O militar participa de cerimônia em Brasília: ele age como se não tivesse passado

A doce vida do general

Crusoé acompanhou a rotina em Brasília do militar venezuelano que, sob Hugo Chávez, foi personagem de um desvio de 20 bilhões de dólares
29.11.19

Com sua farda de gala coberta por condecorações, muitas delas recebidas diretamente das mãos de Hugo Chávez e Nicolás Maduro, o general Manuel Antonio Barroso Alberto desfila pelas festas do universo diplomático em Brasília. Adido militar da Venezuela, ele é figurinha fácil no circuito de embaixadas da capital. Nas festas, a despeito da situação nada confortável de seu país, está sempre animado, empunhando taças de champanhe ou copos de uísque — de preferência Black Label — e exibindo seu vistoso anel dourado e exemplares de sua coleção de relógios de marcas estreladas, como Cartier, Bulova e Hublot. O DNA chavista não atrapalha em nada sua relação com oficiais das mais diversas patentes das Forças Armadas brasileiras, que costumam convidá-lo a ocupar assentos de honra em eventos em quartéis e monumentos na capital brasileira. O general venezuelano circula pelos salões do Palácio do Planalto como se desconhecesse a ojeriza do atual governo ao regime que representa, capitaneado pelo ditador Maduro. Também passa ao largo um dado relevante que muitos — inclusive quem conhece bem a história — procuram ignorar solenemente: ele é pivô do maior escândalo de corrupção da cleptocracia venezuelana e chegou a ser alvo de órgãos de investigação americanos.

Por força do lobby dos colegas de farda brasileiros, que o enxergam como uma ponte relevante com a turma do país vizinho, o general é o único venezuelano nomeado por Caracas a manter a credencial diplomática desde que Jair Bolsonaro reconheceu Juan Guaidó como presidente. O adido militar está longe de ser apenas mais um entre os 2 mil generais venezuelanos (para se ter noção da discrepância, o Brasil tem 270). Ainda no governo de Hugo Chávez, ele foi escolhido a dedo para presidir a Comissão de Administração de Divisas, a Cadivi, responsável por gerir as generosas reservas cambiais venezuelanas. Eram tempos de fartura. Os petrodólares jorravam em Caracas. Na condição de coronel, de 2006 a 2013, período em que as exportações de petróleo atingiram valores recordes, Barroso era o responsável por autorizar empresas venezuelanas a remeter valores ao exterior. O período de vacas gordas que deu sobrevida à ditadura venezuelana e alimentou a corrupção do regime chavista também alçou o militar, agora um feliz morador de Brasília, à condição de personagem central de um esquema que sumiu com 20 bilhões de dólares (algo em torno de 85 bilhões de reais em valores atuais) das reservas cambiais venezuelanas.

O governo dos EUA, por meio do Departamento de Justiça, do Departamento do Tesouro e da DEA, a agência de combate ao narcotráfico, investigou grandes operações de lavagem de dinheiro originárias da Cadivi, envolvendo tráfico de drogas e vínculos com movimentos terroristas como as Farc e o crime organizado internacional. Na mira dos investigadores americanos estiveram ex-funcionários da “revolução bolivariana” de Chávez, incluindo dois tenentes do círculo íntimo do presidente morto em 2013 e um ex-ministro das Finanças e Tesoureiro Nacional da Venezuela, que moram nos Estados Unidos. Após assinarem uma delação premiada, eles conseguiram abrandar as penas e passaram à condição de testemunhas protegidas do governo norte-americano. Os três apontaram o general Barroso como o cabeça do desvio bilionário. Disseram que só ele sabe quem são todos os beneficiários da fraude.

Barroso é presença frequente nos eventos organizados por militares brasileiros
Logo após ser delatado pelos ex-companheiros, Barroso caiu no anonimato, sob a proteção de Maduro. Passou a ter paradeiro incerto. Era março de 2013. Chávez havia morrido três semanas antes. Os dólares do estado venezuelano passaram a ser o esteio de fortunas de vários líderes da “revolução”, que compraram imóveis e aeronaves de luxo nos Estados Unidos, na Europa e na Ásia. Processos abertos pelos investigadores americanos resultaram, além das prisões de militares e empresários venezuelanos residentes no país, no confisco e no congelamento de contas bancárias de diferentes suspeitos. Mesmo assim, não foi possível rastrear o destino de nem um terço dos bilhões desviados.

Os primeiros alertas haviam sido disparados pelo Banco Central venezuelano em 2012, quando auditores apontaram que Barroso concedera um total de 20 bilhões de dólares em licenças cambiais “sem justificativa”. Dois ministros chavistas confirmaram, em depoimento, a existência de “importações fictícias” por meio de empresas-fantasmas. Em decorrência do escândalo, Nicolás Maduro anunciou a abertura de um “rigoroso inquérito” e extinguiu a Cadivi. O então coronel, porém, foi poupado. Maduro alegou que ele precisava descansar porque tinha a saúde debilitada. “Quero enaltecer o coronel que passou sete anos à frente da Cadivi e sai como nela entrou, de forma honesta”, declarou o ditador, em uma cerimônia com os principais generais do regime, transmitida pela TV estatal. Maduro ainda pediu a Barroso para “voltar à luta” logo após se “recuperar”. Em julho de 2013, o militar recebeu a patente de general-brigadeiro. No mês seguinte, o Ministério Público venezuelano abriu uma investigação para apurar o desvio bilionário, mas ela não passou do procedimento formal inicial. Os três militares apontados como os articuladores da fraude nunca foram nem sequer intimados a depor. Barroso, que seria a peça chave para desvendar o esquema, desapareceu da Venezuela. Oficialmente, havia se mudado do país para fazer um tratamento. Dois anos depois, tido como um dos “intocáveis” de Hugo Chávez, ele desembarcou no Brasil na condição de adido militar.

Sem apresentar sinais de problemas de saúde e livre do risco de ser incomodado pelas autoridades judiciais de seu país, o general Barroso leva uma vida discreta na capital brasileira, mas bastante confortável. Desde que chegou, ele já morou em três diferentes hotéis às margens do Lago Paranoá. Atualmente, mora a pouco mais de um quilômetro do Palácio da Alvorada, onde o presidente Jair Bolsonaro vive com a família. As condições de moradia no flat que ele ocupa não chegam a ser comparáveis às de um bilionário, mas estão bem acima da média de seus conterrâneos. O apartamento conta com todas as amenidades típicas de um hotel de luxo. O lazer é garantido. No complexo, há duas imensas piscinas, uma delas climatizada, academia de ginástica, pista para caminhada e um píer para lanchas — o general costuma alugar embarcações para passear com amigos nos fins de semana. A conta do aluguel do flat, de 3.500 reais mensais, é paga pelo cada vez mais empobrecido contribuinte venezuelano.

De agasalho azul e vermelho, à esquerda, o general posa para foto no dia da ocupação da embaixada: entre os aliados, o deputado petista Paulo Pimenta
Barroso costumava caminhar pela manhã ao redor do complexo, antes de seguir para o trabalho, distante poucos quilômetros dali. A rotina se repetia até o último dia 13, quando um grupo de apoiadores de Juan Guaidó entrou na embaixada com a ajuda de funcionários brasileiros e venezuelanos insatisfeitos com Maduro. Temendo nova tentativa de ocupação do prédio, Barroso passou a fazer seus exercícios físicos no imenso jardim ao redor da sede diplomática. Tem chegado por volta das 7 horas. Ironicamente, ele agora conta com um pequeno exército particular para proteger a embaixada: ao menos 40 integrantes do MST que se revezam em grupos de 20 por turno de guarda. Com rádios comunicadores à mão, os sem-terra fazem a vigilância da propriedade cercada por grades. Os “soldados” foram convocados no dia da ocupação, com a preciosa ajuda de parlamentares brasileiros simpáticos ao regime de Maduro — e, desde então, seguem sob a batuta do general chavista.

O militar de 51 anos é tido como o principal representante de Maduro em território brasileiro, apesar de haver diplomatas mais credenciados na embaixada em Brasília. A representação não tem embaixador desde 2016, quando Maduro ordenou a volta de Alberto Castellar em protesto contra o impeachment de Dilma Rousseff. No lugar dele, ficou apenas um encarregado de negócios que não é reconhecido pelo governo de Jair Bolsonaro. Fontes do Itamaraty dizem que o presidente brasileiro já foi informado pelo chanceler Ernesto Araújo e por assessores da área internacional das investigações que envolvem o general. Bolsonaro também foi avisado de que, se quiser, há meios legais para expulsá-lo do Brasil. Mas mesmo assim mantém a acreditação diplomática de Barroso, a pedido de generais brasileiros com os quais o adido tem boa relação. Em 23 de agosto, por exemplo, ele estava no palanque de autoridades na cerimônia do Dia do Soldado. Há um mês, também do palanque de convidados, assistiu à cerimônia de troca da bandeira nacional, realizada mensalmente na Praça dos Três Poderes.

Para convencer Bolsonaro a manter o militar, os generais brasileiros argumentam que uma eventual expulsão pode provocar retaliações ao corpo diplomático brasileiro em Caracas, além de inviabilizar a troca de informações estratégicas com as forças armadas da Venezuela, com as quais o ministro do Gabinete de Segurança Institucional, general Augusto Heleno Ribeiro, já disse ter boa interlocução. Auxiliares de Ernesto Araújo, porém, tentam convencer o presidente a expulsar Barroso e os demais funcionários leais a Maduro. Hoje é o militar quem comanda a embaixada, na prática. María Teresa Belandria, embaixadora indicada por Guaidó e reconhecida por Bolsonaro em junho, despacha de um hotel, de onde pouco sai por medo dos apoiadores da ditadura chavista no Brasil. Barroso cuida até dos pagamentos das contas da embaixada. Os salários dos funcionários, por exemplo, são pagos em dinheiro vivo que ele leva em maletas, segundo relatos de venezuelanos e brasileiros ouvidos por Crusoé. Na última terça-feira, o general almoçou no restaurante do clube dos funcionários do Senado, na companhia de outras duas pessoas. Depois de pagar a conta, que incluiu algumas caipirinhas, ele seguiu para um shopping. Foi comprar um par de tênis. Desconfiado, o militar costuma andar armado com uma pistola automática e sempre acompanhado por uma espécie de guarda-costas. É uma precaução quase desnecessária. Seu visto está válido até julho de 2021. No Brasil, ao menos por ora, ele está seguro — e blindado.

Com reportagem de Igor Gadelha

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