A testemunha fala – e quer negociar
Como mostrou Crusoé em outubro, por ordem de Jair Bolsonaro, os órgãos de inteligência do governo têm despendido esforços para transformar em questão de estado a investigação sobre o ataque a faca sofrido pelo presidente durante as eleições do ano passado. O próprio Bolsonaro chegou a divulgar em 6 de outubro um vídeo na internet afirmando que recebeu uma carta de um “vizinho de cela” do autor do atentado, Adélio Bispo de Oliveira, que teria pistas sobre o suposto mandante da facada. Há pouco menos de um mês, revelamos que o autor da carta é o iraniano Farhad Marvizi, apelidado de Tony e condenado por encomendar o assassinato de um auditor da Receita. Marvizi é um velho conhecido das autoridades por seus relatos pouco críveis e pelo hábito de escrever para autoridades e personalidades que vão de Donald Trump a Silvio Santos. Já preso, em 2014 ele denunciou um suposto plano do Primeiro Comando da Capital, o PCC, para sequestrar o ex-marido da então presidente Dilma Rousseff. Por causa do relato, a PF chegou a reforçar a proteção do ex-marido de Dilma por sete dias. Depois, concluiu que o suposto plano nunca existiu.
O histórico do iraniano, porém, não impediu o governo de reunir esforços e empregar recursos para averiguar uma nova e igualmente explosiva “revelação” feita por ele. Nesta quinta-feira, 31, o delegado encarregado da investigação do atentado, Rodrigo Morais Fernandes, viajou de Belo Horizonte a Campo Grande para ouvi-lo. Crusoé teve acesso ao depoimento, no qual Marvizi apresenta uma proposta surreal: ele diz que sabe o nome do suposto mandante do atentado a Bolsonaro e que poderia revelar ainda a qual facção criminosa Adélio estaria ligado, mas só conta se conseguir do próprio presidente da República o perdão judicial pelos seus crimes e a garantia de que poderá deixar o Brasília rumo a Israel ou aos Estados Unidos, onde residem seus familiares. Sim, um preso que cumpre penas que somadas superam 30 anos (além do homicídio, ele foi condenado também por descaminho, lavagem de dinheiro e organização criminosa) e chegou a ser investigado até por suspeita de envolvimento com terrorismo, agora quer a confiança e o beneplácito do presidente.
Marvizi contou que, além de escrever para o próprio presidente, mandou cartas sobre o suposto mandante do atentado para o vice Hamilton Mourão, para o procurador-geral da República Augusto Aras, para o deputado federal Marcos Feliciano, para o ministro da Economia, Paulo Guedes, e até para o ministro da Saúde, Luiz Henrique Mandetta. Em nenhuma delas ele chegou a mencionar os nomes dos outros supostos envolvidos no crime. Marvizi ficou detido por cerca de um mês em uma cela vizinha à de Adélio Bispo na ala médica da Penitenciária Federal de Campo Grande. Adélio foi transferido para essa ala no dia 30 de abril, quase dois meses depois de ser apresentado à Justiça o laudo dos peritos oficiais atestando que ele sofre de transtorno delirante permanente. Marvizi tem problemas decorrentes de má-formação congênita, utiliza uma bolsa para urinar que precisa de manutenção constante e, por isso, costuma ficar na ala médica. Ao perceber de quem estava próximo, o iraniano viu uma oportunidade para se aproximar e, quem sabe, conseguir alguma informação que pudesse lhe garantir algum benefício na Justiça, onde ainda responde a vários processos criminais.
“Para puxar conversa, a fim de obter informação, o depoente disse a Adélio Bispo que tinha um advogado muito influente em Minas Gerais, chamado dr. Joaquim José Miranda Junior, ex-corregedor-geral do Depen, que poderia ajudá-lo; que esclarece que era apenas uma mentira dita com o propósito de buscar informações da parte de Adélio Bispo”, registraram os policiais. Indagado se o autor da facada lhe teria contado se mais alguém participou do ataque, o iraniano respondeu: “Que Adélio Bispo teria dito pertencer a uma facção criminosa, que Adélio Bispo teria dito o nome da facção, ao que o depoente, mentindo para buscar confiança, disse também pertencer a mesma facção; que o depoente se recusa a informar o nome da facção, pois teme por sua segurança”. Depois emendou: “Que Adélio Bispo teria dito o nome do mandante, bem como o nome da pessoa que falou a hora e a data em que Jair Bolsonaro estaria em Minas Gerais; que o depoente se recusa a fornecer estes nomes, pois teme por sua segurança”.
O próprio Adélio foi ouvido, mais uma vez, pelo delegado da Polícia Federal. Chegou a ouvir uma oferta de delação premiada, mas disse não ter nada a acrescentar em relação ao que já afirmou nos depoimentos anteriores sobre a participação de outras pessoas no atentado – ele sustenta que agiu sozinho. Desta vez, o esfaqueador de Bolsonaro afirmou que desistiu de matar o atual presidente e seu antecessor, Michel Temer – antes, ele afirmara que quando deixasse a cadeia iria assassinar os dois. Também disse que finalmente desistiu de lutar contra a Maçonaria, que, segundo ele, seria fonte de muitos males e de conspirações contra o Brasil. O delegado ouviu ainda o depoimento de outros presos, entre eles Felipe Ramos, ex-piloto de um helicóptero a serviço do PCC preso sob a acusação de participar do assassinato de dois chefes da facção, em 2018. Ramos admitiu que, a exemplo de Marvizi, tentou extrair informações de Adélio de modo a utilizá-las em um acordo de delação. Na cadeia, o autor do atentado a Bolsonaro virou, definitivamente, uma espécie de bilhete premiado. Em tempo: o Planalto ainda não se manifestou sobre a proposta de perdão judicial apresentada pelo preso iraniano.
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