Lula ataca
Lula sempre gostou de viver de obséquios. Não poderia ser diferente na sexta-feira, 8, quando o petista deixou a cadeia, em Curitiba, beneficiado pela decisão do Supremo Tribunal Federal de derrubar a prisão em segunda instância. O primeiro convescote depois do “Lula Livre” teve como palco o apartamento de um amigo do ex-presidente no bairro Batel, na capital paranaense: o advogado Wilson Ramos, o Xixo, sócio do Centro Universitário Unibrasil. Por volta da meia-noite, já enfastiado de uísque e risoto, Lula avistou Dirceu. O ex-ministro, a quem o ex-presidente já se referiu como “capitão do time”, trajava um casaco cor de gelo e uma camiseta azul por baixo. Lula, uma blusa com ranhuras acinzentadas. “Presidente!”, entoou Dirceu. “Companheiro Zé”, devolveu Lula, antes de posarem para foto. Logo a imagem ganharia as redes sociais.
Se a imagem do aperto de mão selará a reconciliação definitiva do “caudilho” e “seu executor” ante um partido de joelhos, como definia o economista Paulo de Tarso Venceslau — aquele que ousou denunciar Lula ainda na década de 90 por malversação de recursos e acabou defenestrado da legenda — só o tempo irá dizer. Entre ambos, as insinuações de traição são mútuas. O interesse comum, no entanto, é capazes de reatar laços que pareciam esgarçados. No caso, trata-se da retomada do poder.
Lula – com o apoio de Dirceu – modula para cima o tom do discurso, descarta qualquer autocrítica, adota o radicalismo como motor de arranque e apela para a mística do revolucionário que nunca foi. Enfim, é o velho vale-tudo político-eleitoral do PT: aquele que não se constrange em celebrar alianças com partidos fisiológicos, prevê um novo controle da máquina estatal, a utilização da engenharia sindical, a combustão das ruas e o velho e surrado atrelamento dos movimentos sociais, da classe artística, de intelectuais, de setores da imprensa e de blogs pagos.
Há planos já em processo de gestação, como a reunião de empresários ligados à esquerda para bancar campanhas já no próximo ano, quando Lula e o PT tentarão avançar sobre o maior número de cidades possível. Entre os empresários procurados, está José Seripieri Junior, fundador da Qualicorp, maior administradora de benefícios na área de saúde. Antes de ser preso, Lula costumava passar os réveillons na casa de Seripieri no condomínio Portogalo, em Angra dos Reis — a Crusoé o empresário negou ter recebido pedido dessa natureza recentemente. Quem já tem contribuído financeiramente é a empresária Rosane Gutjahr, do ramo de educação. Em abril deste ano, ela torrou 227 mil reais num leilão de fotografias de Lula autografadas pelo petista. O dinheiro foi revertido para os cofres do Instituto Lula. Mas não parou por aí: defensora do “Lula Livre” desde a sua concepção, Rosane estaria disposta a fazer doações mensais de pelo menos 100 mil reais ao PT. No período de campanha, os valores seriam majorados. Outro objetivo do ex-presidente petista é reativar o financiamento da chamada imprensa amiga e da tropa de blogs aliados. Conforme apurou Crusoé, uma das operações envolve diretamente empresários ligados ao presidente da Venezuela, Nicolás Maduro. O ditador avalizou uma operação — aprovada por Lula — destinada a irrigar as contas de uma publicação semanal brasileira. Com o petista na cadeia, a negociata acabou não sendo concluída. Mas tende a ser retomada agora. Se possível, estendendo-a a outros personagens que atuam na linha de frente da guerrilha digital em favor do PT.
Os planos foram colocados em marcha em conversas reservadas mantidas nos últimos dias. Dirceu, que delinquiu no mensalão e reincidiu na Lava Jato, repetiu como ladainha em procissão que é preciso fazer a “revolução brasileira inconclusa”, resgatando o que tem chamado de “revolução social e política”. Só assim seria possível responder ao que classifica de “radicalização da direita”. Os termos são motivo de desconfiança na própria esquerda petista, contra a qual Dirceu travou embates homéricos antes mesmo de subir ao poder em 2002, sob Lula. “Como o político que conduziu o partido para o pragmatismo institucional agora quer pregar um programa à esquerda?”, indaga um ex-dirigente do PT. O historiador Boris Fausto questiona a movimentação de Lula. “Ele não tem condições, mesmo saindo da cadeia e tendo a militância que tem, de encarnar uma perspectiva democrática, social, que olhe para frente e diga: bom vamos garantir liberdade, e atacar seriamente as questões iníquas que existem neste país”, disse.
No polo oposto, o presidente Jair Bolsonaro aposta na reaglutinação das forças de direita a partir do Lula Livre. Eduardo Bolsonaro, o filho 03 do presidente, faz coro. Aposta que o retorno de Lula ao tabuleiro do xadrez político “vai provocar uma nova reunião de forças antipetistas”. “A revolta e indignação da sociedade com a impunidade voltam à tona novamente com a soltura de Lula. Isso vai criar uma atmosfera em que novamente deixaremos pequenas diferenças de lado e ocorrerá uma união em torno do antipetismo”, afirmou.
Aliados tentam relativizar o discurso raivoso de Lula, temerosos de que a estratégia pós-cadeia se transforme em mais um tiro no pé. “Não existe ninguém mais aliancista do que o Lula”, diz o senador do PT Humberto Costa. A volta ao figurino mais radical exigiria um certo esforço, de fato. Antes de se render às delícias e aos fascínios do poder, Lula já era movido pelo pragmatismo. Quando sindicalista no ABC, ao mesmo tempo em que rugia para os trabalhadores como um leão indomado, dobrava-se mansamente aos desígnios de empresários da Fiesp. Para chegar lá, e se perpetuar no poder, mandou às favas todos os escrúpulos que dizia ter. Emilio Odebrecht, o “amigo”, decifrou Lula bem antes de ele chegar ao terceiro andar do Palácio do Planalto. Seduziu-o com dinheiro e conforto.
Alianças com as legendas do fisiológico Centrão, como o PP e o PL, também serão bem-vindas. Os partidos estão na gênese do mensalão, mas Lula não se importa em vê-los no barco petista, desde que topem defender no palanque o que chama de “herança do PT”. “As alianças com o centro devem se restringir aos partidos que assumam um compromisso de se juntar em torno de um mesmo programa”, diz o deputado Patrus Ananias. Foi exatamente com o intuito de neutralizar essa ofensiva que Bolsonaro correu nesta semana para lançar seu novo partido, o Aliança pelo Brasil. Para a nova sigla alegadamente de “direita pura”, o presidente espera não só atrair ex-parlamentares do PSL alinhados ideologicamente a ele, como integrantes do Centrão, para os quais “se hay gobierno, soy (em geral) a favor”.
Lula evita falar sobre a possibilidade de vir a ser candidato novamente a presidente. Até para não melindrar os ministros do STF, com quem ele e sua banca de advogados contam para declarar a suspeição do ex-juiz e atual ministro da Justiça, Sergio Moro, nos processos a que responde. Hoje Lula está inelegível pela Lei da Ficha Limpa. Mas se conseguir a suspeição de Moro, pode recuperar os direitos políticos. Embora adote a tática do silêncio sobre o tema, a mais de uma pessoa, nos últimos dias, o petista reconheceu que, sim, acalenta o desejo de concorrer a um terceiro mandato presidencial, gesto que será vendido às massas como fruto de um “chamamento nacional” — como se a sociedade tivesse apagado da memória o que o PT fez nos verões passados. A propósito, a autocrítica não está no horizonte lulista. “Vocês já viram alguém pedir para FHC fazer autocrítica? Quem quiser que o PT faça autocrítica, que faça a crítica você. Quem é oposição que critica, ela existe para isso. Na dúvida, a gente defende o nosso companheiro”, bradou o ex-presidente em Salvador na quinta-feira, 14.
Um dos operadores do projeto Lula, Gilberto Carvalho é quem vai se dedicar à relação com os chamados movimentos sociais. Lula se mantém disposto a colocar em marcha o que explicitou em discurso em São Bernardo, no dia seguinte à sua soltura, quando disse que é preciso seguir o exemplo do “povo do Chile”. “Não é resistir. Na verdade, é lutar, é atacar e não apenas se defender”, afirmou. Nas conversas com aliados, nos últimos dias, o ex-presidente afirmou que vai fazer de tudo para manter o “ambiente inflamado” nas ruas para que o governo Bolsonaro fique “sangrando” até 2022. Para isso, ficará em contato permanente com João Pedro Stédile, do MST, e Guilherme Boulos, do Movimento dos Trabalhadores Sem Teto. Lula sabe que o partido perdeu a primazia das ruas desde os movimentos de 2013 e colocou como meta voltar a domá-las. “A oposição não tem outra saída (senão ganhar as ruas)”, disse o petista em mensagem encaminhada a seguidores de Boulos nesta semana. Não será uma tarefa simples, por óbvio. Para a maioria da população, a despeito dos holofotes lançados sobre ele dos últimos dias, Lula saiu da prisão do mesmo tamanho que entrou. E quando insufla a militância a reprisar o caldeirão chileno, numa reedição do clima do “nós contra eles”, faz a lupa trabalhar ao contrário: fica ainda menor. Esquece que a sociedade, pelo menos a maior parte dela, não transige com o caos e a balbúrdia. A maioria defende senão a ordem no sentido da segurança, a ordem das “coisas no lugar”, como falava Tomás de Aquino.
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