Adriano Machado/Crusoé

O senhor unanimidade

Incensado por políticos da situação e da oposição, o ministro Tarcísio de Freitas, da Infraestrutura, se tornou uma das figuras mais benquistas do governo
01.11.19

Tarcísio Gomes de Freitas enfrentou pela primeira vez um batalhão de políticos quando foi sabatinado na Comissão de Infraestrutura do Senado, no começo do primeiro mandato de Dilma Rousseff. Tinha acabado de ser indicado para o posto de diretor-executivo do Departamento Nacional de Infraestrutura de Transportes, o Dnit. O órgão passava por um processo que, àquela época, ficou conhecido por “faxina ética”. Era uma tentativa de Dilma Rousseff de lustrar a própria imagem substituindo por gente nova funcionários do primeiro e segundo escalões suspeitos de corrupção que Lula havia deixado. Era março de 2011 e o movimento, claro, nunca limpou nada, mas deixou evidente a tentativa dela de se desvencilhar de ao menos uma parte da herança do antecessor. Tarcísio aproveitou a brecha. Havia sido designado pela Controladoria-Geral da União, a CGU, para fazer um raio-x no departamento. Funcionários da época lembram que ele chegou com uma pequena pasta na mão e entrevistou um a um os servidores de áreas que estavam sob suspeita. Aos poucos, foi ganhando a simpatia do Palácio do Planalto e de uma das superministras de então, Miriam Belchior. Logo a bancada do PL, preocupada em não perder o bilionário feudo que desde o início do governo Lula estava com o partido, mobilizou-se para referendar seu nome. E o general escolhido para comandar o Dnit, um antigo conhecido seu, assinou embaixo. No Senado, Tarcísio foi aprovado por unanimidade. A partir dali, ele só ascendeu na burocracia federal.

O atual ministro da Infraestrutura é um caso raro de alguém que conseguiu ter postos de destaque nos governos Dilma, como diretor do Dnit, de Michel Temer, como secretário de Coordenação de Projetos do PPI, o Programa de Parcerias de Investimentos, e de Jair Bolsonaro. Aos 43 anos, ele tem a simpatia do presidente, que o chama de “Capita”, uma referência a sua formação militar. Tarcísio é carioca e, tal qual o chefe, capitão do Exército formado na Academia Militar das Agulhas Negras. À diferença de Bolsonaro, porém, seu gabinete em Brasília é um destino aprazível para políticos de todos os cargos e colorações partidárias. É mais frequentado até mesmo do que os gabinetes de responsáveis direta ou indiretamente pela articulação política do governo, como o general Luiz Eduardo Ramos, da Secretaria de Governo, e Onyx Lorenzoni, da Casa Civil. Os números da romaria impressionam. De janeiro até esta semana, ele já recebeu 24 governadores, 2 vice-governadores, 56 senadores, 180 deputados federais e teve encontro com as bancadas federais de 18 estados. Sem falar nos mais de 100 prefeitos com quem já se reuniu, desde cidades pequenas como Tuntum, no Maranhão, até grandes capitais, como Salvador.

Todos são atraídos pelo programa de infraestrutura que Tarcísio vem implementando em parcerias com o setor privado. Algo que, em tempos de recursos parcos nos cofres públicos, tem grande potencial de produzir dividendos eleitorais para os interessados. Só neste ano já ocorreram 27 leilões de concessões de ativos a empresários, dos quais doze de aeroportos, dez de terminais portuários e um de uma rodovia, além do da Ferrovia Norte-Sul. Os investimentos previstos são de 9,3 bilhões de reais, além de 5,9 bilhões que devem ser arrecadados com as chamadas outorgas, uma espécie de pagamento que as empresas fazem para poder investir. Até o final de 2022, a expectativa é que sejam firmados contratos de mais 217 bilhões com a União para projetos que, ao fim e ao cabo, deverão ter reflexo direto na vida real dos cidadãos-eleitores – o que explica o interesse geral e irrestrito de políticos na pasta do ex-capitão. Tudo isso dentro de um ideário de redução, ao máximo possível, do papel do estado na gestão da logística do país. Como parte dessa estratégia, vem a atração de investimentos privados, o que torna o ministro uma interface importante com o universo empresarial. “Ele consegue ter um nível de diálogo separando a questão ideológica da partidária. E sabe que não tem recurso orçamentário para infraestrutura. Então, ele mesmo busca o setor privado”, diz o presidente da Comissão de Infraestrutura do Senado, Marcos Rogério, do DEM de Rondônia.

Presidência da RepúblicaPresidência da RepúblicaCom Bolsonaro: o presidente chama o subordinado de “Capita”
Grande parte do que Tarcísio vem entregando neste ano, ele mesmo reconhece, vem do governo passado. O ministério evita apresentar um dado exato quanto ao que é resultado do trabalho iniciado em janeiro, por avaliar que projetos de infraestrutura têm começo, meio e fim. Repete que o fato de as entregas deste ano serem produto de algo planejado no passado não tira o mérito da atual gestão. Ainda mais porque Tarcísio, como secretário de coordenação de projetos do PPI, também atuou lá atrás nos projetos. De qualquer modo, o desempenho até agora e a projeção de investimentos privados até o final do mandato de Bolsonaro catapultou Tarcísio ao hall dos ministros preferidos do empresariado, juntamente com Paulo Guedes, da Economia. Em setembro, por exemplo, ele recebeu da Associação Brasileira da Indústria Ferroviária o prêmio de “Ferroviário do Ano”. No discurso, agradeceu nominalmente a grandes nomes do setor, animados com a maior meta de sua gestão: passar de 14% para 29% a fatia de transportes sobre trilho no país. “Tenho aprendido com todos os concessionários de ferrovias”, disse, para na sequência fazer críticas ao estatismo. “Tem muita criatividade no governo. Tem verdadeiras usinas de curiosidade. Mas ter ideia às vezes é fácil. O difícil é fazer acontecer, ainda mais em um país projetado para não fazer (acontecer).” Hoje, o principal projeto que Tarcísio trabalha para aprovar no Congresso é o que permite à iniciativa privada fazer ferrovias sem autorização do estado. Como no período de Dom Pedro II, um ilustre personagem da história nacional que Tarcísio diz admirar por ter construído a maior malha ferroviária do país a partir de incentivos ao setor privado. O relator do plano é o senador Jean Paul Prates, do PT do Rio Grande do Norte, também elogiado por Tarcísio no discurso.

O bom relacionamento com todos os lados da política é uma das características que têm dado ao ministro a chance de atravessar ileso governos tão díspares entre si. Ele não entra em grandes polêmicas. É habilidoso no trato e não faz distinção entre adversários ou aliados políticos dos presidentes de plantão. Tanto que conseguiu convencer Bolsonaro de que sua indicação para o cargo era correta, mesmo tendo servido a Dilma e a Temer. Tarcísio estava longe de ser a primeira opção. O preferido do presidente era o general Oswaldo Ferreira, que atuou na campanha, mas recusou o cargo depois de ver rejeitada sua proposta de redesenho da pasta. Tarcísio de Freitas utilizou da sua rede de contatos com servidores públicos do alto escalão de Brasília para chegar ao presidente. Foi ao atual líder do governo na Câmara, Major Vitor Hugo, consultor legislativo na casa junto com ele (o ministro foi o primeiro colocado no concurso de 2015, um dos mais disputados de Brasília). Foi ainda ao atual ministro da Secretaria-Geral da Presidência, Jorge de Oliveira, policial que conhecia desde os tempos do Colégio Militar de Brasília e que era chefe de gabinete de Eduardo Bolsonaro, o filho 03 do presidente. Ambos o colocaram diante  do recém-eleito Bolsonaro. No primeiro encontro, Tarcísio discorreu sobre seu plano para o setor. No segundo, Bolsonaro perguntou se podia tuitar a nomeação. Tuitou.

O prestígio que o presidente lhe foi dando aos poucos (a Infraestrutura é a pasta cujas ações o presidente mais divulga em suas redes sociais) fez com que Tarcísio fosse se pintando com o verniz bolsonarista. Em palestras, ele repete mantras do chefe, como a crítica à herança dos antecessores (“A gente sabe o que aconteceu no Brasil na história recente. O Brasil foi destruído, dilacerado e precisa ser remontado”), à ideologização da questão ambiental (“No Brasil, a questão ambiental está absolutamente tomada pela ideologia. O licenciamento deixou de ser técnico e passou a ser ideológico”) e aos inimigos externos (“A gente percebe uma campanha contra o Brasil internacionalmente. É o Macron querendo enquadrar, a Merkel. Quer enquadrar por quê? Produzimos tudo no Brasil utilizando 26% do território. Lá são 70%, 90% do território. Nossa matriz é limpa e a deles é suja. E querem colocar o dedo na nossa cara”).

Nesta semana, o ministro foi dos primeiros a criticar a imprensa para defender o presidente no episódio da investigação sobre o caso Marielle Franco. “Sempre cobram o governo para que seja + técnico. Estamos sendo. Risco país no nível mais baixo, nova previdência, bolsa batendo recorde. Mas essa mesma tecnicidade precisa ser cobrada da imprensa. Contribuir para desestabilizar o país sugerindo uma ilação como essa é uma covardia”, postou em sua conta no Twitter. Ele também tem endurecido com empresários beneficiados nos governos petistas, como Benjamin Steinbruch, da Companhia Siderúrgica Nacional, responsável pela ferrovia Transnordestina. A obra é um dos maiores vexames da história do país e já drenou para o ralo mais de 6 bilhões de reais em dinheiro público sem nunca sair integralmente do papel. O empresário tem pedido que o governo ponha mais dinheiro para que a obra seja retomada, mas Tarcísio resiste, e cogita até mesmo tirar da empresa a concessão da ferrovia. Sua ideia é delegar ao Exército a construção.

O alinhamento cada vez maior levou a que Tarcísio despertasse o interesse do PSL, o partido do presidente. Antes da briga que dura até hoje entre a legenda e Bolsonaro, o presidente da sigla, Luciano Bivar, formalizou um convite para que o ministro assinasse uma ficha de filiação. Por ora, ele rejeita qualquer possibilidade de se candidatar em 2022. Avalia que politizar sua gestão é o caminho mais rápido para que a infraestrutura fracasse no atual governo. Também tem muito receio do chamado fogo amigo. Isso porque a pasta que comanda foi território do PL de Valdemar da Costa Neto durante a era petista, período em que enfrentou focos de resistência devido ao fato de ter tido papel ativo na tal “faxina ética” de Dilma. Por causa dessa resistência, o ministro foi objeto de pelo menos duas denúncias. Em uma, foi acusado de autorizar pagamentos a empreiteiras sem respeitar a ordem cronológica de desembolsos. A acusação chegou a embasar uma sindicância no ministério, mas foi arquivada em janeiro de 2018. Concluiu-se que não havia irregularidades. À outra acusação, a pasta nem sequer deu andamento: Tarcísio era acusado de pegar carona em 2013 em um jatinho de um empresário com contratos com o Dnit. O objetivo era participar do “Estradeiro”, uma espécie de caravana de inspeção de estradas promovida pela poderosa Aprosoja, a Associação dos Produtores de Soja e Milho do Estado do Mato Grosso. Segundo a assessoria do ministro, o empresário não tinha ligações com o Dnit.

ReproduçãoReproduçãoO ministro está sempre disponível para encontros com políticos e empresários: uma das agendas mais intensas da Esplanada
Como herdou a atual estrutura do ministério do PL (Temer também manteve a pasta sob o comando do partido), Tarcísio elaborou uma estratégia dupla para ter controle total. Na sede, em Brasília, cercou-se de gente da área e, ao mesmo tempo, de sua confiança. Criou ainda uma Subsecretaria de Integridade e Governança, concedida a uma policial federal, a delegada Fernanda Costa de Oliveira. Ela é conhecida na política por ter conduzido inquéritos que incomodaram poderosos, como o que investiga a participação de ex-governadores no esquema de corrupção da construção do bilionário estádio Mané Garrincha. Conseguiu ainda emplacar gente próxima em outros órgãos cruciais, como a Secretaria Especial do PPI, hoje sob o comando de Martha Seillier, e na Empresa de Planejamento e Logística, a EPL, cuja missão é elaborar projetos e estudos na área de infraestrutura. O presidente da empresa é Arthur Pinho de Lima, amigo pessoal de Tarcísio.

O esforço para escolher pessoas de sua estrita confiança gera algum tipo de embaraço aqui e acolá. Lima, por exemplo, é sócio de um escritório de advocacia em sociedade com sua chefe de gabinete, Marina Amantéa. A prática é vedada pela legislação, tendo em vista que ele ocupa um cargo de direção no setor público. Procurado por Crusoé na quarta-feira, 30, ele confirmou a sociedade, mas disse estar licenciado do escritório e da própria OAB. A resposta continha, digamos, uma esperteza: ele formalizou o pedido de licença da Ordem na mesma quarta-feira, logo depois de ser indagado pela reportagem. Mesmo assim, Lima nega haver qualquer conflito de interesses. A sociedade, diz ele, “nunca cuidou de processos referentes a empresas que têm interesses na Empresa de Planejamento e Logística e tampouco atendeu clientes que tenham relação com a estatal, direta ou indiretamente”. Em nota, o amigo e subordinado de Tarcísio afirmou ainda que “a atuação do escritório cinge-se ao direito de família, direito civil e direito penal militar”. Segundo ele, “desde 2018, a sociedade não recebe novos clientes, atuando apenas nos processos que se encontram em andamento”. O ministro não quis falar.

Se em Brasília a opção foi por se cercar de gente próxima e de confiança, nos postos sob seu comando espalhados pelo país Tarcísio de Freitas optou por manter, de alguma forma, o modelo de apadrinhamentos – até como forma de garantir seu bom relacionamento com os políticos. Fez, porém, uma ressalva: a permanência dos apadrinhados no cargo passou a ser condicionada à performance. Na contabilidade de uma fonte bem situada no ministério, em pelo menos metade das 26 superintendências o modelo de indicações foi mantido tendo à frente o velho PL de Valdemar e o MDB de Temer. O modelo, como era de se esperar, mostrou deficiências. No Amapá, por exemplo, o superintendente nomeado em março deste ano por um deputado federal do PL foi preso em uma operação da Polícia Federal. O comando do órgão em Minas Gerais também acabou caindo em uma operação deflagrada pela PF em agosto. O ministro costuma dizer que respeita as indicações políticas desde que os indicados sejam técnicos e entreguem obras. E que no primeiro deslize ético, promove a substituição. Os superintendentes do Amapá e de Minas deixaram os cargos, mas ainda não foram substituídos. De qualquer modo, o receituário geral de Tarcísio, um misto de concessões à política e ao empresariado, é dos mais bem-sucedidos até agora no governo Bolsonaro. Sua presença na Esplanada não deixa de ser um porto seguro para um governo afeito às constantes turbulências.

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