Casa BrancaTrump queria que o presidente ucraniano fizesse uma declaração pública anunciando a investigação sobre Biden

Horizonte complicado

Depoimentos de diplomatas reforçam a narrativa sobre a atuação de Donald Trump e Rudolph Giuliani na Ucrânia, para beneficiar o presidente americano na eleição de 2020
08.11.19

No processo de impeachment em curso na Câmara dos Deputados dos Estados Unidos, a questão central é saber se o presidente americano, Donald Trump, usou de sua posição pública para obter benefícios pessoais. Na condição de presidente, ele teria direcionado a política externa americana na Ucrânia de modo a prejudicar o pré-candidato democrata Joe Biden, seu mais provável rival nas eleições daqui a um ano. Na última semana, transcrições de depoimentos de cinco diplomatas americanos não deixaram muitas dúvidas de que ocorreu um quid pro quo, a expressão em latim usada pelos americanos para se referir a uma troca de favores, o conhecido toma lá dá cá. Para receber a tão desejada ajuda militar do governo americano, os ucranianos foram pressionados a dar uma mão ao candidato Trump.

O depoimento mais surpreendente é o do embaixador americano na Ucrânia, William Taylor, divulgado na quarta-feira, 6. Diplomata de carreira, ele disse ter ficado chocado ao saber que Trump suspendeu, em meados do ano, uma ajuda militar de 391 milhões de dólares para a Ucrânia. Em 2014, o país sofreu uma invasão russa e teve a península da Crimeia anexada. Cerca de 13 mil pessoas já morreram no conflito. “Os radares, as armas, os rifles, os aparelhos de comunicação, essas coisas salvam vidas. Elas podem encurtar a guerra”, disse Taylor em seu relato para os deputados.

Assim como outros diplomatas que prestaram depoimento, Taylor se queixa de um “canal de política irregular”, que seria comandado pelo advogado de Trump, Rudolph Giuliani. Ex-prefeito de Nova York, Giuliani pressionou os ucranianos a investigar Joe Biden e seu filho Hunter. Quando seu pai era vice-presidente de Barack Obama, Hunter ganhou um cargo de conselheiro na empresa de gás Burisma, com salário de 50 mil dólares por mês. Ao se meter com a Ucrânia, Giuliani queria averiguar casos de corrupção envolvendo os Biden e apurar uma suposta interferência ucraniana nas eleições americanas de 2016.

Mesmo sem cargo no governo, Giuliani esteve onipresente em todas as negociações diplomáticas sobre a ajuda militar, conversando com diplomatas americanos e ucranianos. Gordon Sondland, embaixador dos Estados Unidos na União Europeia, entendeu que a atuação de Giuliani era “ilegal”. Taylor a considerou “irregular”. Mas nenhum deles ofereceu resistência. “Não acho que eles pensavam que poderiam fazer isso”, disse em seu depoimento a ex-embaixadora dos Estados Unidos na Ucrânia, Marie Yovanovitch, que foi removida do cargo para dar lugar a Taylor.

William Taylor: “Os russos amariam a humilhação pública de Zelensky”
Os pedidos que os americanos fizeram aos ucranianos em troca da liberação da ajuda militar e de um encontro entre Trump e Zelensky na Casa Branca indicam que houve motivação eleitoral. Por meio de Giuliani, Trump teria feito exigências em relação ao presidente da Ucrânia, Vladimir Zelensky, um ator e comediante que assumiu a presidência em maio deste ano.

Em diálogos com Sondland e com Tim Morrison, então diretor sênior do Conselho Nacional de Segurança, Taylor entendeu que Trump fazia questão que o próprio Zelensky fizesse uma declaração pública, anunciando que seu país iniciaria uma investigação sobre a família Biden. Zelensky teria de ir ao microfone para “esclarecer as coisas publicamente”. Segundo Sondland, o ucraniano teria concordado em fazer o anúncio em uma entrevista para a rede de televisão CNN, curiosamente um dos canais mais criticados por Trump.

A pressão americana para que Zelensky desse uma declaração pública não foi bem recebida em Kiev. Um diplomata ucraniano disse a Taylor que Zelensky não queria ser usado como um peão na campanha de reeleição americana. Taylor considerou que seria um pesadelo a aparição de um presidente estrangeiro na CNN, a fim de favorecer Trump. “O pesadelo seria o cenário em que o presidente Zelensky vai a público, faz um anúncio dizendo que vai investigar a Burisma e as eleições de 2016, compra briga por causa disso, enfrenta  problemas nos Estados Unidos e também no seu país, e a ajuda não é liberada”, disse Taylor. O diplomata também se preocupava com a reação do presidente russo, Vladimir Putin. “Os russos amariam a humilhação pública de Zelensky nas mãos dos americanos, o que abriria as portas para os russos na Ucrânia. E eu teria de sair.”

As transcrições dos relatos dos diplomatas se corroboram mutuamente. Como tudo isso irá reverberar é um mistério. Na próxima semana, as comissões da Câmara dos Deputados realizarão interrogatórios públicos, que serão transmitidos pela televisão. Entre os que irão depor, estão alguns dos que já tiveram transcrições reveladas, como William Taylor e Marie Yovanovitch.

Sondland, embaixador na UE, com o ucraniano Zelensky, em junho
Os democratas esperam que a transmissão das audiências pela televisão dê legitimidade ao processo de impeachment. Em agosto, cerca de 45% dos americanos apoiavam a investigação. Há duas semanas, o número subiu para 51%. Desde então, o apoio tem se estabilizado. Isso porque cerca de 45% aprovam o trabalho de Trump na Casa Branca. E os que gostam de Trump não querem o impeachment.

Encerradas as audiências públicas, a Câmara dos Deputados fará uma lista de acusações contra Trump. São os “artigos de impeachment”. Alguns dos itens mais prováveis a constar no cardápio são abuso de poder, corrupção, extorsão e obstrução de Justiça. “O impeachment é um processo puramente político, em que os legisladores é que irão definir quais foram os crimes e contravenções cometidos”, diz o advogado Luis Fernando Baracho, professor de direito internacional. Com a lista pronta, a Câmara votará os artigos. Como os democratas são em maior número e é preciso maioria simples para aprovar as acusações, o caso deve avançar para a próxima etapa, no Senado.

Para que Trump sofra um impeachment no Senado, será necessário que dois terços dos senadores acatem os artigos enviados pela Câmara. Mas os republicanos ocupam 53 das 100 cadeiras nessa Casa. Até agora, nenhum deles deu sinal de que mudaria de lado. A lealdade partidária tem sido a regra. Na votação que ocorreu na Câmara dos Deputados, no dia 31 de outubro, para aprovar o início formal do processo, todos os republicanos votaram contra a iniciativa dos democratas. “Essa votação mostra que os republicanos ficarão com Trump, não importa quais evidências apareçam no decorrer do processo”, diz Thomas Schaller, professor da Universidade Maryland e especialista no Partido Republicano. Os senadores temem que, se retirarem o apoio a Trump, eles serão castigados pelos eleitores. O presidente é aprovado por quase 90% dos americanos republicanos.

Com a destituição fora das possibilidades, a atenção se volta para as eleições, marcadas para novembro do ano que vem. O julgamento do impeachment deve ser concluído até janeiro. Se os democratas conseguirem usar o processo a ponto de desgastar a imagem do presidente de maneira duradoura, a reeleição de Trump poderia estar ameaçada. Nas últimas pesquisas, o republicano aparece entre 9 e 17 pontos percentuais atrás do democrata Joe Biden — que aparentemente não sofreu desgaste com a história da Ucrânia, como alguns esperavam (a maior ameaça a ele é Elizabeth Warren, nome mais à esquerda do seu partido que pode ser escolhida candidata no lugar de Biden). Com uma distância maior que dez pontos percentuais no voto popular, as chances de o republicano perder a eleição nos estados-pêndulo, aqueles que podem mudar de preferência política a cada eleição, é maior. Em 2016, a vitória em cinco desses estados foi o que assegurou a vitória de Trump no colégio eleitoral, apesar de ele ter recebido menos votos que sua opositora, a democrata Hillary Clinton.

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