De suspeito a suspeito
Brasil, 15 de novembro de 1989. Pela primeira vez desde o fim da ditadura, o país ia às urnas para eleger um presidente da República. Na tarde seguinte, o mais jovem entre os 22 candidatos, Fernando Collor de Mello, de 40 anos, comemorava com familiares e assessores em um churrasco na mansão de um empresário amigo, no Lago Sul, o resultado da apuração parcial. Ele estava garantido no segundo turno das eleições, na condição de candidato mais votado na primeira etapa do pleito. Eram tempos de cédulas de papel e contagem demorada. As noites anteriores haviam sido longas. Collor ia para a cama por volta de 1 hora da madrugada, após muitas doses de uísque Logan. Um mês depois do primeiro turno, rechaçando alianças sob a alegação de que não abriria mão de nenhum item do seu programa de governo em troca de apoio no Congresso, ele conquistava 51% de votos válidos em uma disputa renhida e de extrema polarização política com Luiz Inácio Lula da Silva. A teimosia de prescindir de aliados capazes de lhe franquear sustentação política custaria caro mais adiante: seu governo seria implodido em menos de dois anos, alvo de impeachment, em meio à grave crise econômica e denúncias de montagem de um esquema de desvio de dinheiro público. Exatamente três décadas após a eleição que o levou à Presidência, o hoje senador Collor não sai da mira da Justiça.
Investigações do Ministério Público e da Polícia Federal, entre elas a que culminou com a Operação Arremate, desdobramento da Lava Jato, envolvem o senador em um esquema de lavagem de dinheiro por meio de compras de imóveis por laranjas em leilões de bens penhorados pela Justiça. De acordo com a PF, as apurações visam a identificar e comprovar “o provável envolvimento” de Collor em arremates de imóveis em hastas públicas ocorridas em 2010, 2011, 2012 e 2016, por meio de testas-de-ferro. Não foi propriamente a reestreia de Collor nas páginas político-policiais. Quatro anos atrás, a mesma Casa da Dinda que fora um dos pivôs da derrocada de Collor, havia voltado aos holofotes. Carros luxuosos, em fila indiana, deixavam a sua garagem — uma Ferrari, uma Lamborghini e um Porsche. Era 15 de julho de 2015 e policiais federais cumpriam mandados de busca e apreensão na Operação Politeia, para apurar o envolvimento de políticos em esquema de desvios da Petrobras. Fernando Collor estava incluído.
No ano passado, quando se candidatou ao governo de Alagoas, Collor declarou um patrimônio de 20 milhões de reais à Justiça Eleitoral, volume que fazia dele o nono mais rico entre os 81 senadores da República. Entre os bens declarados por Collor estavam 13 veículos, sem incluir as supermáquinas apreendidas pela PF na Casa da Dinda e devolvidas depois ao ex-presidente, por ordem do Supremo Tribunal Federal. Collor as omitiu, claro. A Ferrari vermelha modelo 458 Italia, fabricada em 2010, foi avaliada em 1,8 milhão de reais pela PF. A Lamborghini Aventador LP 700-4 Roadster 2013/2014 foi orçada em torno de 3,9 milhões. Já o Porsche Panamera Turbo fabricado em 2011 valeria 1 milhão de reais. O trio está em nome de uma das empresas declaradas pelo senador, a Água Branca Participações. À Justiça Eleitoral, Collor também informou ter 29 terrenos, apartamentos, casas e prédios residenciais. Só em obras de arte, o ex-presidente disse possuir cerca de 2 milhões de reais. A coleção inclui quadros de Portinari, Di Cavalcanti e Frida Khalo. Nesse caso, há outra suposta irregularidade. A PF diz que o senador lavou 4,6 milhões de reais por meio das obras. O dinheiro, de acordo com as investigações, teria passado pelas empresas de comunicação da família, hoje sob a ameaça de fechar em função de dívidas.
Não fosse uma decisão publicada pelo Superior Tribunal de Justiça, o STJ, às 23h57 de 29 de agosto, os prédios e outros bens das Organizações Arnon de Mello iriam à leilão na manhã seguinte para quitar parte da dívida trabalhista. A defesa conseguiu essa vitória sob a alegação de que os bens descritos no leilão estão em recuperação judicial e, caso fossem arrematados, inviabilizariam o funcionamento das empresas. Um juiz concordou com os argumentos. A incerteza aumentou para os funcionários do grupo, sem perspectiva de receber algo a curto ou a médio prazo.
Além dos trabalhadores, quem também recorre à Justiça para garantir o seu quinhão na fortuna de Collor é Rosane, a ex-primeira-dama do Brasil. Como forma de pagamento da partilha de bens pelos anos em que estiveram casados, ela pediu a penhora da mansão onde mora, em Maceió. Avaliada em 5 milhões de reais, a casa pertence ao senador, mas Collor deixou Rosane ocupá-la desde o fim do casamento. Além da refrega pela partilha de bens, ela ainda trava com o ex batalhas judiciais pelo não pagamento de pensões alimentícias.
Collor, a atual mulher, Caroline Medeiros, e as filhas também desfrutam de uma vida de luxo na capital do país. Embora mantenha a discrição no Senado, o ex-presidente, não raro, é visto à vontade nos mais badalados eventos da corte brasiliense. O político alagoano não desfila mais de lancha ou arrisca acrobacias em jet ski no Lago Paranoá, como nos tempos de presidente, mas vai à academia três vezes por semana e corre pelas ruas e áreas verdes do Lago Norte, onde fica a Casa da Dinda. Em fevereiro, o Supremo instaurou inquérito para apurar o uso de dinheiro público na manutenção da mansão. Em 2017, Collor gastou cerca de 40 mil mensais da cota parlamentar com segurança, conservação, limpeza e jardinagem na propriedade.
Já em Maceió, Collor e família têm à disposição um apartamento avaliado em 3 milhões de reais, de frente para o mar. Mas, com a crise nas empresas, eles costumam evitar a capital alagoana: receiam manifestações dos funcionários e ex-funcionários do grupo. Em meio à derrocada das Organizações Arnon de Mello, está em jogo o futuro político do clã em Alagoas. Há um mês, o governador Renan Filho, do MDB, abriu artilharia contra Collor. O filho do senador Renan Calheiros, ex-aliado de Collor, tem atacado o ex-presidente em entrevistas e em eventos públicos. Renan Filho e Collor são potenciais adversários em uma disputa ao Senado em 2022. Governador reeleito, Renanzinho, como é conhecido, pretende se candidatar à única vaga de senador do estado nas próximas eleições. Collor almeja renovar o mandato.
Os planos, no entanto, podem ser frustrados caso as investigações da PF avancem. O ex-caçador de marajás tem alternado derrotas e vitórias nos tribunais. Relator da Lava Jato no STF, o ministro Edson Fachin arquivou uma denúncia apresentada em maio contra o senador. Considerou que houve prescrição. Mesmo com o arquivamento, Collor ainda é réu em uma ação penal e investigado na Operação Arremate. Na trajetória do ex-presidente deposto, a história se repete como um looping interminável.
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