MarioSabino

Gilmar cumpre suas promessas

18.10.19

O ministro Gilmar Mendes não exibe mais os cabelos e as sobrancelhas brancos dos tempos em que elogiava a Lava Jato. Em 2015, ele disse, entre outras boas frases, que a operação havia revelado que o Brasil vinha sendo comandado por um cleptocracia. Quatro anos mais tarde, nos dias que antecederam o novo julgamento das açōes contra a prisão de condenados em segunda instância, Gilmar Mendes apareceu nos programas Roda Viva e Conversa com Bial, para renovar os seus ataques à Lava Jato, com os cabelos e sobrancelhas escuros e bem aparados. Nada dos “cheveux en bataille”, como dizem os franceses. Permanecem poucos, mas deixaram de ser despenteados. O olhar está jovial. Também achei o ministro mais magro.

Com todo o respeito, é preciso admitir que o homem está um gato. Não sou gay, não. E estou longe de achar que seria um problema sê-lo. Já escrevi que não me incomodo quando me xingam de “careca” ou “veado”. Que problema há em ser uma coisa ou outra? Ou uma coisa e outra? Na minha opinião, é preciso até ser muito cisgênero masculino para elogiar a beleza física de um cisgênero semelhante, sem implicações que não sejam apenas de ordem estética. Já o que Gilmar Mendes pensa sobre o assunto, não sei. No programa Conversa com Bial, ao fustigar a Lava Jato, ele disse: “O que digo é que de fato nós devemos ter muito cuidado nessas relações com policiais, procuradores, podemos até ter fetiches sexuais, mas não nos envolver com suas teses”. Consta que Gilmar Mendes fez alusão maldosa a um colega de STF que diverge radicalmente dele quanto à Lava Jato. Não posso crer. Os seus másculos porta-vozes na imprensa até podem se dar a esse desfrute — mas não ele, integrante do excelso STF que sabe que homofobia é crime, por decisão do próprio tribunal.

Se não foi alusão maldosa, foi o quê? Será que Gilmar Mendes andou recebendo informação de gente que espiona ilegalmente a vida alheia? Também não consigo acreditar. Apesar de ele admitir o uso de mensagens roubadas para transformar Sergio Moro em juiz suspeito, naquele habeas corpus impetrado pelo corrupto e lavador de dinheiro, o ministro do Supremo tem, evidentemente, princípios éticos rígidos para não se meter com cúmplices de hackers estelionatários. De onde vem, então, a referência a “fetiche sexual”, na sua diatribe contra quem apoia a Lava Jato? A referência me faz pensar num trecho de Hamlet, de Shakespeare. Foi citado pelo francês Frédéric Martel, no livro Sodoma — Enquête au Coeur du Vatican.

O assunto de Martel é a homossexualidade na Igreja Católica. De acordo com ele, 80% dos padres, bispos e cardeais são gays. E dos últimos cinco papas, três eram homossexuais. Trata-se, de um dos frutos do celibato obrigatório, segundo o autor. A queda no número de vocações para o sacerdócio, diz Martel, está diretamente ligada ao fato de a homossexualidade ter deixado de ser tabu dos anos 1970 para cá — antes, para evitar constrangimentos sociais, muitos gays refugiavam-se na batina. Você pode não concordar com a tese geral de Martel, mas ainda assim a sua reportagem é fascinante.

Não estou sugerindo aqui que 80% dos ministros do Supremo Tribunal Federal tenham se refugiado na toga para esconder a sua própria homossexualidade. Até porque ministros do STF podem se casar, inclusive com advogadas bem-sucedidos. Quem falou em “fetiche sexual” foi Gilmar Mendes, não esqueçamos. Meu ponto é outro. Martel usa de um trecho de Hamlet para sugerir que a insistência dos ataques virulentos de prelados tradicionalistas a gays é mostra de que tais prelados também o são — e fazem de tudo para esconder a sua orientação homossexual. No trecho da peça de Shakespeare citado por Martel, o príncipe Hamlet organiza a encenação de uma pantomima diante da rainha Gertudres, sua mãe, e do rei Cláudio, seu tio, que ascendeu ao trono depois da morte do pai de Hamlet. Instigado pelo fantasma paterno, ele desconfia de que o tio matou o pai para casar-se com a mãe, sua cúmplice, e assumir o poder na Dinamarca. O entrecho do regicídio é interpretado sob outros nomes na pantomima, de maneira tal a causar reações indignadas no rei e na rainha — reações tão indignadas que deixam claro para Hamlet que, sim, ambos haviam assassinado o seu pai. O rei Cláudio retira-se ofendido e a mãe, quando indagada sobre a sua opinião a respeito da história encenada, responde:

“Parece-me que a dama faz muitas promessas.”

“Mas ela cumpre todas”, replica Hamlet, já praticamente convencido de que a mãe e o tio atraiçoaram o seu pai.

Resume Martel, ao destacar a frase da rainha: “A fórmula, que revela a hipocrisia, significa que, quando se protesta muito vivamente contra qualquer coisa, há grande chance de que se esteja sendo insincero. Esse excesso trai. Hamlet compreende pela reação da mãe, e pela do rei, espelhados na rainha e no rei da pantomima, que o casal provavelmente envenenou o seu pai”.

Ou seja, transportando para o tema do livro do francês, os prelados homofóbicos estariam menos interessados em conservar valores familiares e cristãos do que em esconder a sua própria homossexualidade.

Como Shakespeare dificilmente está errado (afinal de contas, foi “o inventor do humano”, na definição do crítico americano Harold Bloom, morto nesta semana), Gilmar Mendes seria um cavalheiro que cumpre muitas promessas, a julgar pela sua volubilidade jurisprudencial e a sua ira contra procuradores e Sergio Moro. Há quatro anos, ao afirmar que a Lava Jato revelara a cleptocracia que vinha comandando o país, ele também estaria desempenhando um papel, só que com atuação um tantinho menos exagerada (e aparência mais venerável). Por estar do lado certo, teria mostrado porção menor da sua essência do que agora, que está do lado errado, vociferando histrionicamente em prol do Estado de Direito, enquanto defende a soltura dos bandidos e, por que não, a prisão dos mocinhos, essa “gente ordinária” (e que não percebe a modernidade refletida no novo look do ministro).

Nessa pantomima no STF, prefiro o Gilmar Mendes encanecido ao Gilmar Mendes gato. E não há nenhum fetiche sexual na minha preferência.

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