STF

O Big Brother de Toffoli

O presidente do Supremo é contido em seu esforço para ter acesso a algumas das informações mais sensíveis da República
22.11.19

Se a clareza é a cortesia do filósofo, ir “do escuro para o claro”, como pregava Goethe, deveria ser a obrigação de todo e qualquer magistrado. Mas o presidente do STF, Dias Toffoli, muitas vezes demonstra não ter apreço à nitidez. Apostando no breu, Toffoli imaginou acessar os dados sigilosos de 600 mil pessoas físicas e jurídicas produzidos nos últimos três anos pelo antigo Coaf (Conselho de Controle de Atividades Financeiras). Quando viu que poderia deixar digitais à mostra, recuou. Na quarta-feira, 20, em voto de mais de quatro horas de duração, durante o julgamento do Supremo destinado a examinar a liminar expedida por ele responsável por travar investigações baseadas no compartilhamento de informações do Coaf e da Receita com o Ministério Público, Toffoli recheou sua fala de platitudes, empreendeu rodopios, foi, voltou e terminou produzindo um clima de constrangimento entre seus próprios pares. “Tem que trazer um professor de javanês para entender o voto (de Toffoli)”, confidenciou o ministro Luís Roberto Barroso a alguns ministros, ao deixar o plenário.

Quem não se expressa com clareza, recorre a subterfúgios linguísticos, percorre caminhos sinuosos com as palavras com o intuito não de explicar, mas de confundir, corre o risco de mascarar a verdade. Mas nada como um pouco de luz para decifrar um voto-esfinge. Senão vejamos. Toffoli quis dar tom inédito ao que já era comum nos procedimentos que balizam o compartilhamento de dados bancários e fiscais da UIF (ex-Coaf), da Receita e do BC com o Ministério Público. Em dado momento de sua explanação, disse que a UIF só deveria compartilhar dados globais, ou seja, o óbvio ululante. A proibição de transmitir aos órgãos de controle extratos bancários também não encontra sentido na realidade, uma vez que o antigo Coaf, hoje UIF, jamais acessou informações desta natureza, ocupando-se tão somente de produzir relatórios de inteligência financeira fundamentados justamente nos tais “dados globais”.

Não há nada de novo no front nem quando Toffoli diz querer obrigar o Ministério Público a instaurar um Procedimento de Investigação Criminal (PIC) e comunicar o juízo competente, tão logo receba da UIF um relatório de inteligência financeira. Não é de hoje que é exatamente dessa maneira que o Ministério Público opera. Ao complementar o seu voto na sessão de quinta-feira, 21, Toffoli enfim, agiu com a clareza que se espera de um magistrado do seu quilate, ao defender que determinadas informações levantadas pela Receita no âmbito dos procedimentos, como extratos bancários e declarações de Imposto de Renda, não deveriam ser enviadas ao Ministério Público sem autorização judicial. Na prática, se esse entendimento estivesse em vigor, o avanço da Receita sobre sua mulher, a advogada Roberta Maria Rangel, revelado por Crusoé em junho deste ano, e o envio das informações aos procuradores deveriam ser comunicados a ele pelo próprio Ministério Público.

STFSTFBarroso sugeriu “professor de javanês” para decifrar os rodopios de Dias Toffoli
O presidente do STF tenta dourar a pílula, mas nunca pareceu se importar com a medida de exceção que colocou em marcha. O objetivo inicial era aparentemente o de paralisar as investigações sobre Flávio Bolsonaro (“lenda urbana”, segundo o ministro), que resultou no travamento de outras 935 apurações. Não contente em congelar as investigações, ele passou a querer acessar dados sigilosos em poder da inteligência financeira, como revelou a Folha de S.Paulo, ao noticiar que Toffoli tinha exigido acesso a dados compilados por Coaf e Receita de 600 mil contas de pessoas físicas e jurídicas.

Na prática, políticos de todos os espectros ideológicos e até empresas que tiveram transações financeiras atípicas e caíram na mira de ambos os órgãos estavam com suas informações sensíveis ao alcance de Toffoli. A recente ofensiva do ministro aos dados sigilosos da Receita corria sob sigilo. Somente após ser revelada pela Folha é que o ministro recuou da decisão. Antes do cavalo de pau, porém, ele rejeitou um pedido da Procuradoria-Geral da República para revogar a medida e reiterou que o seu gabinete, em nenhum momento, acessou as informações que foram disponibilizadas. O estrago, porém, já estava feito e refletiu-se no confuso voto do ministro, que fez questão de se dirigir aos colegas mais antigos da corte, o decano Celso de Mello e o ministro Marco Aurélio Mello, para tentar se justificar. “Olha que para chegar a receber esses dados, ministro Celso e ministro Marco, foi necessário dar uma decisão bastante dura, mas, se não fosse aquela decisão, jamais teria obtido aqueles dados”, afirmou Toffoli.

Depois de Toffoli apresentar seus esclarecimentos, foi a vez de o ministro Alexandre de Moraes pronunciar o seu voto. Ele divergiu do presidente da corte sobre o compartilhamento de dados da Receita, por entender que todas as informações utilizadas pelo Fisco para apurar irregularidades devem ser encaminhadas ao Ministério Público diretamente. A sessão foi encerrada e o Supremo só voltará a discutir o assunto na próxima quarta-feira, 27.

Agência BrasilAgência BrasilO ministro Alexandre de Moraes discordou de Toffoli sobre os dados da Receita
Por trás do pilates jurídico de Toffoli, estão as articulações de um ministro que, desde março, vem extrapolando. O primeiro sinal nesse sentido foi a instauração de um inquérito de ofício para apurar supostos ataques a ministros da corte. Na prática, porém, a investigação tem servido aos mais diversos interesses — da censura a Crusoé até o acesso às mensagens de Telegram de diversas autoridades, apreendidas pela Polícia Federal no âmbito da investigação sobre o ataque hacker à Lava Jato.

Seus gestos sugerem ainda uma tentativa de acordão entre os Poderes que, como mostrou Crusoé em sua edição 68, tem tudo para prejudicar os avanços conquistados pela Lava Jato no combate à corrupção. Se por um lado tenta colocar “balizas” na Receita, por outro Toffoli afaga o Palácio do Planalto à luz do episódio Flávio Bolsonaro, numa decisão que ele mesmo, agora, encontra dificuldades para manter de pé. Os movimentos, neste caso, não passam despercebidos pelos outros ministros do Supremo. Nem pelo país.

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