Adriano Machado/Crusoé

Reveses infinitos

Jair Bolsonaro ensaia um armistício com Sergio Moro, mas a ofensiva contra a Lava Jato segue em ritmo intenso em Brasília
30.08.19

“O presidente Jair Bolsonaro tem um compromisso com a prevenção e o combate à corrupção. Esse foi um dos temas centrais que me levaram a aceitar esse convite. Eu creio que o governo tenha avançado nessa área. Claro que, às vezes, há alguns reveses.” Foi assim, durante um evento nesta semana em Brasília, que o ministro da Justiça, Sergio Moro, se manifestou pela primeira vez sobre as dificuldades que enfrenta no cargo. Os reveses são muitos e continuam aparecendo, um depois do outro. O Congresso aprovou o projeto de lei de abuso de autoridade, com uma série de normas que enfraquecem os órgãos de investigação. O Coaf foi extinto e teve suas funções transferidas para o Banco Central. O pacote anticrime de Moro foi desfigurado pelos parlamentares — e a área de inteligência da Receita, parceira importante de investigações anticorrupção, está sob ameaça. Além disso, Bolsonaro fez questão de deixar claro publicamente que é ele, e não Moro, quem manda na Polícia Federal. O último revés veio do Supremo, na quarta-feira, 28, quando a Segunda Turma anulou pela primeira vez uma condenação imposta pelo ex-juiz da Lava Jato e abriu caminho para que dezenas de processos da operação voltassem à estaca zero.

O clima entre o presidente e o ministro andou pesado. Cobrado por um eleitor, Bolsonaro deu mais uma cotovelada em Moro pelas redes sociais. “Jair Messias Bolsonaro, cuide bem do ministro Moro, você sabe que votamos em um governo composto por você, ele e o Paulo Guedes”, escreveu o seguidor, ao que o presidente respondeu: “Com todo respeito a ele, mas o mesmo não esteve comigo durante a campanha, até (por)que, como juiz, não poderia”. Dias depois, como era de se esperar, as cobranças aumentaram, o sinal amarelo acendeu e Bolsonaro correu para dizer que não é nada disso – e que ele e Moro seguem se dando muito bem, obrigado. A relação segue uma estranha lógica de morde e assopra. Bolsonaro não hesita em morder Moro sempre que pode, mas quando percebe que as mordidas ameaçam ainda mais a sua popularidade, corre para afagá-lo.

Nelson Jr./SCO/STFA sessão da Segunda Turma que anulou julgamento de Bendine: risco de efeito cascata
Nos últimos dias, o presidente chamou o ministro para duas conversas reservadas. A intenção era acertar os ponteiros. Depois de um dos encontros, Moro disse a interlocutores que a conversa foi tranquila, que Bolsonaro estava descontraído e que não havia “nuvens carregadas no ar”. O presidente também saiu satisfeito. Horas depois, houve até uma rara troca de gentilezas públicas. Moro postou em sua conta no Twitter que o Ministério da Justiça trabalha “em total alinhamento com a orientação” do presidente. Bolsonaro respondeu com um “Vamos, Moro”. “Estamos juntos, Sr. presidente. Pelo Brasil e pelo futuro”, replicou o ministro. Na quinta-feira, 29, os dois participaram da cerimônia de lançamento de um programa piloto do Ministério da Justiça e Segurança Pública para combater a criminalidade em cinco cidades muito violentas, uma de cada região do país. De novo, houve troca de afagos. Bolsonaro e Moro desceram juntos a rampa do salão principal do Planalto, abraçaram-se no caminho, pararam para fotos e, depois, sentaram-se lado a lado. No discurso, o presidente afirmou que Moro é um “patrimônio nacional”. O ministro, por sua vez, disse que “é inegável o mérito do governo federal e do presidente” no programa. A dúvida é: até quando vai o armistício?

O ambiente em Brasília não tem ajudado. Ao mesmo tempo que avançam as articulações contra a Lava Jato, Bolsonaro não dá sinais de que pretende se levantar contra elas. Pelo contrário. Algumas têm contado com o apoio do Planalto – como a ofensiva contra o Coaf e a Receita, uma demanda surgida nas hostes do Supremo Tribunal Federal que encontrou acolhida no palácio e levantou suspeitas sobre a existência de um acordão para frear a Lava Jato e, paralelamente, esvaziar o poder do próprio Moro. A decisão da Segunda Turma do STF que pode abrir caminho para a anulação de várias condenações obtidas pela força-tarefa que toca a operação foi mais um capítulo dos reveses em série. Por 3 votos a 1, os ministros decidiram mandar de volta à primeira instância o processo em que Moro condenou Aldemir Bendine, ex-presidente do Banco do Brasil e da Petrobras. Quando ainda estava em Curitiba, o então juiz havia sentenciado Bendine a 11 anos de prisão por corrupção passiva e lavagem de dinheiro. A maioria da turma entendeu que houve cerceamento de defesa porque o réu, delatado, deveria ter tido oportunidade de se pronunciar depois das manifestações de seus delatores, igualmente réus. A sessão contou com os tradicionais impropérios de Gilmar Mendes, declarado inimigo da Lava Jato. “A República de Curitiba nada tem de republicana. Era uma ditadura completa. (…) Assumiram papel de imperadores absolutos. Gente com uma mente muito obscura. (…) Que gente ordinária, se achavam soberanos”, disse o ministro. Votaram pela anulação, além do próprio Gilmar, Ricardo Lewandowski e, quem diria, Cármen Lúcia, que até então vinha chancelando as decisões contra os alvos da Lava Jato. Edson Fachin, o relator da Lava Jato no Supremo, foi o voto vencido.

A força-tarefa de Curitiba reagiu. Em nota, os procuradores afirmaram que “os ministros estabeleceram uma nova interpretação que, se for aplicada como nova regra, vai alterar entendimentos pacíficos sobre princípios como o da ampla defesa”. Além disso, alertaram que a “nova regra não está prevista no Código de Processo Penal ou na lei que regulamentou as delações premiadas”. Os advogados dos condenados, por outro lado, adoraram. Cristiano Zanin, que defende o ex-presidente Lula, declarou: “Essa situação ocorreu nos processos do ex-presidente em Curitiba. Precisamos fazer uma avaliação específica sobre o tema após essa decisão de hoje do STF”. Na quarta-feira, 28, Fachin determinou que uma ação penal contra o petista prestes a ser sentenciada em Curitiba voltasse para a fase de alegações finais. Depois, decidiu remeter ao plenário um processo que discutirá a tese defendida pela Segunda Turma na véspera. Foi uma tentativa de evitar um dano maior a partir do veredicto da turma. Só em Curitiba, os investigadores afirmam que 32 sentenças podem ser revistas, envolvendo 143 condenados.

Agência BrasilAgência BrasilCarmen Lúcia: pela primeira vez contra Fachin na Lava Jato
Apesar dos reveses em série, pessoas próximas a Moro asseguram que ele não pedirá demissão. Se a situação ficar insustentável, prefere deixar para Bolsonaro o ônus de demiti-lo. Os afagos públicos parecem ter reduzido a tensão reinante, mas nos próximos dias dois movimentos do presidente poderão reinstalar a crise – movimentos, aliás, que colocarão à prova o compromisso de Bolsonaro de apoiar o combate à corrupção. Um deles vai ser determinante para o futuro da lei de abuso de autoridade aprovada pelo Congresso, um velho sonho dos críticos da operação. Moro recomendou que dez trechos da proposta sejam vetados por considerá-los prejudiciais a investigações em geral. O texto abre brechas para punições a juízes e procuradores a partir de critérios vagos. Prevê, por exemplo, punições a juízes que decretarem prisões em “manifesta desconformidade com as hipóteses legais”.

Bolsonaro tem até quinta-feira, 5, para decidir se sanciona ou veta a lei. Ele pode adotar um meio termo, chancelando uma parte e vetando outra. O suspense está instalado em torno dos vetos propostos por Moro: o presidente seguirá as sugestões do ministro que ele escolheu para combater a corrupção ou se alinhará aos congressistas que tentam torpedear a Lava Jato e seus integrantes? Outro movimento crucial é a escolha do novo procurador-geral da República. Quente nas últimas semanas, o assunto esfriou, segundo interlocutores do presidente, para amenizar as pressões. A expectativa é de que o anúncio sairá próximo à data limite, 17 de setembro. Há até quem aposte que Bolsonaro deixará para decidir mais adiante — nesse caso, a PGR ficaria sob o comando de um interino.

Em meio às incertezas, Moro tem, cada vez mais, buscado entrar no universo político de Brasília. Há duas semanas, chegou sozinho ao apartamento funcional do deputado federal João Roma, do PRB, principal aliado do prefeito de Salvador e presidente do DEM, ACM Neto. Era um encontro curioso: tinha por objetivo reunir gente jovem, do governo e do Congresso, que está começando agora a conhecer os corredores do poder da capital federal. Por lá estavam parlamentares desde o oposicionista PDT até o governista PSL, além de integrantes de outros partidos de centro. Moro circulou por todas as rodas. Na saída, disse ter gostado do público “eclético” e se esforçou para dissipar a má impressão dos que ainda o veem como juiz. Era, por assim dizer, um Moro em sua versão essencialmente política. É justamente a versão que mais incomoda Jair Bolsonaro, e que explica, em parte, as mordidas constantes no ministro: o presidente teme que Moro se fortaleça e vire um nome mais viável do que ele em 2022. Dentro do próprio PSL de Bolsonaro, o ex-juiz é mais popular do que o ex-capitão. Enquanto a indisposição com o presidente só aumenta no partido pela posição dúbia de Bolsonaro em relação à Lava Jato, o ex-juiz parece ser uma unanimidade. A ver as próximas cenas.

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