MarioSabino

O Brasil no divã

06.09.19

Há vários indícios de que você está ficando velho, além dos óbvios sinais corporais e mentais. Um deles é, vou colocar desse modo, a crença na psicanálise. Eu acredito em Freud. O Charlatão de Viena nunca foi unanimidade, claro, mas ele influenciou muita gente no século passado — e teve importância decisiva na minha vida do século passado e adjacências. Meus romances e livros de contos, por exemplo, têm forte componente psicanalítico. A psicanálise é uma aventura intelectual que requer mais do que a simples anuência de quem se dispõe a deitar no divã. Exige uma entrega quase inaceitável. É como pôr fogo na própria casa com você dentro, para usar a imagem de Freud. É bem mais fácil fazer como hoje: tomar remédio e fazer terapia cognitiva para cancelar sintomas de mecanismos psíquicos doentios que não são da conta de ninguém, nem mesmo de você próprio. Afinal de contas, para que perder tempo com a história familiar? Se os sintomas voltam a manifestar-se, repita-se o tratamento breve.Todos temos mais o que fazer, inclusive conhecer cem ou mil lugares antes de morrer. Entre tantas geografias, a pessoal é a menos agradável ou interessante. Não é um julgamento, como pode parecer, mas só uma constatação de um homem próximo dos sessenta anos.

A psicanálise pretende ser a cura pela fala — e pela escuta de alguém capaz de devolver interpretações que descortinem um sentido para o que você sente ou o paralisa. Uma reconstrução conjunta da história do paciente. A psicanálise saiu de moda, mas nunca se falou tanto no Brasil, em busca de uma cura nacional, embora não se escute o que é dito ou, no máximo, escute-se apenas o que se quer. Fico espantado com a quantidade de palestras organizadas no país — palestras de verdade, não como as de Lula. Toda sexta-feira, por exemplo, há ministro do Supremo Tribunal Federal dando palestra, embora dificilmente a cura nacional passe por essa instância. No começo de O Antagonista, uma alma caridosa propôs que até eu virasse palestrante remunerado. Eu, com a minha voz monótona e permanente cara de enfado, pois é. Ele simpaticamente fez até um media kit sobre mim.

O plano não foi adiante porque igualmente logo se descobriu que eu não tinha nada para falar. Apesar da minha absoluta falta de graça e assunto, aceitei fazer algumas palestras gratuitas, convidado por institutos liberais. Achei que seria bom para divulgar o site. Eu não conhecia o universo dos institutos liberais, e eles certamente também não me conheciam. Numa dessas palestras, eu disse que o Estado era uma boa invenção humana, desde que mínimo, e o constrangimento foi grande, porque excepcionalmente fui escutado. Acho que foi aí que ganhei a fama de socialista fabiano. O socialista fabiano deixou de receber uma montanha de convites e passou a recusar os poucos que ainda lhe são feitos. No final do ano passado, participei juntamente com colegas meus de um encontro com leitores de O Antagonista, mas aquilo foi mais celebração do que palestra.

Fala-se muito no Brasil, eu ia dizendo. Nunca tivemos, aliás, um presidente da República que falasse pelos cotovelos como Jair Bolsonaro, ou um condenado preso que abrisse tanto a boca como o chefão petista. Há uma infinidade de programas com gente falando o tempo inteiro.  E eu nem vou entrar no âmbito da gritaria nas redes sociais. Ao meu espanto com a falação, acrescente-se a minha admiração genuína por gente tão articulada. Fala-se tanto que, às vezes, é o filósofo que entrevista o jornalista. Dá para entender: existe atualmente um monte de jornalistas que mais falam do que reportam. Fala-se tanto que, com frequência, não se pensa antes de falar. Outro dia, assisti a um programa no qual uma moça dizia que as raízes da soja plantada no Cerrado eram a causa da seca que ocorreu na cidade de São Paulo. Eu escutei, ao contrário dos seus interlocutores anestesiados, e espero que ela não tenha pensado antes de falar. Não pensar antes de falar passou a ser desimportante, visto que não se escuta o que é dito ou, no máximo, escuta-se apenas o que se quer, como já afirmei. Escutar apenas o que se quer é prazeroso. Eu também pratico esse esporte. Concordo, estou falando demais de mim, daquela forma condenada por Marcel Proust: “Ao mau hábito de falar de si e dos seus próprios defeitos, é preciso acrescentar esse de denunciar nos outros defeitos análogos aos nossos. É sempre desses defeitos que estamos falando, como uma espécie de desvio para falarmos sobre nós mesmos, em que se juntam o prazer de confessar e o de absolvermo-nos”.

Vamos deixar o mau humor de Proust à sombra das raparigas em flor. Ele odiava barulho de qualquer tipo, a ponto de forrar com cortiça as paredes do seu apartamento. Em meio à cacofonia brasileira, há muitos falando de si próprios, mas poucos falando dos seus defeitos — ou reconhecendo que, ao denunciarmos os defeitos alheios, confessamos as nossas próprias falhas numa tentativa de absolvição. O Brasil é sempre os outros, quando na realidade o Brasil é todos nós, reconheçamos. Ele deveria ser queimado conosco dentro. Premidos por circunstâncias exteriores, só delatores trilham esse caminho da imolação, para quem sabe renascerem como fênix. Eles são obrigados a pensar antes de falar e são os únicos que dizem algo que realmente precisa ser escutado. E incendiado para o bem comum.

Talvez haja uma palestra a ser feita sobre a necessidade de colocar a sociedade brasileira no divã e cessar as terapias cognitivas que apenas eliminam momentaneamente os sintomas do mecanismo psíquico doentio que adquirimos através da nossa história impregnada de fatalismos. Para além de todos os seus benefícios visíveis, a Lava Jato forneceu um divã coletivo para a nossa imolação curativa, e espero que não o retirem do consultório. Lá estou eu querendo ressuscitar o Charlatão de Viena. Sou mesmo um velho sem noção.

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