A escravidão ideológica e Thomas Sowell

08.11.19

Em 2003, durante o governo Lula, uma nova lei determinava a inclusão da temática “História e Cultura Afro-Brasileira” no currículo escolar. O artigo 79-B da Lei nº 9.394 diz: “O calendário escolar incluirá o dia 20 de novembro como ‘Dia Nacional da Consciência Negra’”. Em 2011, durante o governo Dilma Rousseff, essa data foi então oficializada como o “Dia Nacional de Zumbi e da Consciência Negra”. A celebração do 20 de novembro, referência ao dia da morte de Zumbi dos Palmares, líder do Quilombo de Palmares, passou a ser uma data para a reflexão sobre a posição dos negros na atual sociedade.

Com a aproximação do Dia da Consciência Negra, dezenas de artigos sobre o assunto já circulam em jornais e blogs pelo país, a maioria sempre empurrando o debate para o improdutivo campo da divisão política. O mais curioso é que raríssimos artigos mencionam personagens afrodescendentes que foram importantes para o Brasil, como o nosso primeiro presidente negro, o jurista Nilo Peçanha, e outros intelectuais do primeiro time como André Rebouças, Lima Barreto e, claro, Machado de Assis. Se nomes extraordinários para a nossa história são pouco lembrados nestas datas, imaginem o de estrangeiros como do americano Thomas Sowell, outro exemplo de quem não se curva ao canto infrutífero das sereias ideológicas que pregam “negros x brancos” e “nós x eles”. Se existe uma “consciência negra”, difícil imaginar um representante mais qualificado e admirável.

Sou fã convicta de Thomas Sowell, autor de dezenas de livros fundamentais sobre política, economia e também sobre questões raciais complexas e polêmicas. Sowell é uma das grandes referências intelectuais das últimas décadas e muitas de suas obras já foram traduzidas para o português. Um dos mais brilhantes economistas da história, Sowell é uma presença inconveniente para os embaixadores das narrativas que usam o negro para manipular ideias que vão da eterna culpa da sociedade pela escravidão à adoração mais servil ao politicamente correto. Sowell é um gigante do pensamento intelectualmente honesto e um exemplo de superação, trabalho duro e talento — e, talvez por isso, muitos preferem fingir que ele não existe.

Nascido em 1930 na Carolina do Norte, Sowell perdeu o pai ainda criança. Sua mãe, doméstica, já tinha quatro filhos e ele acabou sendo criado por uma tia-avó no Harlem, o mítico bairro negro nova-iorquino. Seus primeiros anos de vida foram durante a Grande Depressão americana, com grandes dificuldades financeiras, e, mesmo assim, ele foi o primeiro da família a passar da sexta série. Aos 17 anos, o adolescente teve que largar a escola para ajudar a família e foi entregador, torneiro-mecânico. Aos 21, durante a Guerra da Coreia, alistou-se na Marinha.

De volta ao mercado, Sowell se formou com louvor em economia em Harvard, complementando os estudos com mestrado em Columbia e um doutorado pela Universidade de Chicago, uma das mais respeitadas escolas de economia do mundo. Seu primeiro trabalho como economista foi no governo federal, realizando estudos sobre o impacto do salário mínimo no emprego. Até aquele momento, Sowell se dizia um marxista, mas nada como uma experiência rápida como funcionário público para mudar para sempre sua cabeça. O que pode parecer óbvio para o cidadão comum que depende do estado é motivo de espanto para muitos intelectuais.

Ao perceber que a política de salário mínimo criava uma barreira de entrada para negros com pouca experiência ou especialização no mercado, gerando desemprego em vez de vencimentos mais altos, Sowell se surpreendeu ao entender que nenhum funcionário do Ministério do Trabalho estava interessado em suas descobertas. Foi então que percebeu que os burocratas do governo não tinham qualquer compromisso com os resultados práticos de suas políticas e que a única preocupação era a manutenção dos próprios empregos. Foi a lição que mudou sua vida.

O aluno mais brilhante de Milton Friedman nunca relativizou ou ignorou o racismo, do qual já foi alvo, mas escolheu rejeitar a vitimização por entender que ela escraviza a alma numa agenda de ressentimento e ódio que nunca termina bem. Ele preferiu vencer com inteligência, talento e trabalho duro e sua vida é uma prova definitiva de como tudo é possível quando há disposição pessoal e um ambiente com abundância de oportunidades, o que só uma sociedade livre e próspera fornece.

O menino negro e pobre da Carolina do Norte se tornou um ícone no mundo acadêmico e uma voz ativa nos anos 80 e 90 contra a política de cotas raciais, principalmente nas universidades da Califórnia. Através de suas pesquisas, ele mostrou que a lei de cotas americana (affirmative action) era um desastre para a comunidade negra. Em suas palestras e entrevistas ainda nos anos 80, Sowell mostrava que a política de cotas raciais para admissões servia apenas para ilustrar boas intenções por parte das universidades, mas que nunca apresentava as reais consequências.

Thomas Sowell expôs durante anos que os números de estudantes negros graduados e com diploma após quatro anos nas universidades eram frustrantes. Apenas na Universidade da Califórnia em Berkeley, por exemplo, 70% dos negros que entravam usando o programa de cotas raciais desistiam da vida acadêmica ainda no primeiro ano, o que não acontecia antes da adoção do sistema de cotas. E Sowell foi a campo publicamente, contra o discurso vitimista e o politicamente correto, para apontar o quanto a política de cotas prejudicava a comunidade negra.

Aplaudido e respeitado como professor de algumas das principais universidades americanas, como UCLA, Harvard e Stanford, Sowell sempre defendeu — e mostrou com vastas pesquisas — que a política de cotas raciais colocava muitos negros em ambientes em que não estavam academicamente preparados para estar, fazendo com que esses potenciais bons alunos de universidades menos badaladas se tornassem péssimos estudantes de outras grandes faculdades, o que foi comprovado por outros estudiosos e autores como Malcolm Gladwell.

Thomas Sowell celebrou quando a política de cotas universitárias foi finalmente banida na Califórnia em 1996 (Proposition 209), em um referendo com quase 55% dos votos a favor do término. Os números de admissões de negros nos anos seguintes (1998-2006) caíram quase pela metade e Sowell foi duramente criticado por apoiar a proposição. No entanto, pouco depois, entre 2007 e 2016, as admissões de estudantes negros voltaram ao patamar dos anos anteriores, mas dessa vez com a diferença de que quase todos os estudantes completavam os programas acadêmicos e conseguiam o diploma.

O menino negro e pobre criado no Harlem, hoje um dos maiores pensadores contemporâneos, rejeita o discurso de vítima da sociedade ou os mantras que entoam mais segregação e divisão travestidos de “justiça social”. Para ele, o crescimento econômico dos mais pobres precisa ser desatrelado das políticas assistencialistas da esquerda: “Embora a grande palavra da esquerda seja ‘compaixão’, a grande agenda da esquerda é a dependência. Quanto mais pessoas dependem do governo, mais votos a esquerda pode contar para um estado de ‘bem-estar social’ em constante expansão. Se você dá ao governo poder suficiente para criar ‘justiça social’, você dá também poder suficiente para criar despotismo. Milhões de pessoas em todo o mundo pagaram com a vida por ignorar esse simples fato.”

Enquanto Sowell, aos 89 anos, continua fornecendo contribuições intelectuais incomparáveis, o Brasil verá daqui a alguns dias o país parar em várias cidades, numa quarta-feira, para um feriado que tem como símbolo Zumbi dos Palmares. Respeito todos os que idolatram Zumbi, mas acredito que Thomas Sowell deveria ser seriamente considerado como um modelo alternativo para quem quer conhecer histórias inspiradoras de superação da comunidade negra. Sowell é avesso à tietagem e dá poucas entrevistas, mas isso não impede que façamos a nossa parte em render homenagens a esse gigante intelectual.

O Brasil é a prova viva dos efeitos catastróficos das falsas políticas que Sowell condena e de uma política econômica totalmente equivocada onde o Estado acorrenta seus cidadãos a abusivas regulações, infinita burocracia e altíssimos impostos que são perdidos entre tantos esquemas de corrupção e governos grandes e ineptos. Mesmo com algumas necessárias correções de rota no atual governo, vivemos uma janela única de real crescimento e progresso no país. Bons resultados já começam a aparecer. Nações prósperas que prezam e estimulam a criação de ambientes mais propícios para que todos, incluindo negros, tenham mais oportunidades para uma vida livre, próspera e feliz, aplicam as ideias de Sowell e sua verdade mais óbvia: que a realidade e a lógica sempre e inevitavelmente triunfarão sobre qualquer narrativa ou crença criada para a manipulação das massas. Quanto mais populares as ideias e ensinamentos deste ícone, melhor para Brasil e o mundo. Urge fecharmos as revistas de fofoca e abrirmos os livros de Thomas Sowell.

Ana Paula Henkel é analista de política e esportes. Jogadora de vôlei profissional, disputou quatro Olimpíadas pelo Brasil. Estuda Ciência Política na Universidade da Califórnia.

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