Reprodução/TV GloboO presídio federal de Campo Grande: para Adélio, lugar de energias diabólicas

O mundo de Adélio

Em cartas escritas da prisão, o homem que tentou matar o presidente há um ano pede para deixar o presídio onde está, "um lugar terrivelmente diabólico", e escancara seus delírios
30.08.19

A cidade de Juiz de Fora, na Zona da Mata mineira, registrava um movimento atípico em sua região central naquela tarde de quinta-feira, 6 de setembro de 2018. Nos calçadões do comércio local, centenas de pessoas se aglomeravam na véspera do feriado da Independência para ver o líder nas pesquisas de intenção de voto para presidente. Jair Bolsonaro chegara à cidade para mais um ato de campanha. Driblando as orientações de sua segurança, ele logo se jogaria nos braços de seus apoiadores. Com a característica camisa amarela onde se lia “Meu partido é o Brasil” em letras verdes garrafais, ele era carregado nas costas por um grupo quando, de repente, veio a facada. Bolsonaro tinha se tornado o primeiro candidato a presidente alvo de um atentado durante a campanha desde a redemocratização.

Um ano depois, o episódio que acabou por tirar Bolsonaro dos debates e de todos os demais compromissos até a data da eleição caminha para um desfecho definitivo. A Polícia Federal está a dias de concluir o segundo inquérito aberto para apurar se o autor da facada, o ex-pedreiro Adélio Bispo de Oliveira, agiu a mando ou sob o patrocínio de terceiros. A tendência, como Crusoé já mostrou, é que os policiais concluam que ele agiu por conta própria, movido por sua doença mental – ele foi diagnosticado com transtorno delirante persistente. Prestes a completar um ano detido na Penitenciária Federal de Campo Grande, o agressor de Bolsonaro passa seus dias isolado – e sob vigilância permanente – em uma cela no segundo andar do estabelecimento. Gasta parte do tempo escrevendo cartas. Crusoé teve acesso a algumas delas, que foram anexadas ao processo. As paranoias e os delírios de Adélio parecem cada vez mais fortes.

“Estou tendo alguns problemas aqui, pois este presídio é um lugar terrivelmente diabólico, um lugar de mandingas maçônicas, se que (sic) imaginadas por muitos aí fora”, escreveu o esfaqueador do presidente em abril deste ano. A carta, juntada depois aos autos, foi destinada ao advogado de Adélio, Zanone Manuel de Oliveira Júnior. Nela, o ex-pedreiro pedia para ser transferido de volta para Minas Gerais – de preferência para Montes Claros, sua cidade natal. Em garranchos, ele segue explicando por que não deseja permanecer no presídio federal: “Este predio foi construido com contornos maçônicos, onde o diabo é cultuado, as magias satanicas estão por todos os lados, sentidas e vistas (sic)”.

Trecho de uma das cartas de Adélio Bispo: “magias satânicas”
A ida dele para Campo Grande foi determinada pela Justiça por medida de segurança, dois dias após o atentado. O motivo: ele próprio havia relatado agressões e ameaças que teria recebido na cadeia em Juiz de Fora, para onde foi levado logo depois do atentado. Adélio foi considerado inimputável pela Justiça Federal e se recusa a receber tratamento. Em junho, em outra carta, desta vez destinada ao juiz responsável por julgar o seu caso, Bruno Savino, ele reiterou o apelo pela transferência. “Minha situação aqui está pior do que no presidio de Juiz de Fora, ou seja, se preciso for me mande de volta para Juiz de Fora (sic)”.

Afora o formato retangular de seus prédios e a ausência de janelas, o presídio obviamente não guarda qualquer semelhança com lojas maçônicas. Também não há, evidentemente, sinais de cultos satânicos por lá, como Adélio diz. Destino de alguns dos presos mais perigosos do país, o estabelecimento tem 12,6 mil metros quadrados de área construída divididos entre quatro blocos interligados por uma estrutura central com áreas para banho de sol e espaços para receber visitas. Duzentas câmeras monitoram todos os movimentos, em todas as alas, que hoje abrigam 148 presos. Adélio ocupa sozinho uma das 220 celas. Desde maio, ele não tem nem sequer vizinhos de cela. É o único detento do andar em que está. Sua rotina diária é igual à dos demais presos: 22 horas dentro da cela e duas horas de banho de sol. O cubículo de sete metros quadrados tem uma cama, uma escrivaninha e um banco de concreto, um vaso sanitário, pia, chuveiro e uma bica d’água. A iluminação e o chuveiro são controlados pelos agentes penitenciários. Há seis refeições diárias, mas nem sempre Adélio come o que lhe é oferecido – não raro ele costuma rejeitar a comida alegando que teme morrer envenenado.

A convicção do agressor de Bolsonaro de que precisa combater o que ele chama de “ameaça maçom” representada pelo presidente é irremovível. Embora a sentença que recebeu deixe em aberto quanto tempo ele ficará privado de liberdade, Adélio repete sempre que pretende concluir sua “missão”. E que pretende matar não apenas Bolsonaro, mas também o ex-presidente Michel Temer. Filiado ao PSOL de 2007 a 2014, Adélio reverbera, de forma desorganizada, parte da retórica de esquerda. Em seus delírios, ele diz que Temer e Bolsonaro fazem parte de uma conspiração para tomar as riquezas do Brasil e entregá-las ao Fundo Monetário Internacional, à maçonaria e à máfia italiana.

Raysa Leite/FolhapressRaysa Leite/FolhapressO momento do ataque, há um ano, em Juiz de Fora
As queixas sobre o cotidiano da prisão são constantes. Em uma das cartas a que Crusoé teve acesso, ele relata ter medo até do colchão que lhe foi fornecido. “Estou a (sic) mais de um mês com um novo colchão de cama, mas sem poder usá-lo, pois a uma força satanica (sic) nele que assusta qualquer um. Os demais internos que receberam colchões novos relatam exatamente a mesma coisa”, escreveu. Em outro trecho, ele afirma que pediria um favor a um “colega de vivência”, como se refere a outro preso. O pedido é mal explicado. Adélio diz que gostaria que a mãe desse colega fizesse contato com seu advogado. “Talvez isso venha causar certos problemas, pois este colega é pessoa ligada ao PCC, o que aumentaria as especulações sobre o PCC estar por trás do atentado”, escreveu, negando a vinculação da facção criminosa com o crime que cometeu em Juiz de Fora, a linha de investigação inicial da polícia, como noticiado por Crusoé.

O extremismo e a paranoia de Adélio se misturam o tempo todo. E se refletem até nos parcos momentos em que ele pode interagir com outros presos. Desde o dia em que chegou à penitenciária até ser transferido para o lugar em que onde está agora, o ex-pedreiro teve como vizinho de cela um dos presos da Operação Hashtag, que mirou suspeitos de integrar uma célula do Estado Islâmico no Brasil. O convívio foi tranquilo porque o companheiro era muçulmano. Mas não é sempre assim. Quando põe na cabeça que os que se aproximam são judeus ou maçons, o comportamento é outro. Ele fecha cara e para de falar.

“É um detento disciplinado, nunca teve ocorrências e fica na dele. Age com a certeza de que vai sair da prisão em algum momento”, disse a Crusoé um agente que pediu para não ser identificado. Desde que chegou a Campo Grande, Adélio não recebeu a visita de nenhum familiar. Nos próximos dias, o juiz encarregado de acompanhar a execução da sentença terá que decidir se ele permanecerá no presídio de segurança máxima, onde, por norma, presos devem ficar por, no máximo, um ano. Exceções são permitidas de acordo com a avaliação da Justiça. Ao que tudo indica, ele permanecerá por lá, apesar de achar o lugar “terrivelmente diabólico”.

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