Adriano Machado/Crusoé

O dono do Supremo

Patrocinador da campanha para impedir as prisões após condenação em segunda instância, Gilmar Mendes recorre aos métodos da política para fazer a corte se curvar às suas vontades
18.10.19

“É algo incompreensível, incompreensível para o senso comum, mas também para o senso técnico. Não se conhece no mundo civilizado um país que exija o trânsito em julgado.” Era fevereiro de 2016. Dilma Rousseff era presidente da República, Eduardo Cunha era presidente da Câmara, Renan Calheiros era presidente do Senado e a Lava Jato aterrorizava a classe política. No Supremo Tribunal Federal, Gilmar Mendes, com a ênfase que lhe é peculiar, em frases como a que abre este texto, era uma das mais ativas vozes favoráveis à operação no julgamento que deu à força-tarefa de Curitiba um de seus instrumentos mais eficazes: a prisão após condenação em segunda instância. A decisão representava uma virada no entendimento da corte, que, sete anos antes, decidira que um réu só deveria ir para a cadeia ao final do processo, com o chamado trânsito em julgado.

Três anos depois, veio a metamorfose. Gilmar virou o maior patrocinador da ideia de voltar atrás, em um movimento político-jurídico que começou a tomar forma nesta quinta-feira, 17, no plenário da Suprema Corte e pode enterrar os avanços experimentados pelo país no combate à impunidade, atingir frontalmente a maior operação anticorrupção da história e beneficiar ilustres condenados por desvio de dinheiro público. Personagens emblemáticos como o ex-presidente Lula e o ex-ministro José Dirceu, que já foram responsabilizados pelo esquema de corrupção na Petrobras, podem sair da prisão. Além disso, outras figuras importantes da cena política podem se livrar do risco de ir para a cadeia no curto prazo e, como efeito colateral do movimento, mais de 4,8 mil presos por outros tantos crimes podem ganhar as ruas novamente. O julgamento será retomado na próxima quarta-feira e a tendência é que a corte proíba as prisões em segunda instância, acolhendo o novo discurso de Gilmar Mendes. Mas por que, afinal, o Supremo vai dar esse passo atrás? E como Gilmar conseguiu impor sua vontade?

A política é apontada por quem transita pela corte como o principal fator a mover o ministro e sua liderança nesse processo. Para entender sua mudança de opinião, é preciso voltar a 2016. Em março daquele ano, o Brasil estava em convulsão. O então juiz Sergio Moro, atual ministro da Justiça, era o titular dos processos da Lava Jato em Curitiba e havia tornado públicos os famosos áudios de conversas entre Dilma e Lula. Um dos diálogos interceptados sugeria que a nomeação do petista para o cargo de ministro da Casa Civil era uma forma de protegê-lo do avanço da operação. Com base nas conversas, Gilmar barrou a posse de Lula. Além disso, ordenou que as investigações sobre ele ficassem em Curitiba, onde tramitariam mais rapidamente. Sem Lula na Casa Civil e com a Lava Jato a mil devido a acordos de colaboração firmados com investigados que temiam ser presos, Dilma não conseguiu se segurar no cargo e caiu. Era o auge da boa convivência entre os integrantes da operação e Gilmar.

Fátima Meira/Futura Press/FolhapressFátima Meira/Futura Press/FolhapressToffoli em plenário nesta quinta: alinhamento estratégico com Gilmar
Mas foi também a partir desse momento que o novo Gilmar começou a se moldar. A inflexão do ministro foi ocorrendo aos poucos. No final daquele ano, conforme a operação mantinha o tom contra políticos corruptos, ele já falava em “excessos” nos seus procedimentos. Àquela altura, já se sabia também que os investigadores tentavam alcançar o Judiciário. “Há [excessos], tanto é que houve concessão de habeas corpus. Para mim, por exemplo, no que diz respeito à prisão provisória sem limites, isso me parece excessivo e precisa ser discutido no TRF [Tribunal Regional Federal], no STJ [Superior Tribunal de Justiça] e no Supremo”, disse Mendes em 24 de outubro. Em 2017, os ataques do ministro recrudesceram no mesmo ritmo em que a operação engolfava figuras ilustres do PSDB e o governo de então, de Michel Temer, passou a virar alvo. Gilmar, amigo declarado de Temer, criticou as “prisões alongadas que se determinam em Curitiba”. Declarou que uma denúncia feita pelo Ministério Público era quase “uma brincadeira juvenil”. Além dos emedebistas investigados, o PT, claro, gostou. E uma parte importante do establishment político passou a ver nele um aliado. Encontros com lideranças passaram a ser frequentes. Mas faltava algo: a influência sobre a agenda da corte. Em 2018, a posse de Dias Toffoli na presidência possibilitou isso.

A relação de Toffoli com Gilmar já era de muita proximidade. O próprio Lula, certa feita, o pegou pelo braço em um evento em Brasília e quis saber sobre a relação íntima entre os dois, uma amizade outrora impensável. Ambos já frequentavam as casas e gabinetes um do outro. Gilmar, espertamente, viu em Toffoli um possível aliado e, aos poucos, foi ganhando a sua simpatia ao mesmo tempo em que apresentava a ele as gostosuras do poder e o ajudava a ampliar sua rede de contatos. Em suma, o velho ministro foi aos poucos mostrando ao novato como fazer para valorizar a caneta que ele tem em mãos, uma fonte inesgotável de poder. A relação foi se estreitando mais e mais. Recentemente, depois que as mulheres de ambos, as advogadas Guiomar Mendes e Roberta Rangel, entraram na mira de um grupo especial da Receita Federal que investigava possíveis fraudes tributárias em suas atividades profissionais, a amizade virou uma aliança ainda mais estratégica. E se somou aos interesses dos amigos dos dois ministros, um oriundo das hostes petistas e outro alinhado aos tucanos e emedebistas. Estava aberta uma janela de oportunidade para transformar a agenda do Supremo em instrumento para enfraquecer a Lava Jato.

O movimento foi reforçado pelos vazamentos das conversas roubadas do aplicativo Telegram de integrantes da operação. Com as mensagens, criou-se o caldo para que a corte começasse aos poucos a rever decisões que antes abriram caminho para que a investigação deslanchasse, E parte das excelências começou a impor travas a métodos utilizados pelos investigadores. É o caso de uma decisão recente do próprio Dias Toffoli que limitou a atuação do antigo Coaf, o Conselho de Controle de Atividades Financeiras, rebatizado como Unidade de Inteligência Financeira. Outros recursos em andamento na corte, como o que pede a declaração de suspeição de Sergio Moro no julgamento de Lula, viraram uma espada de Dâmocles sobre a operação e seus integrantes. Alguns desses recursos chegaram a ser acolhidos, sempre com Gilmar liderando o coro dos críticos. Foi nessa toada, por exemplo, que o tribunal ordenou a primeira anulação de uma sentença de Sergio Moro pela filigrana jurídica de que o réu delatado deve fazer alegações finais depois do réu delator — regra que não existia e que nada muda no rumo do processo.

Agência BrasilAgência BrasilO voto da ministra Rosa Weber deve decidir a questão no plenário
A revisão da prisão em segunda instância coroa esse processo. Há tempos Gilmar vinha arquitetando o julgamento. Ele encontrou embasamento jurídico para sustentar a guinada: o de que o Supremo havia decidido que a prisão era apenas uma “possibilidade” que passou a virar regra nas instâncias inferiores. Convenceu Toffoli de que havia um número significativo na casa favorável à retomada do debate, já que Ricardo Lewandowski queria e Marco Aurelio e Celso de Mello, defensores históricos da proibição da prisão imediata após condenação em segunda instância, também reivindicavam uma nova análise. Do outro lado, Luís Roberto Barroso, Edson Fachin, Luiz Fux e Cármen Lúcia vinham resistindo à ideia. Mas passaram a ser minoritários e não mais tinham poder sobre a agenda da casa — Cármen já havia deixado a presidência.

Hoje, o resultado, como sempre no STF, é imprevisível, mas a tendência é que o modelo seja mais uma vez revisto. Será a terceira mudança nas últimas três décadas. O entendimento de que a prisão deveria ocorrer após condenação em segunda instância prevaleceu entre 1988, quando foi promulgada a Constituição vigente, até 2009, ano em que o STF mudou a jurisprudência e determinou que as prisões só poderiam ocorrer após o julgamento do último recurso. Em 2016, o então relator da Lava Jato na corte, Teori Zavascki, liderou a virada. No julgamento ora em curso, os votos de dois ministros são considerados determinantes. Um deles é o de Rosa Weber, que sempre foi contra a prisão em segunda instância, mas no julgamento do habeas corpus de Lula, em abril de 2018, posicionou-se a favor alegando que deveria respeitar a jurisprudência vigente. O outro é o de Alexandre de Moraes, que era a favor da prisão em segunda instância, mas passou a ser contabilizado como um possível voto contra tendo em vista a aproximação com Gilmar e Toffoli.

Há algumas possibilidades no horizonte. Uma delas é que o tribunal estabeleça um ponto intermediário e decida que os réus podem ser presos após a confirmação da sentença em terceira instância – se o Superior Tribunal de Justiça confirmar as decisões das duas instâncias inferiores, a cadeia estaria autorizada. O próprio Dias Toffoli chegou a propor essa solução. Mas, ao que tudo indica, o movimento de Gilmar por uma decisão mais radical, que permita a liberdade até o final da tramitação de todos os recursos, vem ganhando força nos últimos tempos.

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A segurança reforçada no primeiro dia do julgamento dava o tom da relevância do tema em discussão. À diferença das sessões corriqueiras, os cidadãos interessados em acompanhar a votação eram obrigados a desembarcar antes da entrada do prédio, na Praça dos Três Poderes. Os esperados manifestantes que justificariam o esquema especial de proteção não apareceram. Na portaria, apenas estudantes e advogados aguardavam em uma extensa fila para ocupar uma das cadeiras do plenário da corte. Os que chegaram em cima da hora tiveram que se contentar em assistir a sessão em um telão colocado no andar superior. Enquanto os que esperavam na fila debatiam o tema do julgamento e seu impacto na Operação Lava Jato, Dias Toffoli fez questão de, ao abrir o julgamento, tentar desvincular a decisão do interesse de personagens que podem ser beneficiados por ela, como Lula. “Que fique bem claro que as presentes ações e o presente julgamento não se referem a nenhuma situação particular. (…) O objetivo é dar o alcance efetivo e a interpretação a uma das garantias individuais previstas na nossa Constituição Federal. Esse entendimento se estenderá a todos os cidadãos brasileiros”, afirmou.

Depois dele, o ministro Marco Aurélio Mello, relator do processo, leu seu relatório e aproveitou para disparar contra o presidente do STF. O motivo foi uma decisão de Toffoli que cassou uma liminar dele próprio, expedida em dezembro de 2018, mandando soltar todos presos após condenação em segunda instância, Lula incluído. Mello realçou seu estranhamento com a postura de Toffoli contra sua liminar àquela altura. E disparou: “O presidente é coordenador e não superior hierárquico dos pares. (…) Tempos estranhos em que verificava até mesmo a autofagia. Aonde vamos parar?”, indagou. A resposta de Toffoli veio ao final da sessão, por volta das 18h30, quando o presidente do STF, com a voz embargada, elogiou o relatório de Marco Aurélio e disse que sua admiração por ele só aumentava. Na próxima quarta, 23, os ministros começam a votar. As rusgas entre eles serão expostas. E ficará evidente, mais uma vez, o racha entre as duas alas – a que defende Lava Jato, com Fachin e Barroso à frente, e a que se esforça para limitar a operação.

A possível mudança de entendimento do tribunal sobre as prisões após condenação em segunda instância terá grande impacto sobre o combate à corrupção no país. A autorização concedida pelo Supremo em 2016 tem eficácia, principalmente, contra políticos e poderosos que, mesmo tendo dinheiro para pagar bons advogados, não conseguem mais alongar tanto os processos e se livrar das punições. Sem medo da prisão, as delações premiadas, outro instrumento fundamental para os investigadores em geral, devem diminuir. Além disso, o país volta a ser uma exceção à regra. Em grande parte do mundo desenvolvido, a prisão após condenação em segunda instância é permitida. Estados Unidos, Inglaterra, França, Alemanha, Canadá, Itália e Argentina são alguns exemplos. Os americanos chegam a ser até mais rigorosos: o cumprimento da pena começa, muitas vezes, após a condenação em primeira instância. Gilmar, o porta-estandarte da mudança, tem dito que está pronto para o embate. Em 2016, quando sua posição era outra, para além de dizer que não se conhecer no mundo civilizado um país que exija o fim do processo para prender os réus, ele anotou como positiva a prisão de personagens graúdos, algo que poderia até levar à melhoria das condições das cadeias brasileiras. Em favor da tese que sairia vitoriosa naquela ocasião, destacou que os réus vão perdendo a presunção de inocência à medida que o processo avança – para prender, portanto, não seria necessário o tal trânsito em julgado. Era, de fato, um outro Gilmar. Mas o Brasil continua a ser o mesmo. O autoconcedido papel de dono do Supremo, de julgador capaz de levar a corte para lá ou para cá, está, mais do que nunca, evidente.

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