FelipeMoura Brasil

Independência ou vassalagem

27.09.19

Jair Bolsonaro reafirmou na Assembleia-Geral das Nações Unidas, em Nova York, no dia 24 de setembro, o “compromisso intransigente” do Brasil “com o combate à corrupção e à criminalidade, demandas urgentes da sociedade brasileira”.

“Seguiremos contribuindo, dentro e fora das Nações Unidas, para a construção de um mundo onde não haja impunidade, esconderijo ou abrigo para criminosos e corruptos.”

Ou se contribui para a construção de um mundo onde não haja impunidade, ou se faz pressão contrária à investigação de um ministro abrigado por Lula no STF que abriu um inquérito ilegal para se blindar contra informações e apurações incômodas.

“Vocês querem me foder! Vocês querem foder o governo!”, gritou Flávio Bolsonaro, em chamada pelo WhatsApp para Selma Arruda, a Juíza Selma, de acordo com o relato da então senadora do PSL. Ela deixou o partido após a articulação ativa do filho do presidente, mas não retirou sua assinatura do pedido de criação da CPI da Lava Toga.

“De repente, começaram a desconstruir e quem assinou a Lava Toga está virando bandido”, lamentou a senadora do PSL Soraya Thronicke, referindo-se à pressão bolsonarista de militantes de gabinete e blogueiros de crachá, nas redes sociais, contra a comissão. “Que negócio é esse? ‘Agora assina’, ‘agora tira’… Nós não estamos fazendo absolutamente nada a não ser levantando a bandeira do nosso presidente Jair Bolsonaro. E acabou. O presidente faria a mesma coisa se ele estivesse no Parlamento.”

A bandeira citada por Soraya é justamente a do combate à impunidade, que ficou em segundo plano diante da priorização da recuperação econômica, da defesa da soberania e da Amazônia, da luta contra o comunismo e das demais causas em nome das quais se evita incomodar o ministro que suspendeu a investigação sobre Flávio Bolsonaro.

“Pensei em sair depois dessas coisas do Flávio, mas decidi ficar (no PSL)”, disse o senador Major Olímpio, que tampouco retirou sua assinatura. “O certo vai vencer.”

Nas últimas semanas, dois membros do Conselho Nacional do Ministério Público também mantiveram suas posições em meio a pressões internas e externas, mas não puderam escolher ficar em seus cargos. O Senado rejeitou a recondução dos conselheiros Lauro Machado (por 36 votos a 24) e Dermeval Farias (33 a 15), após ambos votarem a favor de Deltan Dallagnol em análise de representação da senadora Kátia Abreu e de pedido de afastamento do procurador, feito por Renan Calheiros.

“Bandeira queimou o meu nome junto à senadora Kátia Abreu. A partir daí, ela fez o trabalho de articulação nos bastidores. Todos sabemos o nome dos atores que têm a sua força política”, contou Dermerval ao Estadão. Sabemos, sim: Renan Calheiros foi quem indicou o conselheiro Luiz Fernando Bandeira de Mello Filho à Secretaria-Geral da mesa diretora do Senado (e ambos aplaudiram, vale registrar, a aprovação de Augusto Aras para a PGR).

Passou despercebido, no entanto, o discurso de despedida de Lauro Machado do CNMP, proferido no mesmo dia do pronunciamento de Jair Bolsonaro na ONU.

“Dermeval, você me representa, saiba disso. É uma honra ter compartilhado contigo esse processo, essa situação e ouvir a sua manifestação nesse momento”, iniciou Lauro, agradecendo também a Deus, família, colegas e entidades, bem como aos senadores que votaram a favor dele. Faço questão de transcrever o resto:

“Durante minha vida profissional, na qual já estou há mais de 20 anos, sempre tive dois mantras que me guiaram em todos os cargos que exerci no âmbito do Ministério Público. O primeiro deles é: ‘coerência custa caro’. E o outro é que ‘o cargo não honra a pessoa, a pessoa é que honra o cargo’.

Se exercesse esse cargo de forma covarde e conveniente, submetendo-me a patrulhamento vil de consciência, eu não estaria à altura dessa missão. Portanto, paguei o preço político por ser coerente com as minhas convicções de Justiça, imune a alertas ameaçadores que me deixaram ciente de que estava sob prova nestes mais de 180 dias em que meu nome tramitou no Senado Federal.

Após minha rejeição, fui informado de que a minha rejeição foi uma opção minha. De fato, esta foi e sempre será a minha opção.

Sou promotor de Justiça e sempre exerci todos os cargos de representação sob esta perspectiva, buscando atuar com equilíbrio, imparcialidade, isenção e honradez. Jamais negociaria esses valores para agradar a uma parcela do Senado Federal que se incomodou com os meus posicionamentos e do doutor Dermeval que não foram destoantes da técnica, não foram isolados e nem decisivos – especialmente em relação à liberdade da expressão dos membros do MP e integrantes da Lava Jato.

Mas essa parcela do Senado identificou em mim e no conselheiro Dermeval os portadores ideais para este recado que foi mandado ao MP brasileiro. Portanto, se o preço foi o meu segundo mandato no CNMP, pago com tranquilidade, pois nunca tive vocação para Fouché. [Joseph] Fouché, conselheiro Silvio [Amorim], foi um político francês que entrou para a história por falta de compromissos outros que não os consigo mesmo, estando sempre do lado dos mais fortes.

Nunca precisei ser sabujo daqueles que me escolheram para aqui estar. E nem me submeter para o papel de bedel de opinião alheia.

Apenas cumpri o meu papel, como se diz muito aqui nesse plenário. Cada um escolhe o papel que quer cumprir. Como sou um otimista nato, o ponto positivo deste episódio é que a situação ficou transparente e possibilitará ao MP avaliar suas consequências e a esse Conselho, por sua próxima composição, debater as formas de preservar o seu status constitucional de órgão independente e de composição plural, e não se prestando a ser um instrumento de vassalagem do Senado da República ou de qualquer um dos outros Poderes. (…)

Desejo sinceramente sorte e sucesso a todos já aprovados para a próxima composição. E que possam exercer seus mandatos de forma plena e ao final possam ter a certeza do dever cumprido – sentimento que me toma neste momento e levo de volta para o Ministério Público do meu estado de Goiás. Muito obrigado e um abraço a todos.”

Nesses tempos de sabujice e vassalagem explícitas – no CNMP, no Congresso, no STF, na PGR, em gabinetes do Executivo e dos legislativos estaduais, nas redes sociais e no resto da internet –, com patrulhamento vil de consciência, o discurso de Lauro Machado é uma raridade e sua citação educa pelo exemplo contrário.

Em Joseph Fouché — Retrato de um Homem Político, acrescento eu, o biógrafo austríaco Stefan Zweig o descreveu assim: “Quando abandona um partido por traição, não o faz de forma lenta e cuidadosa, não se afasta despercebidamente. Ele se alia ao até então inimigo e assume todo o seu discurso e seus argumentos.”

O mesmo Zweig – que se exilou e se matou no Brasil – biografou Michel de Montaigne, valorizando no ensaísta francês o oposto do que descreveu no “homem político”:

“Não se pode ser demasiado jovem nem desprovido de experiências e desilusões para poder apreciá-lo (Montaigne) corretamente, e o seu pensamento livre e imperturbável se faz muito mais útil para uma geração que, como a nossa, foi lançada pelo destino num levante turbilhante do mundo. Apenas aquele que teve de vivenciar em sua própria alma convulsionada um tempo que, com guerra, violência e ideologias tirânicas, ameaça à vida do indivíduo e a substância mais preciosa dessa vida, a liberdade individual; apenas esse sabe quanta coragem, quanta honestidade e determinação são necessárias, em tais tempos de delírio em massa, para se manter fiel ao seu mais íntimo eu. Somente esse sabe que não há na terra nada mais difícil e problemático do que manter imaculada a independência espiritual e moral em meio a uma catástrofe de grandes proporções.”

Sempre haverá, claro, quem veja no risco de um revés imediato – como a perda do cargo, concretizada no caso de Lauro Machado – uma prova da necessidade de ser mais Fouché e menos Montaigne. Mas negociar valores morais para agradar a quem não os tem é invariavelmente o princípio da vassalagem, da corrupção, da impunidade.

Felipe Moura Brasil é diretor de Jornalismo da Jovem Pan.

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