Os beneficiários finais das entregas, de acordo com os registros: quase 250 milhões de reais em dinheiro vivo

A lista do delivery da propina

Crusoé mapeou os destinatários das propinas pagas pela Odebrecht por meio de uma transportadora de valores. O resultado do trabalho é um bom roteiro a ser seguido por policiais e procuradores de todo o país
20.09.19

Pouco antes de devolver à imobiliária as chaves da sede da transportadora de valores onde trabalhou como gerente de operações por sete anos, em junho de 2017, Edgard Venâncio pegou o melhor computador que estava abandonado no galpão da empresa recém-falida para seu filho instalar jogos eletrônicos. A máquina nunca foi usada e ficou acumulando poeira até ele descobrir, cinco meses depois, que dentro dela estava a “senha” que a Lava Jato tanto procurava para destravar o engenhoso esquema de corrupção montado pela Odebrecht e obter as provas necessárias contra os inúmeros políticos que executivos da empreiteira confessaram ter subornado.

Àquela altura, os doleiros que operavam para a Odebrecht já haviam revelado em delação premiada que a Transnacional foi usada como braço operacional para distribuir propina em São Paulo. No dia 29 de novembro, Venâncio foi chamado a depor pela primeira vez na Polícia Federal. Forneceu uma planilha que ele mesmo tinha feito com registros de parte das entregas de dinheiro e contou ao delegado Thiago Delabary que as ordens de pagamento, com datas, senhas, valores, endereços e os nomes dos destinatários, eram enviadas pela matriz da empresa no Rio, a Transexpert, por mensagens via Skype. Ou seja, havia rastro do propinoduto. De testemunha, ele passou a ser uma espécie de colaborador informal e saiu da oitiva com a missão de localizar as conversas. Foi rápido. Um ex-colega de trabalho disse que os diálogos do aplicativo tinham ficado armazenados naquele mesmo computador que ele havia levado pra casa. Uma semana depois, o HD estava nas mãos da PF.

As frases trocadas entre os agentes da Transnacional indicando detalhes das entregas de 1,4 milhão de reais na empresa do coronel João Baptista Lima Filho, amigo de Michel Temer, foram cruciais para Delabary indiciar o ex-presidente por corrupção passiva e lavagem de dinheiro, em setembro do ano passado. A partir dos registros, o delegado tomou depoimento de um agente que confirmou ter levado dinheiro até o endereço, identificou pelo sinal de antena de celular que o coronel estava no local na hora da entrega e ainda obteve gravações telefônicas fornecidas pelo doleiro Álvaro José Novis, o coordenador dos pagamentos ilícitos da Odebrecht no Rio e em São Paulo, na qual Lima fala sobre a “entrega das atas” em sua empresa com um dos operadores do esquema.

Com mais de 23 mil mensagens que abarcam um período de dois anos, de 2013 e 2015, os arquivos da Transnacional são as evidências mais consistentes já obtidas pela Lava Jato para tentar incriminar os políticos delatados pela Odebrecht. Mas passados quase dois anos da entrega do HD feita pelo ex-funcionário, o conteúdo segue sob a sombra do sigilo, enquanto cresce na sociedade a sensação de impunidade em torno das revelações trazidas pela chamada “delação do fim do mundo”. Para ter acesso às conversas dos entregadores de propina, promotores e procuradores de todo país precisam solicitar o compartilhamento de provas ao ministro Edson Fachin, relator da Lava Jato no STF. Ele tem deferido os pedidos.

Por causa do sigilo, não se sabe ao certo quais órgãos de investigação já têm o material, mas o parco número de denúncias oferecidas até agora no caso Odebrecht indica que os dados não têm sido aproveitados como deveriam. Em São Paulo, por exemplo, os procuradores receberam cópias do acervo apenas em meados deste ano. Crusoé teve acesso aos arquivos da Transnacional que englobam dois anos de operação da transportadora e cruzou as informações trocadas entre os agentes com as planilhas do doleiro e do Setor de Operações Estruturadas da Odebrecht para identificar quais pagamentos estão atrelados aos codinomes criados pela empreiteira. Somente entre janeiro de 2014 e maio de 2015, auge dos pagamentos ilícitos por causa das eleições, foram 532 entregas de dinheiro vivo no valor total de 248,9 milhões de reais. As encomendas estão vinculadas a pelo menos 90 codinomes, alguns ainda não esclarecidos até hoje pelos 77 delatores da Odebrecht.

Do cruzamento das informações surgem nomes de políticos de diversas regiões do país, como os ex-ministros Romero Jucá (MDB-RR), Henrique Eduardo Alves (MDB-RN) e Gilberto Kassab (PSD-SP); congressistas de diferentes partidos, como Ciro Nogueira (PP-PI), Gleisi Hoffmann (PT-PR), Edison Lobão (MDB-MA), José Agripino (DEM-RN), Jader Barbalho (MDB-PA) e Kátia Abreu (PSD-TO); e os ex-governadores Agnelo Queiroz (PT-DF), Beto Richa (PSDB-PR), Geraldo Alckmin (PSDB-SP), Marconi Perillo (PSDB-GO), Sandoval Cardoso (SD-TO).

Os beneficiários

 

Hotéis em bairros nobres da capital paulista, como Itaim Bibi, Jardins e Moema, foram os locais mais usados para as entregas. Assessores, amigos, seguranças, motoristas e até parentes de políticos das cinco regiões do país viajaram a São Paulo para buscar envelopes recheados com notas de 50 e 100 reais. Uma parte passava nos hotéis na hora marcada para buscar o dinheiro com Rogério Martins, funcionário do doleiro que se hospedava para executar entregas no atacado, em um único dia. Outros, especialmente os que vinham de longe, hospedavam-se nos quartos e aguardavam os agentes da transportadora, a maioria policiais militares fazendo bico, chegarem com o dinheiro.

O nome do ex-vereador de Palmas Emerson Coimbra, por exemplo, aparece como destinatário de um dos oito pagamentos atrelados ao codinome do ex-governador de Tocantins Sandoval Barbosa, “Novo Canário”, que teria recebido ao menos 6 milhões de reais. No dia 17 de outubro de 2014, segundo os apontamentos, a entrega foi feita no quarto 2.714 de um flat na Rua Tuim, em Moema. O valor: 1 milhão de reais. Um mês antes, no mesmo prédio, “Milton” se hospedou no quarto 1.708 para receber um pagamento de 500 mil reais em nome de Duda Mendonça. O recebimento foi confirmado à PF pelo marqueteiro da campanha de Paulo Skaf naquele ano e o nome de Milton Luiz Piazenti Santos constava da lista de hóspedes naquela data.

A investigação envolvendo Duda Mendonça mostra que basta o primeiro nome, a data e o endereço do hotel para descobrir a identidade de um portador de propina. Esses dados constam em praticamente todas as 532 entregas feitas pela Transnacional. No dia 17 de setembro de 2014, por exemplo, um pagamento de 1 milhão de reais atribuído ao PCdoB teria sido feito no quarto 1.702 de um flat na Rua Pamplona para uma pessoa de nome Fabio. No dia seguinte, um tal Afonso teria recebido 387 mil reais sob o codinome “Comprido”, atribuído ao ex-governador Agnelo Queiroz. Por lei, os hotéis são obrigados a manter a relação de hóspedes arquivada por pelo menos cinco anos em um sistema próprio e têm de fornecê-la às autoridades sempre que necessário.

Há casos em que a associação entre o suposto intermediário do dinheiro que aparece nas mensagens da transportadora e o político que seria o beneficiário do repasse não exige tanto esforço. Raimundo Júnior, primo do senador José Agripino, aparece como destinatário de duas entregas de 500 mil cada feitas em outubro de 2014, em um hotel na Consolação, no mesmo dia e com a mesma senha do codinome “Gripado”, atribuído ao parlamentar pelos delatores da Odebrecht. No dia 27 de fevereiro, havia na programação do departamento de propina da empreiteira um pagamento de 1,5 milhão de reais para “Galego”, apelido dado ao ex-governador catarinense Raimundo Colombo. Na mesma data, segundo as mensagens, os agentes da Transnacional se dirigiram ao Hotel Hilton para entregar a mesma quantia a Olavo Meier, ex-assessor de Colombo.

O compartilhamento dos arquivos da Transnacional entre os investigadores de todo o país se mostra ainda mais urgente à medida que o movimento anti-Lava Jato avança nas três esferas de Poder. No mês passado, a Segunda Turma do Supremo anulou a condenação do ex-presidente da Petrobras Aldemir Bendine imposta pelo ex-juiz Sergio Moro por um erro processual. A denúncia se baseava nos pagamentos de 3 milhões de reais que Bendine teria recebido por meio do taxista Marcelo Casimiro, nome assíduo nas mensagens da transportadora. Em setembro do ano passado, a mesma turma do Supremo já havia arquivado um inquérito que investigava repasse de 500 mil para a senadora Kátia Abreu em 2014. Os ministros alegaram que a investigação estava se prolongando demais e que não havia provas. A Procuradoria-Geral da República foi contra, mas não apresentou na sua reclamação os dois pagamentos de 250 mil reais que aparecem nos registros da Transnacional vinculados ao codinome “Machado”, atribuído à parlamentar. Faltou recorrer a arquivos que estavam à mão – e que podiam muito bem ajudar a refazer o caminho do dinheiro. Em tempo: todos os políticos citados negam ter recebido pagamentos ilícitos da Odebrecht.

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