Pedro Ladeira/FolhapressBriga na frente da Embaixada da Venezuela em Brasília: Bolsonaro falou em "interferência de atores externos"

Vizinhança radioativa

Evo Morales enxotado da Bolívia, Chile em transe e venezuelanos que provocam conflito até em Brasília: como o Brasil pode evitar que as confusões o contaminem
15.11.19

Na madrugada da quarta-feira, 13, o encarregado de negócios da Embaixada da Venezuela em Brasília, Freddy Efrain Meregote Flores, mandou uma mensagem de áudio para seus contatos: “Informo a vocês que pessoas estranhas estão entrando e violentando o território da Venezuela. Precisamos de ajuda. Precisamos da ação imediata de todos os movimentos sociais e partidos políticos”.

Perto das 4 horas da manhã, um grupo de aliados do presidente interino da Venezuela, Juan Guaidó, ingressara na embaixada em cinco carros. Segundo a embaixadora de Guaidó, María Teresa Belandria, dois diplomatas de carreira da ditadura de Nicolás Maduro tinham reconhecido Guaidó como presidente legítimo e abriram as portas do local aos demais.

A mensagem de Meregote soou em celulares de integrantes do PT, PSOL e PCO e de movimentos como o MST e o MTST. Uma hora após a entrada do grupo de Guaidó, deputados federais desses partidos, militantes sem-terra e funcionários da Embaixada de Cuba chegaram ao prédio. Houve confronto. Aos socos e pontapés, eles expulsaram os seguidores do presidente interino para o jardim da embaixada. No final da tarde, um acordo permitiu a saída dos aliados de Guaidó pelos fundos e sob escolta. No caminho, eles foram xingados e ameaçados de morte. Não foram agredidos porque a Polícia Militar usou spray de pimenta.

Reprodução/redes sociaisReprodução/redes sociaisNicolás Maduro: governo pediu retirada de ‘invasores’ da embaixada
A confusão na Embaixada da Venezuela é o mais bem-acabado exemplo de como as crises nos países vizinhos podem ter consequências dentro do Brasil. De uma hora para outra, o impasse vivido na Venezuela entre o ditador Nicolás Maduro e o presidente interino Juan Guaidó irrompeu na capital federal e demandou uma resposta. Como o Brasil reconheceu Guaidó como o legítimo presidente da Venezuela em janeiro deste ano, em tese o governo brasileiro deveria apoiar os seguidores de Guaidó. O terreno da embaixada, contudo, é considerado território da Venezuela, que ainda é governada pelo ditador Maduro.

Um punhado de atitudes poderiam ajudar o Brasil a blindar-se da desintegração dos vizinhos. Em uma mensagem no Twitter, o presidente Jair Bolsonaro começou falando em forças externas, mas sem dar nome aos bois. “Diante dos eventos ocorridos na Embaixada da Venezuela, repudiamos a interferência de atores externos”, escreveu o presidente. A acusação de que estrangeiros estão manobrando no jogo político nacional é grave e deve ser objeto de investigação. “O Brasil não pode permitir tal intromissão. Este é o momento de perguntar se a Polícia Federal, as Forças Armadas e a Agência Brasileira de Inteligência estão devidamente equipadas e fazendo o seu trabalho”, diz o advogado Luis Fernando Baracho, especialista em direito internacional.

Na mesma mensagem no Twitter, Bolsonaro pediu respeito às regras internacionais. “Estamos tomando as medidas necessárias para resguardar a ordem pública e evitar atos de violência, em conformidade com a Convenção de Viena sobre Relações Diplomáticas”, disse o presidente. A neutralidade da frase de Bolsonaro surpreendeu, uma vez que o presidente constantemente tem tomado posição em assuntos internos de outros países. Talvez o presidente não estivesse interessado em criar atritos justamente no dia em que começava em Brasília uma reunião do BRICS, o grupo que reúne Brasil, Índia, China, Rússia e África do Sul. Vladimir Putin, franco apoiador de Maduro, estava a caminho e um passo em falso poderia azedar o ambiente.

Jeanine Añez toma posse na Bolívia: reconhecida pelo Brasil
Para o embaixador Rubens Barbosa, a postura do presidente ao optar por não acirrar ainda mais os ânimos foi correta. “As crises que estão ocorrendo em vários países da região têm pouco a ver com o Brasil. Elas são geradas por fatores internos e não há nada que possa ser feito para impedi-las ou remediá-las”, diz. “Qualquer tomada de posição motivada por fatores ideológicos é um erro que deve ser evitado.” No governo, um dos mais afoitos em assumir posições tem sido o ministro de Relações Exteriores, Ernesto Araújo. Após a vitória em primeiro turno do peronista Alberto Fernández, na Argentina, o ministro escreveu no Twitter: “As forças do mal estão celebrando”. Agora em nome do governo brasileiro, Araújo também foi o primeiro chanceler a reconhecer o governo transitório de Jeanine Añez, na Bolívia. No domingo, 10, o presidente Evo Morales renunciou. Na terça-feira, Jeanine proclamou-se presidente.

Araújo foi um dos que articularam o reconhecimento de Guaidó como presidente interino da Venezuela, em janeiro. A situação da presidente interina da Bolívia ao menos parece mais consolidada. Nesta semana, Jeanine trocou chefes militares e ministros, mas Evo Morales segue tentando disseminar o caos a partir do México, onde conseguiu asilo político. A Bolívia é mais foco de radioatividade na região. Assim como o Chile, que nas últimas semanas viu as ruas de Santiago serem tomadas por manifestantes. Do protesto contra o preço da passagem de metrô, as reivindicações foram ganhando corpo e chegaram à exigência de uma nova Constituição. O governo cedeu e uma nova Carta Magna deverá substituir a atual, elaborada durante a ditadura de Augusto Pinochet. A esquerda, que comanda o espetáculo nas ruas, quer mais Estado na economia, ao contrário do previsto na Constituição em vigor, regida por princípios liberais — os mesmos que fizeram o sucesso econômico do país.

A situação chilena, aliás, fez acender sinais de alerta por aqui. Cresceu a preocupação de que o Brasil possa voltar a ter distúrbios como os de 2013, organizados via redes sociais. O risco, porém, é relativo. As chances de protestos massivos aumentam na mesma medida dos desfazimento das instituições e processos eleitorais. Na Bolívia, a representatividade foi para o ralo em 2016, quando Evo Morales passou por cima de um referendo em que a população disse não ao desejo dele de concorrer a um quarto mandato. No Chile, a introdução do voto facultativo em 2012 fez com que mais da metade dos cidadãos passassem a ignorar as eleições. “Os chilenos se deram conta agora de que, quando só metade da população sai para votar, fica mais difícil para o futuro presidente tocar seu programa de governo. Mesmo recebendo mais da metade dos votos válidos nas últimas duas eleições, Sebastián Piñera e Michelle Bachelet só conseguiram o apoio de cerca de 25% da população”, diz o cientista político chileno Roberto Izikson, gerente de assuntos públicos e estudos quantitativos da Cadem, em Santiago. No Brasil, há sinais explícitos da existência de um rearranjo das forças acostumadas aos maus hábitos que tanto descontentam os cidadãos. É preciso evitar imiscuir-se nos assuntos dos vizinhos, mas sem jamais deixar de tirar lições sobre o que acontece do lado de lá das nossas fronteiras.

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