ReproduçãoEl Paisa, Iván Márquez e Jesús Santrich, da esquerda para a direita: experiência com batalhas e narcotráfico

Eles voltaram

O retorno das Farc à luta armada, a cooperação com o ELN e o apoio da Venezuela podem acender um barril de pólvora na vizinhança do Brasil
06.09.19

Com uniformes verde-oliva, roupas camufladas, pistolas na cintura e fuzis a tiracolo, um grupo de vinte dissidentes das Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia, as Farc, anunciou o retorno à luta armada no final de agosto. Em um vídeo nas redes sociais, Iván Márquez, um dos que negociaram o acordo de paz com o governo colombiano em Cuba, acusou a existência de uma “guerra injusta contra a Venezuela”, revelou uma coordenação com o Exército de Libertação Nacional, o ELN, outro grupo terrorista, e prometeu uma batalha contra a “oligarquia excludente, corrupta, mafiosa e violenta que acredita que pode continuar a fechar a porta do futuro do país”.

Como o governo da Colômbia anunciou que iria no encalço do grupo, que está abrigado na Venezuela, o ditador Nicolás Maduro ordenou a realização de exercícios militares na fronteira com a Colômbia. As manobras terão início na próxima terça-feira, 10, e irão até o dia 28. “O governo da Colômbia agora pretende criar um falso positivo para agredir a Venezuela e começar um conflito militar com nosso país”, disse Maduro. “Iniciaremos toda atividade militar necessária para a Venezuela preservar sua segurança e tranquilidade.”

Uma análise do perfil dos integrantes do bando de Márquez dá uma pista sobre o tamanho da encrenca que se tem pela frente. Os homens e mulheres que posaram no vídeo ao redor dele e de Jesús Santrich, de óculos escuros, são um grupo da pesada, com experiência em combate. “Os que aparecem no vídeo não se destacam pela política. É gente operativa, curtida na batalha”, diz o colombiano Marcos Peckel, professor de relações internacionais na Universidade de Rosário.

À direita de Márquez estava Hernán Dario Velásquez, conhecido como El Paisa. Mercenário do traficante Pablo Escobar em Medellín, ele foi capturado com 1.000 fuzis e 250 morteiros e condenado por tráfico de armas. Na cadeia, conheceu integrantes das Farc. Em liberdade, uniu-se ao grupo. El Paisa comandou uma das colunas mais temidas e sanguinárias das Farc, responsável pelo assassinato de famílias de políticos, pelo atentado com carro-bomba no clube social El Nogal, em Bogotá, com 37 mortos e quase duzentos feridos, e pelo sequestro simultâneo de doze deputados em 2002, dos quais onze morreram.

Reprodução/redes sociaisReprodução/redes sociaisMaduro com Iván Márquez, na assinatura do acordo de paz, em 2016: o ditador esperava o terrorista no Foro de São Paulo, em Caracas
A possibilidade de uma cooperação com o ELN preocupa. Inspirado na Revolução Cubana, com ideias marxistas, padres da Teologia da Libertação e apoio nas universidades, o ELN tem mais capacidade de promover atentados em áreas urbanas. “Eles são mais dogmáticos e radicais do que as Farc e têm mais presença nas cidades”, diz a cientista política colombiana Sandra Borda, da Universidade dos Andes. “Ataques em áreas populosas costumam produzir mais vítimas e geram mais terror.”

As ameaças de Iván Márquez, no entanto, não significam um retorno à guerra interna que deixou 260 mil mortos ao longo de 60 anos. Com o acordo de paz com as Farc assinado no final de 2016, cerca de 90% dos seus integrantes abandonaram as armas. O grupo que aparece no vídeo com Iván Márquez é uma minoria. O que move a maior parte deles é o medo de enfrentar a Justiça. Vários enfrentam a possibilidade de serem extraditados por envolvimento com narcotráfico. Por pouco esse não foi o destino de Jesús Santrich, flagrado este ano negociando a exportação de dez toneladas de cocaína para os Estados Unidos.

Enquanto o ELN tem se financiado principalmente com a mineração ilegal, as Farc tem se associado ao narcotráfico, a ponto de participar da fabricação da droga. De acordo com o Departamento de Estado americano, Iván Márquez foi o responsável por implementar as políticas da guerrilha em relação às drogas, o que incluiu “dirigir e controlar a produção, a fabricação e a distribuição de centenas de toneladas de cocaína para os Estados Unidos e para o mundo”. Márquez também ordenou a morte de centenas de pessoas que tentaram atrapalhar seu negócio. Os americanos oferecem 5 milhões de dólares para quem der informações que levem a sua captura.

Flickr Julián Ortega MartínezFlickr Julián Ortega MartínezCartaz do ELN: presença maior nas cidades pode provocar mais vítimas
Para voltar à ativa, porém, o grupo de Iván Márquez terá de disputar espaço com outras dissidências das Farc que também recusaram o acordo de paz. Eles hoje somam cerca de 2.300 indivíduos. Para as organizações maiores e bem estabelecidas, não há sentido em se unir às Farc, pois isso atrairia a atenção das Forças Armadas. Conflitos entre os bandos são muito prováveis. “O retorno das Farc implica que eles entrarão em territórios que foram ocupados recentemente por dezenas de grupos criminosos. As Farc, então, terão de fazer acordos com eles ou liquidá-los, o que deve deflagrar uma luta sangrenta pelo território com sérias consequências para as comunidades rurais, indígenas e negras”, diz o sociólogo colombiano Ricardo Vargas Meza.

Quanto à cooperação com o ELN, há dúvidas se a amizade é mesmo para valer. O grupo chegou a festejar o retorno das Farc na capa de sua revista, mas os dois bandos continuam se enfrentando em vários lugares. “Tem muita mentira nessa última declaração das Farc. Os antigos grupos das Farc e o ELN brigam por território o tempo todo e têm projetos políticos muito diferentes”, diz o colombiano Víctor de Currea-Lugo, especialista em conflitos e autor de livros sobre o ELN.

ReproduçãoReproduçãoEm vídeo, Santrich foi flagrado negociando venda de cocaína para os EUA
Para o Brasil, o risco seria se um conflito armado de maiores proporções tivesse início na fronteira entre Colômbia e Venezuela. A gravidade dependeria muito do tipo dos vínculos que foram estabelecidos entre as Farc e as Forças Armadas da Venezuela. Desde a chegada de Hugo Chávez ao poder, em 1999, o grupo terrorista tem se aproximado do governo venezuelano e adotado alguns de seus slogans bolivarianos. Em julho, o ditador Nicolás Maduro disse que Iván Márquez e Jesús Santrich seriam bem-vindos a seu país. Maduro chegou a dizer que a dupla compareceria ao Foro de São Paulo, encontro de partidos e movimentos de esquerda que aconteceu em Caracas no final de julho.

“Na eventualidade de uma ação colombiana além da fronteira, a grande pergunta será sobre qual será a relação entre as Farc e as estruturas militares e paramilitares da Venezuela”, diz o historiador e cientista político colombiano Sergio Guarín, diretor-executivo da Fundação Reconciliação Colômbia, em Bogotá. “Se, além dos agrados políticos, as Farc receberem armas e apoio logístico dos militares venezuelanos, então o risco de um conflito bélico será muito maior.”

Os comentários não representam a opinião do site. A responsabilidade é do autor da mensagem. Em respeito a todos os leitores, não são publicados comentários que contenham palavras ou conteúdos ofensivos.

500
Mais notícias
Assine agora
TOPO