Sergio Lima/Folhapress

Generoso com os grandes,
inclemente com os pequenos

O mesmo Supremo Tribunal Federal que está em vias de aliviar a vida processual de corruptos estrelados da Lava Jato sabe ser impiedoso com réus pobres e anônimos
01.11.19

Na iminência de soltar figurões condenados em segunda instância por envolvimento em esquemas milionários e até bilionários, o Supremo Tribunal Federal é implacável com cidadãos pobres presos por crimes, digamos, bem menos gravosos. Enquanto políticos e empresários costumam conseguir, por meio de renomados e caros advogados, o direito a responder a processos em liberdade, brasileiros assistidos por defensores públicos sobrecarregados de serviço têm habeas corpus negados em decisões monocráticas e colegiadas. Crusoé destrinchou alguns desses casos, em meio ao intervalo no julgamento que deve liberar presidiários famosos, entre eles o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, e acabar com um dos principais mecanismos da Lava Jato no combate à impunidade.

Em uma tentativa de minimizar o impacto da previsível decisão do Supremo, Dias Toffoli, o presidente da corte, enviou ao Congresso Nacional, na segunda-feira, 28, uma proposta para alterar o Código Penal e impedir a prescrição de casos que chegam ao Superior Tribunal de Justiça e ao STF. Anunciada como um antídoto contra a impunidade, a medida interrompe o prazo de prescrição após condenação em segunda instância, enquanto ainda tramitam recursos em tribunais superiores.

A proposta de Toffoli enfrenta resistência de juristas. O ex-ministro do Supremo Carlos Velloso, por exemplo, rechaça qualquer ideia como a do atual presidente da corte. “É o estado confessando a sua impotência. Aliás, tenho minhas dúvidas se não é inconstitucional”, diz. Velloso afirma que um processo prescreve quando o Poder Judiciário não cumpre com a obrigação constitucional de dar um fim ao caso, punindo ou absolvendo um réu. “Há um tempo determinado para o estado, por meio do Judiciário, dar uma resposta ao cidadão.” A mensagem é clara: a interrupção da prescrição é uma falsa solução, além de ser injusta por abrir caminho para que o estado mantenha indefinidamente uma guilhotina sobre a cabeça de quem ele não consegue acusar devidamente em tempo hábil.

Thiago Bottino, professor da Escola de Direito da Fundação Getúlio Vargas, no Rio de Janeiro, afirma que a prescrição existe exatamente para impor um limite aos órgãos de persecução penal. “Normalmente, a prescrição é uma punição à inércia do estado”, diz, referindo-se à costumeira lentidão das decisões nas várias instâncias dos diferentes tribunais. Ainda não há previsão para o Congresso analisar a proposta de Toffoli. Já o julgamento que vai decidir sobre a prisão de condenados em segunda instância será retomado na próxima quinta-feira, 7. Faltam os votos de quatro ministros: Cármen Lúcia, Celso de Mello, Gilmar Mendes e do próprio Toffoli.

Já votaram contra a execução antecipada da pena os ministros Rosa Weber, Ricardo Lewandowski e o relator do caso, Marco Aurélio Mello. A eles devem se juntar Gilmar e Celso de Mello, totalizando cinco votos. Alexandre de Moraes, Edson Fachin, Luís Roberto Barroso e Luiz Fux votaram a favor da prisão logo após a condenação em segundo grau. Cármen Lúcia deve ir no mesmo sentido. A se confirmar a tendência, o desempate caberá a Toffoli, cuja posição, contrária às prisões, é conhecida. O voto de Barroso na primeira etapa do julgamento ilustrou o abismo que separa os réus ricos e poderosos, aqueles que como nunca antes na história aguardam com ansiedade o veredicto, dos que não têm condições de influenciar a mais alta corte do país a mudar mais uma vez de opinião acerca do tema. Disse Barroso: “Não foram os pobres que sofreram o impacto da possibilidade de execução da pena após a condenação em segundo grau. Não foram os pobres que mobilizaram os mais brilhantes advogados criminais do país. Não creio nisso. Pobre não corrompe, não desvia dinheiro público nem lava dinheiro. Não é de pobres que estamos tratando aqui!” A seguir, alguns casos do mundo real que emolduram a questão.

Roubou uma bermuda e Toffoli não perdoou

Analfabeto e alcoólatra, Evanildo José Fernandes de Souza passava o dia perambulando pelas ruas de Viçosa, interior de Minas Gerais. Em 2011, ele furtou uma bermuda em uma loja da região central da cidade. Logo uma equipe da PM o prendeu com a peça de roupa, vendida a 10 reais. Solto dias após o flagrante, respondeu ao processo em liberdade, mas não escapou da condenação a um ano e sete meses de prisão em primeira instância. A pena foi mantida no TJ de Minas Gerais e no Superior Tribunal de Justiça. Defensores públicos federais apresentaram um recurso ao STF. Pediram a aplicação do princípio da insignificância, argumentando que não houve prejuízo à loja. Coube ao próprio Toffoli analisar o caso. Em junho de 2018, veio a decisão: por ter praticado outros pequenos furtos, Evanildo tinha de ficar trancafiado.

Uma semana antes, o mesmo Toffoli deu a José Dirceu o direito de aguardar em liberdade pelo julgamento de um recurso. Um benefício, aliás, que os advogados do ex-ministro petista nem sequer haviam pedido. Dirceu era reincidente em desvios milionários de dinheiro público. Ele já havia sido condenado uma vez no mensalão e duas no petrolão por crimes que não eram nada irrelevantes. Nem ele nem os outros réus haviam devolvido um só centavo. Toffoli ainda ordenou a retirada da tornozeleira eletrônica de Dirceu. O ministro, vale lembrar, foi advogado, assessor e chefe de gabinete de Dirceu na Casa Civil do Planalto na era petista. O então presidente Lula o nomeou para o cargo de advogado-geral da União e, depois, o escolheu para assumir uma cadeira no Supremo, apesar da reprovação em dois concursos para juiz de carreira.

Evanildo, o ladrão da bermuda, teve que cumprir um sexto da pena, como manda a lei, e só depois disso ganhou de volta a liberdade.

Preso até hoje por roubar sacas de café

José Dirceu não foi o primeiro nem seria o último político da Lava Jato a receber benefícios de Toffoli e de outros ministros do STF. Tampouco Evanildo seria o primeiro e último miserável brasileiro a não obter a mesma complacência dos integrantes do Supremo. Em maio de 2018, um mês antes de soltar o ex-chefe petista, Toffoli negou o pedido de um defensor para que João Santos, acusado de roubar o equivalente a 81 reais em sacas de café, fosse colocado em liberdade, por meio do princípio da insignificância. O réu havia sido condenado a três anos, um mês e dez dias de cadeia.

Toffoli negou o pedido de liberdade argumentando que o réu era reincidente e que a jurisprudência do STF não admite a aplicação do princípio da insignificância nessas circunstâncias. O entendimento, no entanto, não é unanimidade no Supremo. O ministro Celso de Mello, por exemplo, já absolveu uma mulher condenada pelo furto de duas peças de queijo, avaliadas em 40 reais, apesar de ela ser reincidente. Gustavo de Almeida Ribeiro, o defensor público que defendeu o ladrão de café, destacou que não houve violência no crime e os 27 quilos de café furtados foram devolvidos integralmente à vítima. “Agravei e pedi julgamento presencial e não virtual. O ministro Dias Toffoli indeferiu. Sequer poderia sustentar, gostaria apenas de estar presente”, diz.

João Santos segue preso.

Cego com HIV tem Gilmar como seu algoz

Em junho de 2018, Gilmar Mendes decidiu manter preso Valdemir Firmino, acusado de ter roubado 140 reais em 2013, no interior paulista. As condições de saúde do detento não sensibilizaram o ministro. A Defensoria Pública de São Paulo ainda tentou argumentar que se tratava de uma questão humanitária. Cego, Valdemir havia contraído HIV e sofria de ataques de convulsão na cadeia, onde não tinha acesso a medicamentos e tratamento adequado. Os argumentos eram acompanhados de laudos médicos, que atestavam a doença e apontavam risco de vida.

No mesmo dia em que mandou o portador de HIV cego permanecer preso por roubar 140 reais, Gilmar Mendes concedeu habeas corpus a quatro figurões presos na Operação “Câmbio, Desligo”, aquela que desvendou um esquema de lavagem de dinheiro de 1,6 bilhão de dólares. Só entre maio e junho de 2018, o mesmo benefício foi estendido por Gilmar a outros 19 acusados da Lava-Jato no Rio de Janeiro. Nenhum desses réus esperou o julgamento definitivo do HC pedido pelos caros advogados no Tribunal Regional Federal e no Superior Tribunal de Justiça.

Valdemir teve que cumprir toda a pena.

Quando a coerência não é o forte

Em 2017, o ministro Edson Fachin negou um habeas corpus a uma mulher de 39 anos presa em flagrante seis anos antes por ter tentado furtar dois desodorantes e cinco caixas de chiclete de um supermercado de Varginha, no sul de Minas. Os produtos somavam 42 reais e foram devolvidos à prateleira após o segurança do estabelecimento perceber a ação de Georgina Gonçalves. O advogado pedia o arquivamento do processo. Fachin alegou que a tese da insignificância penal, com base no baixo valor que a ré havia tentado subtrair, não poderia ser aplicada devido ao fato de ela ser reincidente. Ele acompanhou a decisão do relator do caso, Ricardo Lewandowski. Naquela oportunidade, o HC foi concedido pelo STF porque os outros três ministros da Segunda Turma discordaram.

Nem sempre, porém, há coerência nos veredictos. Em abril de 2006, a mesma Segunda Turma decidiu de maneira diferente sobre um caso parecido com o de Georgina. Por unanimidade, manteve a pena de um homem condenado a um ano de cadeia pelo roubo de duas peças de picanha, avaliadas em 69 reais. Mais uma vez, defensores públicos pediram a absolvição do réu pelo princípio da insignificância. A turma, no entanto, entendeu que ele não poderia ser perdoado porque respondia a outras acusações de furto. O crime analisado pelo Supremo havia sido cometido em 8 de março de 2005, em um supermercado da mineira São Lourenço. Primeiro, Cleiton Costa recebeu uma pena de um ano e oito meses de prisão em regime aberto. A condenação foi confirmada pelo Tribunal de Justiça de Minas, que reduziu a pena para um ano. A Defensoria da União recorreu ao STJ, mas teve seus pedidos negados. Entrou, então, no Supremo, que manteve a decisão. Cleiton teve de continuar cumprindo pena.

Marco Aurélio e as caixas de chiclete

Em 2009 foi a vez de o ministro Marco Aurélio de Mello negar um pedido de habeas corpus a uma mulher que pediu a aplicação do princípio da insignificância para um crime ocorrido em Sete Lagoas, também em Minas Gerais, em junho de 2007. A ré, Valdete Cardoso, havia sido condenada a dois anos de prisão por furto de caixas de chicletes cujo valor estimado era de 98 reais. Um defensor público que cuidava do caso recorreu ao tribunal estadual, que não a inocentou, mas reduziu a pena para um ano e três meses. Depois, recorreu novamente, desta vez ao STJ, que também negou a anulação da condenação. Em ação protocolada em seguida no Supremo, a defesa da ré pediu a suspensão da sentença.

Marco Aurélio, no entanto, não se convenceu quanto à inexistência de crime no caso do furto dos chicletes. Embora tenha reconhecido que o prejuízo de 98 reais era de pequeno valor, ele analisou que não se trata de “furto famélico”, quando uma pessoa furta alimentos para saciar a fome. O ministro acrescentou que a acusada já respondia por outros crimes semelhantes. Por isso, justificou que não poderia suspender a condenação.

Valdete foi obrigada a cumprir pena.

O ladrão preso que roubou um rádio do ex-ministro solto

Em outubro último, o ministro Celso de Mello negou habeas corpus a um homem preso por furtar um rádio-comunicador de 70 reais de uma faculdade privada em Betim, na região metropolitana de Belo Horizonte. Ao prender Jonathan Souza Gomes, policiais militares restituíram o equipamento usado por um vigilante da instituição, que integra uma rede de ensino pertencente ao ex-ministro de Lula, ex-deputado federal e ex-vice-governador de Minas Walfrido dos Mares Guia, investigado no mensalão mineiro.

Mares Guia, o dono da empresa roubada, conseguiu se livrar das acusações de crime de peculato e lavagem de dinheiro no esquema que, segundo as investigações, serviu para arrecadar mais de 100 milhões de reais para o tucano Eduardo Azeredo. Júlio Carlos, o ladrão do rádio-comunicador da faculdade do ex-ministro, está preso.

A via-crúcis de um legítimo ladrão de galinha

Nem mesmo um verdadeiro ladrão de galinha escapou do peso da caneta de um ministro do STF sobre réus desabonados. Em abril de 2014, Luiz Fux negou um pedido de habeas corpus para a anulação de um processo contra Afanásio Maximiniano Guimarães, um acusado pelo roubo de um galo e uma galinha na pequena Rochedo de Minas. Os defensores de Afanásio pediram o arquivamento do caso sob a alegação de que o crime tinha baixo potencial ofensivo, mas Fux decidiu que o Ministério Público deveria se manifestar sobre o caso. O desfecho da história deveria ser definido pela Primeira Turma do Supremo.

Primário, Afanásio roubara o galo e a galinha do vizinho, Raimundo das Graças Miranda. Mas logo se arrependeu, procurou a vítima e ofereceu 40 reais pelas aves, que havia comido. Era tarde. Pouco depois, um juiz de São João Nepomuceno, cidade-polo da região, aceitou a denúncia ajuizada pelo Ministério Público Estadual. O caso chegou ao Supremo após o Tribunal de Justiça de Minas Gerais e o STJ rejeitarem o pedido de arquivamento. A via-crúcis pelos tribunais de Brasília foi dura. Até que a Primeira Turma do Supremo decidiu por três votos a um acolher os argumentos do ladrão de galinha. Foi um ponto fora da curva, a exceção que confirma a regra. Crime é crime e deve ser punido. O que o cidadão que cumpre com suas obrigações espera, porém, é que a lei valha para todos, sem privilégios para os ricos e poderosos, como agora ocorre à luz do dia.

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