Divulgação"É como um antidepressivo de baixo custo. A esmola ajuda a apaziguar algum vazio interior"

Contra o mito do bom mendigo

Depois de passar um ano na pele de um morador de rua, o pastor batista Yago Martins diz que o que mantém as pessoas na sarjeta não é a miséria
08.11.19

De calça de sarja e camisa social azul-marinho, o pastor batista Yago Martins, de 27 anos, prega nos cultos de domingo em uma igreja na Vila Peri, na periferia de Fortaleza. Nos outros dias da semana, prepara sermões e visita fiéis. Teólogo e professor de economia, ele também dá palestras pelo país e aulas de pós-graduação em uma faculdade de São Paulo. Seu canal no Youtube tem quase 500 mil inscritos.

No dia 2 de janeiro de 2017, Martins iniciou uma vida paralela, a de mendigo. Ao longo de um ano, com camiseta velha e short vermelho, ele conviveu com moradores de rua no Ceará. Nesse período, interagiu com os mendigos como se fosse um deles. O resultado de sua experiência está em um livro recém-lançado sob o título A máfia dos mendigos: como a caridade aumenta a miséria.

Ao lado dos relatos das situações que presenciou, Martins expõe conclusões de estudos acadêmicos e análises que, para além da abordagem religiosa, tentam explicar a vida na rua e o comportamento dos mendigos à luz da ciência. Para o pastor, a distribuição abundante de comida nos grandes centros criou uma cultura de pessoas que escolheram viver da bondade alheia. Esses indivíduos acabam drenando os recursos que deveriam ir aos que realmente necessitam, os miseráveis de verdade. Segue a conversa.

No período em que conviveu com os mendigos, o sr. viu gente morrendo de fome?
Não, de forma alguma. Há um consenso acadêmico no Brasil, o qual pode ser constatado em dissertações de mestrado e doutorado, de que ninguém hoje passa fome nas ruas dos grandes centros urbanos do país. É verdade que a rua não oferece segurança nutricional. O que isso quer dizer é que os mendigos não encontram comida na hora que querem, como se tivessem uma geladeira cheia por perto. Mas, nas grandes cidades, há acesso fácil a alimentos todos os dias. Há uma distribuição gratuita muito intensa de comida. Os moradores podem até sentir fome de vez em quando, mas não é certo dizer que eles passam fome, como se essa fosse uma condição perene.

Por que os mendigos não passam fome?
Porque há muita gente disposta a dar mantimentos, geralmente sem perguntar muito e de uma forma muito bondosa. Se uma ou outra pessoa nega dar algo aqui, uma terceira dá acolá. Pequenos comerciantes que trabalham com alimentos, membros de ONGs ou religiosos das mais variadas correntes costumam ajudar quem tem fome. Muitas igrejas evangélicas pentecostais, grupos evangélicos mais tradicionais, espíritas e católicos, inundam as ruas com comida. Dependendo do ponto em que o mendigo se coloca, ele pode até escolher, com certo grau de abundância, o que vai mastigar. Nas “bocas de rango”, como são conhecidos esses locais em Fortaleza, ele pode dispensar um prato para esperar por outro, que pode ser a sopa do grupo espírita, o cachorro-quente da Igreja Batista ou o caldo da ONG. É um fenômeno que nos devolve a fé na humanidade. Um mendigo de uma cidade pequena confessou para mim que migrou para a capital porque as pessoas são mais generosas. “Fortaleza é uma mãe”, explicou ele para mim.

O que aconteceria se, de uma hora para a outra, essa distribuição de comida fosse interrompida?
Uma minoria ficaria sem opção e poderia até morrer. São indivíduos que estão na rua por necessidade. Sofreram alguma desgraça não calculada e caíram na miséria. Mas a maioria simplesmente voltaria para casa ou arrumaria alguma coisa para fazer. É o grupo dos parasitas da miséria. Eles fizeram um exercício de vontade para estar na rua. Muitos têm casa, família e emprego, mas foram morar na rua após fazerem um cálculo. Eles acham que o cotidiano nas ruas é mais fácil do que a vida ordinária, em que é preciso trabalhar e conviver com os outros. Mais da metade dos mendigos não precisaria pedir esmolas, mas tomaram essa decisão. São os miseráveis de ocasião. O problema é que essa massa de aproveitadores acaba drenando os recursos que deveriam ir para os que realmente têm necessidade.

O que mais costuma empurrar as pessoas para a rua?
As respostas para essa pergunta costumam ter um viés econômico. Acredita-se que as pessoas deixaram suas casas porque ficaram pobres, perderam todos os seus recursos. Mas geralmente não é isso o que acontece. Imagine que uma pessoa conhecida, de repente, fique sem nada. Quantas ligações ela precisaria fazer para não ir para a rua? No mundo que conhecemos, sempre há algum conhecido, um amigo, um familiar que pode dar um jeito. O problema é que as pessoas que vão para a sarjeta costumam ter um abismo de sociabilidade. Não têm para quem pedir socorro. Os laços familiares foram destruídos por algum motivo. São casamentos que deram errado, moças que brigaram com seus pais por causa de seus namorados. São pessoas muito sozinhas, sem estrutura social e familiar. Muitos têm dificuldade de se colocar dentro da vida em sociedade. Não têm um propósito, um senso de realização, de progresso. Acreditam que foram deixados para trás e que nunca conquistarão coisa alguma. Às vezes são pessoas com renda, formação, trabalho, mas que acabam nas ruas por causa de abismos emocionais, psicológicos ou espirituais.

“Os refugiados não são parasitas da miséria”
E os drogados? Os viciados em crack?
A droga que mais empurra as pessoas para a calçada não é o crack, mas o álcool. A bebida tem um poder viciante imenso e pode ser facilmente comprada. O álcool tira o senso de propósito da vida com muita força. Quem é alcoólatra vive em um estado de embriaguez frequente, constante, por vários dias. Tem muito morador de rua que usa crack e se vangloria de nunca colocar uma gota de álcool na boca.

Nos últimos cinco anos, o Brasil recebeu muitos refugiados, principalmente do Haiti e da Venezuela. O sr. viu muitos estrangeiros dormindo ao ar livre?
No Nordeste, isso não acontece tanto. Mas os refugiados não são parasitas da miséria. Ninguém foge do próprio país como um exercício de vontade. Essas pessoas foram obrigadas a emigrar para não ficar na miséria absoluta, em um país mergulhado numa crise política, como a Venezuela. Mais do que comida, eles precisam de ajuda para obter documentos, um visto que os permita trabalhar. Eles querem um emprego. Almejam se restabelecer na vida. Não eram mendigos em seus países. Eram pessoas comuns, que tocavam suas próprias vidas e, infelizmente, tiveram de fugir.

Por que as pessoas dão tanta esmola?
A primeira explicação é religiosa. Os que ajudam os moradores de rua são, em geral, integrantes de grupos religiosos. A mensagem de Jesus Cristo convida para o cuidado com o pobre e para o amor ao próximo. Além disso, os mendigos funcionam como um entretenimento moral. Ao ajudá-los, as pessoas se sentem moralmente superiores, mais cristãs, mais bondosas. É como um antidepressivo de baixo custo. A esmola ajuda a apaziguar algum vazio interior. Numa sociedade de livre-mercado, em que há muita abundância, as pessoas se sentem um pouco culpadas. Há muita gente rica que não entende muito bem de onde vem a miséria. As notas e a marmita dadas ao sujismundo ajudam a afagar a consciência de quem dá. Mas não necessariamente elas estão ajudando quem recebe essas coisas. Sem querer, essas pessoas criaram um grupo que depende da bondade dos outros e que não enfrenta seus próprios problemas.

“O que tem tornado as ruas atrativas é a iniciativa privada”
A visão que temos dos mendigos é estereotipada?
O erro começa quando falamos em “os mendigos”, como se eles fossem um grupo uniforme. É como falar em “os contadores” ou “os repórteres”. Eles podem até ter algo que os une, que é a atuação, mas são seres individuais. Esse coletivismo, muitas vezes, é outro nome para preconceito. Então, é muito difícil ter uma característica que se aplique a todos eles. Alguns estão na rua porque são vítimas. Outros são vilões. Alguns ameaçaram matar ou efetivamente mataram alguém. Tem mendigo que vende a marmita que ganhou para comprar droga. Alguns têm celular. Não é iPhone, mas é um smartphone baratinho. Tem analfabeto, tem gente com formação universitária. Tem poeta, tem gente com livro publicado. Tem viciado, tem alcoólatra. Tem gente louca da cabeça que não sabe o próprio nome. Tem senhora que pega emprestado o sobrinho da amiga para pedir esmola. Essa simplificação dos mendigos como um grupo harmônico é um erro que tanto a esquerda quanto a direita cometem. Por um lado, a esquerda só consegue enxergar o mendigo em seu papel de classe. São miseráveis, manifestações físicas da pobreza. A direita só consegue ver o mendigo como um vilão, alguém que não agrega valor para a sociedade e que está ali porque quer.

O que o sr. recomenda?
Precisamos olhar para eles como indivíduos. Temos de parar de coletivizar aquilo que é particular. Para isso, é fundamental escutá-los e se engajar mais. Se temos compaixão de fato pelo outro, então devemos nos doar mais. Nos dedicar mais. É preciso ajudá-los a alcançar algum desenvolvimento humano. Algo que possa tirá-los dessa situação de paternalismo. Algumas ONGs e igrejas têm feito um trabalho maravilhoso. Em João Pessoa, na Paraíba, uma ONG faz um acampamento de mendigo, uma espécie de retiro. Eles ficam um tempo morando em um sítio. Tomam banho e assistem a palestras. São atendidos por uma equipe multidisciplinar, com psicólogos, dentistas, pastores e advogados.

E aos governos, o que cabe fazer?
O que tem tornado as ruas atrativas é a iniciativa privada, que é muito eficiente. Da mesma maneira, é a iniciativa privada que mais pode ajudar da forma correta. O governo só pode ajudar fornecendo documentos ou criando centros em que possam tomar banho. O Ministério Público também pode atuar para coibir e punir os crimes que são cometidos entre eles ou contra outras pessoas. Mas o estado não pode fazer muita coisa uma vez que se trata de um problema humano, emocional, espiritual, de sentido para a vida. É de ordem muito mais metafísica do que material. Não há muito o que uma estrutura cheia de burocratas seja capaz de realizar. Quem pode alcançar os mendigos são os seres humanos.

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