MarioSabino

O javanês de Toffoli

22.11.19

Uma das experiências mais dolorosas na vida de um jornalista da área política é tentar traduzir em tempo real as sessões do Supremo Tribunal Federal — especialmente as da atual composição da corte. A maioria se expressa numa língua longinquamente aparentada com o português, costume bárbaro que já foi objeto de um artigo meu publicado na Crusoé, no final do ano passado, sob o título de Como Dizer que o STF é uma Vergonha. Comparei:

“Sem abandonar o jargão que lhes é ferramenta, os juízes da Suprema Corte Americana não corrompem a língua com o juridiquês e literatices encobridoras. Obrigam-se a que as suas sentenças sejam cristalinas e, portanto, inteligíveis a qualquer cidadão americano com instrução média. E, em 2014, passaram a exigir que as petições dos advogados também fossem em “plain terms” – objetivas, diretas, sem trololós. Quando é clara, a linguagem traduz posições límpidas. Como forma é conteúdo, eu diria que também produz comportamentos transparentes.”

Na abertura do julgamento sobre como deve se dar o compartilhamento de dados do antigo Coaf e da Receita Federal com o Ministério Público, o presidente do STF, Dias Toffoli, ilustrou à perfeição como a opacidade da linguagem está ligada ao déficit de transparência no conteúdo. O seu voto foi tão confuso, tão contraditório em relação a tudo o que ele vinha dizendo contra o Coaf, Receita Federal e Ministério Público — e também fazendo, como exigir o acesso ilegal a dados financeiros de 600 mil pessoas, entre físicas e jurídicas — que, após o julgamento, a sua assessoria precisou emitir uma nota em letras garrafais para tentar traduzir qual havia sido a conclusão do ministro.

A coisa foi de tal modo curiosa que até parece que entre o início da sessão, pela manhã, e o fim dela, já caída a noite, ocorreram acontecimentos nas coxias do tribunal que fizeram o ministro dar cambalhotas hermenêuticas espantosas até mesmo para os costumeiros espetáculos em Brasília. Não estou insinuando nada, apenas manifestando a minha perplexidade que começou ontem, estendeu-se por hoje e dificilmente se extinguirá, como pude constatar na segunda sessão do julgamento, com Toffoli se embananando outra vez, na base do nem isso nem aquilo, muito pelo contrário. Logo depois do término da primeira sessão, publiquei no Twitter (e peço perdão por mais uma autorreferência):

“Resumo do voto de hoje: Toffoli foi, não foi, mas acabou ‘fondo’, sem ir a lugar nenhum. É o presidente de STF mais constrangedor que jamais existiu.”

À saída do tribunal, perguntado por jornalistas se poderia explicar o voto do presidente do Supremo, o ministro Edson Fachin disse:

 “Tem uma pergunta mais fácil?”

Se eu estivesse presente, pediria a Fachin para discorrer sobre a aplicabilidade da teoria quântica no direito.

Quem melhor resumiu o voto de Toffoli, contudo, foi Luís Roberto Barroso, um dos poucos ministros do tribunal a usar sempre de uma linguagem compreensível nos seus votos, assim como fazem os juízes americanos:

“Tem que chamar um professor de javanês.”

Vou chamar o professor de javanês sugerido pelo ministro Barroso, homem culto de quem gostaria de conhecer a biblioteca. O mestre em questão é personagem do conto O Homem que Sabia Javanês, de Lima Barreto, publicado em 1911. Brasileiro pleonasticamente virador, o sujeito leu no jornal o anúncio de um barão que procurava alguém que lhe ensinasse javanês. E resolveu se apresentar para cumprir a tarefa sem saber uma palavra do “patoá malaio”. Ou melhor, com algumas palavras aprendidas de véspera. O nome do personagem é Castelo. Ele narra a sua aventura exitosa como professor de javanês ao amigo Castro, numa conversa de confeitaria (o bar de antigamente), entre copos de cerveja, na melhor tradição nacional. Eis um pedaço do conto:

– Tens levado uma vida bem engraçada, Castelo!

– Só assim se pode viver… Isto de uma ocupação única: sair de casa a certas horas, voltar a outras, aborrece, não achas? Não sei como me tenho agüentado lá, no consulado !

– Cansa-se; mas não é disso que me admiro. O que me admira é que tenhas corrido tantas aventuras aqui, neste Brasil imbecil e burocrático.

– Qual! Aqui mesmo, meu caro Castro, se podem arranjar belas páginas de vida. Imagina tu que eu já fui professor de javanês!

– Quando? Aqui, depois que voltaste do consulado?

– Não; antes. E, por sinal, fui nomeado cônsul por isso.

– Conta lá como foi. Bebes mais cerveja?

– Bebo.

Mandamos buscar mais outra garrafa, enchemos os copos, e continuei:

– Eu tinha chegado havia pouco ao Rio estava literalmente na miséria. Vivia fugido de casa de pensão em casa de pensão, sem saber onde e como ganhar dinheiro, quando li no Jornal do Comércio o anúncio seguinte:

“Precisa-se de um professor de língua javanesa. Cartas, etc.” Ora, disse cá comigo, está ali uma colocação que não terá muitos concorrentes; se eu capiscasse quatro palavras, ia apresentar-me. Saí do café e andei pelas ruas, sempre a imaginar-me professor de javanês, ganhando dinheiro, andando de bonde e sem encontros desagradáveis com os ‘cadáveres”‘. Insensivelmente dirigi-me à Biblioteca Nacional. Não sabia bem que livro iria pedir; mas entrei, entreguei o chapéu ao porteiro, recebi a senha e subi. Na escada, acudiu-me pedir a Grande Encyclopédie, letra J, a fim de consultar o artigo relativo a Java e a língua javanesa. Dito e feito. Fiquei sabendo, ao fim de alguns minutos, que Java era uma grande ilha do arquipélago de Sonda, colônia holandesa, e o javanês, língua aglutinante do grupo maleopolinésico, possuía uma literatura digna de nota e escrita em caracteres derivados do velho alfabeto hindu. (…)

A Encyclopédie dava-me indicação de trabalhos sobre a tal língua malaia e não tive dúvidas em consultar um deles. (…)

À noite, quando pude entrar em casa sem ser visto, para evitar indiscretas perguntas do encarregado, ainda continuei no quarto a engolir o meu “a-b-c” malaio, e, com tanto afinco levei o propósito que, de manhã, o sabia perfeitamente.

Convenci-me que aquela era a língua mais fácil do mundo e saí; (…) voltei a procurar o anúncio. Lá estava ele. Resolvi animosamente propor-me ao professorado do idioma oceânico. Redigi a resposta, passei pelo Jornal e lá deixei a carta. Em seguida, voltei à biblioteca e continuei os meus estudos de javanês. Não fiz grandes progressos nesse dia, não sei se por julgar o alfabeto javanês o único saber necessário a um professor de língua malaia ou se por ter me empenhado mais na bibliografia e história literária do idioma que ia ensinar.

Ao cabo de dois dias, recebia eu uma carta para ir falar ao doutor Manuel Feliciano Soares Albernaz, Barão de Jacuecanga, à Rua Conde de Bonfim, não me recordo bem que número. É preciso não te esqueceres que entrementes continuei estudando o meu malaio, isto é, o tal javanês. Além do alfabeto, fiquei sabendo o nome de alguns autores, também perguntar e responder “como está o senhor?” – e duas ou três regras de gramática, lastrado todo esse saber com vinte palavras do léxico.

– Não sou, objetei, lá muito diferente de um javanês. Estes meus cabelos corridos, duros e grossos e a minha pele basané podem dar-me muito bem o aspecto de um mestiço de malaio…Tu sabes bem que, entre nós, há de tudo: índios, malaios, taitianos, malgaxes, guanches, até godos. É uma comparsaria de raças e tipos de fazer inveja ao mundo inteiro.

– Bem, fez o meu amigo, continua.

– O velho, emendei eu, ouviu-me atentamente, considerou demoradamente o meu físico, pareceu que me julgava de fato filho de malaio e perguntou-me com doçura:

– Então está disposto a ensinar-me javanês?

– A resposta saiu-me sem querer: Pois não. (…)

– O que eu quero, meu caro Senhor Castelo, é cumprir um juramento de família. Não sei se o senhor sabe que eu sou neto do Conselheiro Albernaz, aquele que acompanhou Pedro I, quando abdicou. Voltando de Londres, trouxe para aqui um livro em língua esquisita, a que tinha grande estimação. Fora um hindu ou siamês que lho dera, em Londres, em agradecimento a não sei que serviço prestado por meu avô. Ao morrer meu avô, chamou meu pai e lhe disse: “Filho, tenho este livro aqui, escrito em javanês. Disse-me quem mo deu que ele evita desgraças e traz felicidades para quem o tem. Eu não sei nada ao certo. Em todo o caso, guarda-o; mas, se queres que o fado que me deitou o sábio oriental se cumpra, faze com que teu filho o entenda, para que sempre a nossa raça seja feliz.” Meu pai, continuou o velho barão, não acreditou muito na história; contudo, guardou o livro. Às portas da morte, ele mo deu e disse-me o que prometera ao pai. (…) Tenho que o ler, que o compreender, se não quero que os meus últimos dias anunciem o desastre da minha posteridade; e, para entendê-lo, é claro que preciso entender o javanês. (…)

Veio o livro. Era um velho calhamaço, um in-quarto antigo, encadernado em couro, impresso em grandes letras, em um papel amarelado e grosso. Faltava a folha do rosto e por isso não se podia ler a data da impressão. Tinha ainda umas páginas de prefácio, escritas em inglês, onde li que se tratava das histórias do príncipe Kulanga, escritor javanês de muito mérito.

Logo informei disso o velho barão que, não percebendo que eu tinha chegado aí pelo inglês, ficou tendo em alta consideração o meu saber malaio.

O personagem Castelo não só se tornou professor de javanês do barão, como a sua fama espalhou-se pelo Rio de Janeiro e até o convidaram a participar de um congresso linguístico em Paris — onde igualmente enrolou a plateia. Na volta, tornou-se glória nacional, foi recebido no porto com uma ovação, viu-se convidado a almoçar com o presidente da República e tornou-se cônsul em Havana, onde permaneceu por seis anos e para onde voltaria, a fim de aperfeiçoar os seus conhecimentos praticamente nulos das línguas da Malásia, Melanésia e Polinésia. Se não estivesse contente com a carreira que lhe rendera tantas honrarias, Castelo teria sido “bacteriologista eminente”, como disse ao amigo Castro, na confeitaria.

Fosse hoje, poderia também ter escolhido ser ministro do Supremo Tribunal Federal. A sua tarefa seria verter a Constituição brasileira do português para o javanês ou um simulacro do “patoá malaio”, não importa. Se uma parte do distinto público sai dos julgamentos convencida de acordo com as suas próprias conveniências, é o que basta para receber uma ovação e virar retrato na parede da galeria de notáveis deste Brasil imbecil, burocrático e incompreensível.

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