Reprodução/redes sociaisManifestantes em Santiago: com redes sociais, custo de manifestações caiu, e o mundo ficou mais instável

Turbulências no modelo chileno

Protestos são decorrência do crescimento da classe média, que quer serviços de primeiro mundo e alívio econômico
25.10.19

Ao longo da última semana, os chilenos acordaram sem saber como seria a própria rotina. Todos os dias, o Exército anuncia qual é o horário do toque de recolher, cidade por cidade. Escolas e universidades suspenderam as aulas. Das sete linhas de metrô, apenas uma seguia funcionando após os atos de vandalismo e os protestos. Em muitos escritórios da capital Santiago, o expediente começa perto das 11 horas, com a chegada dos primeiros funcionários, para terminar no início da tarde, com as manifestações ganhando corpo. Ao toque de recolher, que pode variar entre 20 e 22 horas, todos já estão em suas casas. É quando policiais e soldados das Forças Armadas passam a patrulhar as ruas e a deter os que desafiam a ordem. Os saques a lojas e supermercados ocorrem durante a noite. Dos dezoito mortos contados nos últimos dias, a maior parte foi carbonizada dentro desses estabelecimentos.

As manifestações tiveram início com estudantes secundaristas protestando contra um aumento de 17 centavos nas tarifas do metrô. No início de outubro, eles organizaram as primeiras “evasões massivas”. Jovens se concentravam do lado de fora de uma estação e entravam todos juntos, pulando as catracas. “Evadir, não pagar. Outra forma de lutar”, gritavam. Com o tempo, grupos anarquistas e comunistas se juntaram e os protestos se tornaram violentos.

De uma hora para outra, muitos latino-americanos, incluindo vários brasileiros, passaram a ver na crise do Chile a confirmação de suas desconfianças com o modelo adotado pelo país. Pelos olhos deles, as políticas que impulsionaram o crescimento econômico – responsável por um PIB per capita que é quase o dobro do brasileiro – seriam na realidade as explicações para a insatisfação demonstrada nas cidades chilenas. Entre os motivos estaria a previdência chilena. Em artigo no jornal Folha de S.Paulo, o cientista político Fernando Schüler ironizou o argumento: “O sujeito tem 18 anos, sente que terá um problema aos 60 e decide saquear o Walmart ou ir à rua com um coquetel molotov, para explodir o metrô de Santiago”.

Reprodução/redes sociaisReprodução/redes sociaisÔnibus queimados nos protestos: manifestações sem liderança organizada
Como não há uma agenda comum de pedidos ou uma liderança organizada, sobram interpretações. Paralelos foram traçados com os protestos que ocorreram no Brasil, em 2013, após o anúncio de aumento no preço das passagens de ônibus em São Paulo. Nas tais “Jornadas de Junho”, também não havia um grupo organizado ou uma pauta estruturada. Os brasileiros pediam educação e saúde com “Padrão Fifa” e o combate à corrupção. A Lava Jato prosperou, mas das outras demandas pouco se ouviu depois. Aqui, como no Chile, as redes sociais facilitaram a mobilização dos cidadãos. É um desafio dos tempos modernos. O custo de organização de manifestações caiu para quase zero, o que tornou o mundo um lugar mais instável e aumentou a pressão sobre todos os governantes. Países democráticos passaram a ser acometidos, de tempos em tempos, por protestos massivos, sem relação com as estruturas políticas tradicionais e sem um objetivo aparente.

Antes de realizar comparações entre países, contudo, é preciso levar em conta a natureza distinta do Chile. Para começar, trata-se de uma nação com as finanças em ordem. A dívida pública está em torno de 25% do PIB. É bem menos que a do Brasil, em torno dos 80%. Não há qualquer necessidade de pedir socorro ao FMI e a sua receita extrema de austeridade, como fizeram Argentina e Equador, causando indignação entre a população. Se as Forças Armadas estão patrulhando as avenidas do Chile, isso tem sido feito dentro da Constituição, em um processo que em nada se compara à atroz ditadura militar de Nicolás Maduro, na Venezuela. O presidente chileno, Sebastián Piñera, não tem qualquer pretensão de atropelar o Legislativo e o Judiciário para perpetuar-se no poder, como faz o boliviano Evo Morales. Diferentemente do Peru, em que a corrupção generalizada fez com que a população aplaudisse a dissolução do Congresso, o Chile é um dos países menos corruptos do continente e tem partidos que funcionam.

Em alguma medida, os problemas que o país enfrenta hoje são consequências de seu sucesso. Desde 2000, a pobreza caiu de 35% para 10%. Essa nova classe média, contudo, precisou pagar para ter serviços de boa qualidade. Escolas e hospitais são privados, assim como os planos de aposentadoria. “Muitos chilenos tiveram de se endividar para ter uma vida digna. Este é um sistema que exige muito esforços dos cidadãos, que não têm uma válvula de escape, como a possibilidade de trabalhar na informalidade e pagar menos impostos”, diz o cientista político peruano Carlos Meléndez, professor da Universidade Diego Portales, no Chile.

Por essa ótica, as manifestações poderiam ser entendidas como pedido por um alívio na situação econômica da classe média, que hoje representa 65% da população. Em linhas gerais, os manifestantes querem mais estado. Nesse ponto, os jovens chilenos se parecem com os de países desenvolvidos que, desde as crises de 2007, nos Estados Unidos, e 2011, na Europa, organizaram pelas redes sociais mobilizações pedindo serviços gratuitos (como se houvesse almoço de graça) e de boa qualidade.

ReproduçãoReproduçãoO presidente Sebastián Piñera: pacote para aliviar a situação da classe média
A questão é que, se mesmo para países desenvolvidos a manutenção de um sistema de bem-estar tem sido insustentável, para o Chile ela é uma miragem. “O Chile vive o desafio de estar em um meio-termo. Apesar de estar melhor que outros países da região, sua renda per capita é intermediária, não chega ao nível dos países do primeiro mundo”, diz a economista Patricia Krause. “O país não tem condições de oferecer serviços como os dos países desenvolvidos, mas é cobrado por isso.”

Após reagir de maneira abrupta, declarando estar em uma guerra, o presidente  Sebastián Piñera pediu perdão e anunciou um pacote de medidas. Entre as propostas, que ainda terão de ser aprovadas pelo Congresso, está um aumento de 20% na aposentadoria mínima solidária, para pessoas sem planos privados. Também deve ser estabelecido um teto de gastos familiares com saúde. Se os custos ultrapassarem o valor, o estado poderia ajudar a arcar com eles. Tarifas de eletricidade serão congeladas.

As medidas foram combinadas com os líderes dos principais partidos que, embora não tenham organizado as manifestações, articularam-se para encontrar uma solução. Apenas alguns partidos menores de esquerda, que enalteceram os protestos, recusaram-se a se reunir com os representantes do governo. “O Chile não é um oásis em que tudo dá certo, mas também não perdeu sua democracia”, diz o sociólogo chileno Aldo Mascareño, do Centro de Estudos Públicos. “Este é o momento para os partidos e o governo canalizarem as questões que foram colocadas nas ruas. Se isso acontecer, distúrbios poderão diminuir”. Na última sexta-feira, 1,2 milhão de chilenos tomaram o centro de Santiago. Um número espantoso, ainda mais quando se leva em conta que a população do país não alcança 19 milhões de pessoas.

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