandes investigações de combate à lavagem de dinheiro haviam resultado em conhecimento suficiente para criar filtros em suas buscas por sonegadores, por meio do rastreamento de transações e bens a partir de contribuintes específicos e também de pessoas e empresas ligadas a eles. Após um projeto piloto, um grupo com os auditores mais experientes foi criado para aplicar o conhecimento com foco em agentes públicos. Foi daí que veio a iniciativa de mapear, por exemplo, indícios de transações suspeitas envolvendo ministros de tribunais superiores com parentes aboletados em escritórios de advocacia. Os alvos dessas apurações não gostaram, é claro.

Desde que a criação do grupo especial de auditores se tornou conhecida, as movimentações contra a Receita começaram. Em um primeiro momento, a reação foi silenciosa. Até que, no ínicio de janeiro de 2019, veio um lance primordial: vazou a informação de que familiares do ministro Gilmar Mendes estavam entre os alvos. Hoje, dentro da Receita, auditores juntam evidências de que a informação foi repassada ao próprio ministro, que em seguida teria se movimentado para tornar a informação pública e, assim, dar início à campanha contra o que ele chama de “abuso”. A informação teria sido franqueada a Gilmar por integrantes da cúpula do escritório regional do órgão em Brasília que teriam sido indicados por ele para os cargos, ainda no governo Temer. Esses funcionários, com passagem por Mato Grosso, estado natal do ministro, tiveram acesso prévio à lista de contribuintes investigados. A suspeita levantada internamente combina com o histórico da ofensiva de Gilmar. Tão logo vazou a informação de que seus parentes estavam na mira, ele iniciou a grita que, hoje, pode ser apontada como o ponto de partida para o aparente acordão que se desenha em Brasília. O nível da reação aumentou sensivelmente semanas depois, quando, em um novo vazamento, se soube que a mulher de Dias Toffoli também estava na lista de alvos da Receita. Foi o bastante para que o presidente do Supremo aderisse prontamente à campanha deflagrada por Gilmar. A aproximação com Bolsonaro, logo depois, e tudo o que dela vem resultando são os primeiros reflexos de um movimento que tem tudo para devolver o Brasil aos tempos em que reinava aquela máxima segundo a qual manda quem pode e obedece quem tem juízo.

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