O general Jesus Corrêa: ele sai dizendo haver "organizações criminosas" instaladas no Incra

‘Pedra no sapato’

General demitido do Incra sai atirando e afirma haver organizações criminosas instaladas no órgão. Um auxiliar dele foi mais além em entrevista a Crusoé: disse que Nabhan Garcia, amigo do presidente da República e secretário do Ministério da Agricultura, opera em favor de interesses escusos
04.10.19

“Caríssimos amigos.
Em resposta ao apreço às manifestações de solidariedade, esclareço sinteticamente…
O motivo da saída de nossa equipe do INCRA é simples…
Levei um grupo qualificado para uma tarefa de saneamento de um órgão que era um esgoto.
Realizamos uma boa parte dessa tarefa.
Estávamos iniciando a parte mais complexa, ao atacar as 30 superintendências do INCRA, onde há, em algumas delas, verdadeiras organizações criminosas instaladas. Rondônia e Mato Grosso são dois exemplos.
Basta ver a matéria do Fantástico do último domingo sobre o que acontece em Rondônia.
Como estávamos contrariando interesses e agindo com ética e honestidade, passamos a ser “pedra no sapato”.
Melhor sair por esse motivo do que por incompetência ou roubo.
Honramos nossas histórias, nossos nomes e o grande legado de honestidade , verdade e vergonha na cara transmitido pelos nossos pais.
Felizes não saímos, pois sabíamos que estávamos no caminho certo.
Mas, encerramos nossa missão satisfeitos por temos doado o melhor de cada um de nós.
Um grande abraço para todos.”

A mensagem acima, obtida por Crusoé, foi escrita na manhã desta quinta-feira, 3, pelo general João Carlos de Jesus Corrêa, presidente nos últimos noves meses do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária, o Incra, e repassada por WhatsApp a um grupo restrito de funcionários do órgão. Era a sua carta de despedida. Escolhido para o cargo após uma intermediação que envolveu o então ministro da Secretaria de Governo, general Carlos Alberto dos Santos Cruz, a ministra da Agricultura, Tereza Cristina, e o secretário de Assuntos Fundiários da pasta, Nabhan Garcia, Corrêa foi demitido nesta semana do posto com mais três diretores do órgão, todos militares.

A narrativa oficial foi a de que a queda do trio ocorreu por pressão da bancada ruralista, que estaria insatisfeita com a velocidade do processo de regularização fundiária em curso no atual governo. Algo que a maioria dos ruralistas nega e, conforme a própria mensagem do general mostra, aponta para a existência de outros motivos muito mais rasteiros. Os militares demitidos, relata o general no texto, estavam “contrariando interesses” no momento em que atacavam “organizações criminosas” do Incra nos estados e passaram ser “pedra no sapato” de grupos incrustados no órgão. Mas a quem o general se refere exatamente?

Quem esclarece é o coronel da reserva Marco Antonio dos Santos, demitido com o general Jesus Corrêa. Santos era diretor de Gestão Estratégica do Incra. Formado em inteligência pela Escola Superior de Guerra, com mestrado e doutorado em estudos militares, ele revelou a Crusoé as pressões que Nabhan Garcia, que se gaba de ser amigo de Jair Bolsonaro, exercia sobre o comando do órgão para atender seus próprios interesses e os de seu grupo político. A acusação é grave: o coronel diz que Nabhan vinha pressionando o Incra para regularizar terras, fazendas em especial, de gente ligada a ele. “Caímos porque incomodamos Nabhan Garcia e seu grupo, que é um pequeno segmento da bancada ruralista. Eles julgavam que nós não estávamos atendendo às titulações de terras que ele pedia. Titulação em cima do grupo dele. Sempre queria que titulasse fazendas etc. Nunca disse para titular as pessoas assentadas em programas de reforma agrária.”

O militar não dá os nomes, mas servidores do órgão que conversaram com a Crusoé contam que os parlamentares mais próximos de Nabhan — e que, portanto, estariam agindo conjuntamente na pressão — são os deputados Lucio Mosquini, do MDB de Rondônia, e Nelson Barbudo, do PSL do Mato Grosso. Justamente os dois estados que o general cita na mensagem de WhatsApp como focos de organizações criminosas. O coronel Santos, de forma genérica, explica como esses grupos atuam: “É corrupção”. Ele diz tratar-se de estruturas instaladas “há muito tempo nas duas superintendências”.

DivulgaçãoDivulgaçãoNabhan Garcia, à esquerda, com Bolsonaro e Luciano Bivar, presidente do PSL: segundo coronel, Nabhan tem feito pedidos escusos
Segundo o coronel, as organizações criminosas no Incra operam de diferentes maneiras. Por exemplo, diz ele, “na contratação de mão de obra terceirizada com empresas, nos grupos que controlam o sistema de georreferenciamento, nos que controlam a parte de vistorias e desenvolvimento de assentamentos e que gastavam dinheiro a rodo sem resultado. Tem até quem trabalhava com desvio de material e patrimônio”. O relato dá conta da existência de uma máquina de malfeitos em um dos órgãos mais conhecidos da administração federal. “A corrupção ali era de esquerda, de direita, de centro. A corrupção era corrupção. Não estava ligada somente aos partidos que ocupavam as diretorias.”

O PT controlou o Incra durante toda a era Lula e Dilma Rousseff. No governo Michel Temer, o comando passou para o Solidariedade e o MDB. Um dado curioso: uma das diretoras mais antigas do órgão sobrevive ali até hoje. Trata-se de Eva Sardinha, indicada pelo ex-presidente José Sarney. Neste ano, com a posse de Bolsonaro, os militares ocuparam os postos-chave com a promessa de uma faxina no órgão. Perderam o jogo. “A gente foi acertando, manobrando para que esse pessoal não ficasse em função-chave. Mas você não acaba com o crime organizado em uma canetada. É crime organizado.”

O coronel conta que Nabhan gostava de ser chamado de “ministro” e que sempre ligava para ele questionando o que os militares estavam fazendo. “Eu dizia: ‘trabalhando’. Ele dizia ‘faz isso, faz isso’. Eu dizia: ‘ministro, isso não pode ser feito assim. Tem que haver o devido processo legal”. Ele falava ‘não’. Eu falava: ‘ministro, a questão será analisada tecnicamente’.” Ele queria que titulasse. Saía por aí falando que o Incra precisa titular. Que éramos lentos. Peraí. Ele nunca esteve no Incra para verificar como é o processo de titulação. Era alguém que queria resolver o problema do grupo que ele representava. O que posso dizer é que Nabhan não suportava o trabalho técnico que estávamos fazendo.”

Qual pedido mais espúrio que ele fez? “Deixa para lá. Deixa essa bola para ele. A grande preocupação dele era Acre, Rondônia e Mato Grosso. Só posso dizer que coincide com as áreas mais problemáticas do Incra. Crime organizado e bagunça administrativa.”

Agência BrasilAgência BrasilTereza Cristina: para a ministra, Nabhan opera para derrubá-la
A tensão foi crescendo e a ministra Tereza Cristina tentou apaziguar. Em vão. Nas duas reuniões promovidas por ela em seu gabinete, nos últimos dias, Nabhan e o general Corrêa quase foram às vias de fato. O ruralista disse que a ministra precisava trocar a diretoria do Incra. O general o chamou de “mau caráter”. Nabhan, então, passou a difamá-los. Nas audiências de que participava, dizia que eles eram a “milicada”, termo pejorativo para “militares”. Foi cobrado por isso. “Disse a ele que não somos cangaceiros nem milicianos. Que não somos moleques e que éramos sérios”, relata o coronel Santos.

No início de setembro, Tereza Cristina levou finalmente o problema a Bolsonaro. O presidente deu a ela carta branca para resolver da maneira que achasse melhor. A ministra decidiu manter a equipe de militares, cujo trabalho ela apreciava. Teve o apoio do presidente da Frente Parlamentar da Agropecuária, deputado Alceu Moreira, do MDB gaúcho. Nabhan não aceitou. Primeiro, fez pedido formal ao presidente para que os militares fossem demitidos. Bolsonaro negou. Nesta semana, porém, cedeu a um segundo pedido de Nabhan. Mas por quê? “Aí você tem que perguntar para o Bolsonaro. Até onde sabemos a ministra estava viajando e quando retornou Nabhan estava no gabinete e ela recebeu isso já meio que decidido”, afirma o coronel. Ou seja, Nabhan atropelou Tereza.

A demissão coincidiu também com um movimento que chamou a atenção dos militares. Na semana passada, foi confirmado que o Incra receberia 210 milhões de reais para titulação de propriedades na Amazônia. O planejamento para a destinação dos recursos estava em fase avançada quando o coronel Santos foi informado por um servidor de terceiro escalão que houve um rearranjo no montante e, também, na destinação dos valores. “Virou 287 milhões e com todo o planejamento que tínhamos feito alterado, envolvendo possibilidades de acordos com municípios, universidades e estados. O que faz parecer isso?”, indaga. Crusoé tentou falar com Nabhan Garcia, mas até o fechamento da edição não obteve retorno.

Na tarde de quinta-feira, 3, Bolsonaro e Tereza Cristina conversaram reservadamente. Ela se mostrou incomodada com a situação. Avaliou que Nabhan opera para derrubá-la. O presidente concordou. Ficou decidido que no retorno da viagem que ela faria horas depois para a Alemanha, os dois voltariam a se reunir. A ideia é que, nesse encontro, seja batido o martelo sobre o futuro do Incra, de Nabhan Garcia e da própria ministra. O desenrolar da história poderá trazer à luz respostas cruciais para a crise instalada no ministério. Uma delas guarda relação com o poder do próprio Nabhan, o amigo do presidente. É sabido que o ruralista teve um desempenho importante na campanha eleitoral de 2018, especialmente ao aproximar Bolsonaro de alguns setores do agronegócio que se mostravam resistentes ao então candidato. Será que ele, de novo, vai prevalecer?

Os comentários não representam a opinião do site. A responsabilidade é do autor da mensagem. Em respeito a todos os leitores, não são publicados comentários que contenham palavras ou conteúdos ofensivos.

500
Mais notícias
Assine agora
TOPO