MarioSabino

O que é uma nação

27.09.19

Dilma Rousseff esteve na Sorbonne, onde teria feito uma palestra. Foi recebida pelo vice-presidente da universidade francesa, Alain Tallon, que a chamou de “a mais ilustre cidadã” do Brasil. Eu pensava que fosse a cantora Anitta.

A Sorbonne foi um dos palcos principais das agitações de maio de 1968, mas antes disso era uma instituição venerável de Paris que só abria as suas portas para gente de respeito. Uma das conferências mais célebres realizadas na Sorbonne teve como protagonista Ernest Renan, em 11 de março de 1882. Escritor, filósofo e historiador, ele tentava, como bom positivista, encontrar alguma racionalidade científica nos eventos humanos. Nessa trilha, ousou, por exemplo, tirar o aspecto sobrenatural da religião, sem destruir a religião. Não deu muito certo, como se pode verificar ao redor.

Ernest Renan foi referência importante para Joaquim Nabuco, o notável abolicionista brasileiro que procurou nos civilizar um pouco. Em Minha Formação, Joaquim Nabuco lhe dedica um capítulo inteiro, em que narra o encontro com o francês, no modesto apartamento dele na rue Vaneau (hoje dificilmente você encontrará um modesto apartamento na rue Vaneau):

Dentro de minutos me aparecia Renan. Na minha vida tenho conversado com muito homem de espírito e muito homem ilustre; ainda não se repetiu, entretanto, para mim, a impressão dessa primeira conversa de Renan. Foi uma impressão de encantamento; imagine-se um espetáculo incomparável de que eu fosse espectador único, eis aí a impressão. Eu me sentia na pequena biblioteca, diante dos deslumbramentos daquele espírito sem rival, prodigalizando-se diante de mim, literalmente como Luís II da Baviera na escuridão do camarote real, no teatro vazio, vendo representar os Nibelungen em uma cena iluminada para ele só.”

O ídolo Ernest Renan ajudou Joaquim Nabuco a fazer contatos no meio intelectual parisiense e até lhe mandou uma cartinha sobre o livro de poesia que o brasileiro havia enviado ao modesto apartamento na rue Vaneau. Nabuco viria a descobrir, ao ler Lembranças de Infância e Juventude, do próprio Ernest Renan, que se tratava de uma espécie de cartinha modelo que o francês expedia aos autores que lhe mandavam livros de poesia. Sempre com elogios, é claro.

Em Minha Formação, Joaquim Nabuco traduz “a traidora página” de Lembranças de Infância e Juventude:

Desde 1851 acredito não ter praticado uma só mentira, exceto, naturalmente, as mentiras oficiosas e de polidez, que todos os casuístas permitem, e também os pequenos subterfúgios literários exigidos, em vista de uma verdade superior, pelas necessidades de uma frase bem equilibrada ou para evitar um mal maior, como o de apunhalar um autor. Um poeta, por exemplo, nos apresenta os seus versos. É preciso dizer que são admiráveis, porque sem isso seria dizer que eles não têm valor e fazer uma injúria mortal a um homem que teve a intenção de nos fazer uma civilidade.

O positivismo era bem mais educado do que o marxismo, mas foi varrido do mapa acadêmico. Resultado: 1968 ainda é comemorado, mas Ernest Renan foi esquecido quase que completamente (a maior parte das ideias ganha cabelos brancos e morre. Algumas em paz; outras em agonia). Digo “quase” porque a conferência que ele proferiu na Sorbonne em 11 de março de 1882 sobreviveu. Há quem a leia. Intitula-se “O que é uma nação?”.

A questão era relevante numa Europa que ainda desenhava o seu mapa, com a recente criação de Itália e Alemanha e o início do esfacelamento do Império Otomano. A conferência de Ernest Renan é tão fascinante que dá vontade de traduzi-la toda. Para responder à pergunta do título, ele parte da Antiguidade, para afirmar que as nações são algo de muito recente na história. Que as antigas repúblicas, reinos, confederações e impérios não constituíam nações no sentido moderno. Atenas e Esparta eram “pequenos centros de admirável patriotismo; mas eram “cidades com um território relativamente restrito. A Gália, a Espanha, a Itália, antes da absorção no Império Romano, eram um conjunto de tribos, frequentemente ligadas entre si, mas sem instituições centrais, sem dinastias. O Império assírio, o Império persa, o Império de Alexandre também não foram pátrias”. Ernest Renan acreditava que o Império Romano esteve bem mais perto de ser uma pátria, como uma “grande associação, sinônimo de ordem, de paz e de civilização”, mas a sua vastidão impedia a formação de “um Estado na acepção moderna”.

As nações, segundo Ernest Renan, começaram a formar-se com as invasões germânicas de territórios do Império Romano do Ocidente e o consequente cadinho étnico-cultural que delas resultaram. Ele, então, passa a examinar quais seriam os elementos determinantes do moderno conceito de nação. Não seria a etnia, como provava a própria França “céltica, ibérica e germânica”, nem uma língua comum, como demonstravam Estados Unidos e Inglaterra, a América espanhola e a Espanha, para não falar da Suíça, uma nação com quatro idiomas. Não seria também a religião, que inclusive se tornara escolha individual,  embora na Antiguidade ela fosse parte indissociável do que se entendia como nacionalidade: “Na sua origem, a religião estava na própria existência do grupo social. O grupo social era uma extensão da família. A religião, os ritos, eram de família. A religião de Atenas era o culto da própria Atenas, dos seus fundadores mitológicos, das suas leis, dos seu costumes”.

Interesses materiais coincidentes, por sua vez, não seriam suficientes para formar uma nação, porque “há na nacionalidade um lado de sentimento”. Eles fazem apenas bons acordos comerciais. Quanto à geografia, às fronteiras naturais, elas são “parte considerável na divisão de nações”, mas “a terra é o substrato, o campo da luta e do trabalho; o homem fornece a alma. O homem é tudo na formação desta coisa sagrada que chamamos um povo. Nada de material é suficiente. Uma nação é um princípio espiritual, resultante de complicações profundas da história, uma família espiritual, não um grupo determinado pela configuração do solo”.

Ernest Renan conclui a sua conferência na Sorbonne, onde hoje Dilma Rousseff tartamudeia em francês, afirmando que a alma de uma nação é composta por duas coisas. “Uma está no passado, outra no presente”, diz ele. “Um passado heroico, de grandes homens, de glória (entendo a verdadeira), eis o capital social sobre o qual se assenta uma ideia nacional. Ter glórias em comum no passado, uma vontade comum no presente; ter feito grandes coisas juntos, querer fazer ainda, eis as condições essenciais para ser um povo”, não importam a conformação das fronteiras, a diversidade de etnias e de língua.

E ele completa:

“Uma nação é, assim, uma grande solidariedade, constituída pelo sentimento de sacrifícios que fizemos e daqueles que estamos ainda dispostos a fazer. Ela supõe um passado; ela existe, contudo, no presente por um fato tangível: o consentimento, o desejo claramente expresso de continuar a vida em comum. A existência de uma nação é um plebiscito diário, assim como a do indivíduo é uma afirmação perpétua da vida.”

É com misto de desapontamento geracional e tristeza pessoal que me dou conta de que o Brasil está longe de fazer esse plebiscito diário. Mas sigamos tentando. Quem sabe um dia consigamos deixar de ser um país em que a burrice tem um passado glorioso e um futuro promissor, como disse Roberto Campos, para nos tornarmos uma nação de verdade. Devemos isso aos nossos filhos, e os nossos filhos aos nossos netos, e assim por diante nos dias e noites do tempo.

PS: não desanime, ainda teremos juízes na nossa Berlim.

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