O calcanhar de Witzel
O governador do Rio de Janeiro, Wilson Witzel, atraiu os holofotes nos últimos dias ao protagonizar uma cena grotesca — para dizer o mínimo. Após o triunfo do Flamengo sobre o River Plate, na final da Copa Libertadores, Witzel ajoelhou-se diante do atacante Gabigol no gramado do Estádio Monumental de Lima. O autor dos dois gols da virada rubro-negra até havia cumprimentado o governador, mas quando ele ensaiou lustrar sua chuteira, o craque do Flamengo saiu deixando o governador, como se diz na gíria, no vácuo. O gesto de Witzel soou como o mais puro oportunismo político.
Sonhando com a candidatura à Presidência da República em 2022, Witzel não perde a chance de aparecer. Em agosto, por exemplo, quando a situação exigia compostura, o governador comemorava à la Pelé, com socos no ar e punhos cerrados, a operação policial cujo desfecho terminou com a morte do sequestrador de um ônibus na ponte Rio-Niterói. Witzel quer luzes. Ele imagina que, se conseguir aliar a pauta do fim da criminalidade com a do combate à corrupção, poderá pavimentar seu caminho rumo ao Palácio do Planalto daqui a três anos. O problema é que nem todas as suas ideias correspondem aos fatos.
Documentos obtidos por Crusoé comprometem, por exemplo, uma das linhas mestras da justificativa do governador para a criminalidade no Rio. Segundo ele, a culpa seria de Brasília, que teria sucateado a Polícia Federal e reduzido o número de apreensões de entorpecentes. A explicação não se sustenta. Não faz muito tempo, o estado desprezou ajuda federal em uma importante investigação em curso sobre tráfico internacional de armas e drogas. Pouco antes de o governador tomar posse, em dezembro de 2018, a delegacia responsável pelo caso decidiu enviar o inquérito ao Ministério Público Federal, por não ter estrutura para tocar a apuração com “o número risível” de 18 agentes. Nas primeiras semanas da gestão Witzel, no entanto, a delegacia revogou a decisão, tirando o caso da esfera da Polícia Federal e devolvendo-o ao estado. A quadrilha sob investigação tem uma rede de 10 mil pessoas e empresas para lavar dinheiro, movimenta em média 60 milhões de reais por mês e estabeleceu uma inédita parceria com o PCC, a facção paulista. Sob Witzel, porém, as apurações não puderam seguir na esfera federal.
A segurança foi o pomo de discórdia entre Witzel e o presidente da República. A relação do governador com a família Bolsonaro azedou a partir da investigação do assassinato da vereadora Marielle Franco e do motorista dela, Anderson Gomes. Um dos suspeitos, o sargento PM aposentado Ronnie Lessa, morava no mesmo condomínio do presidente Jair Bolsonaro no Rio de Janeiro. Um porteiro ouvido pela polícia de Witzel afirmou que, na noite do crime, Bolsonaro autorizou a entrada no condomínio do ex-sargento Élcio Queiroz, comparsa de Lessa no assassinato. Bolsonaro na época era deputado e registrara presença no plenário em Brasília naquela noite. Antes mesmo de o Ministério Público descartar a história do porteiro, o presidente acusou Witzel de conduzir o inquérito da Polícia Civil para incriminá-lo por “sede de poder”.
O caso Marielle é um desafio para Witzel. A Polícia Civil ainda não descobriu o mandante e a PM também tem muito a esclarecer. Em julho passado, a Justiça mandou apreender no comando da Polícia Militar — numa operação sigilosa — processos de investigações internas contra os dois ex-policiais acusados de matar Marielle. Oficialmente, eles tinham ficha limpa, sem anotações de crimes e “comportamento bom”. A determinação judicial, porém, fez os comandantes encontrarem ao menos nove homicídios atribuídos ao sargento aposentado Ronnie Lessa, segundo relatório obtido por Crusoé. A PM arquivara os casos sem punição, por considerar que Lessa agiu em legítima defesa, quando fazia operações nos morros nos anos 2000. Agora surgem indícios de que ele é um assassino, envolvido com a milícia pelo menos desde 2009, quando perdeu a perna num atentado a bomba, ao que tudo indica planejado por uma gangue rival.
Crusoé identificou ao menos dois negócios da imobiliária. Em julho, o pastor assinou escritura de promessa de compra da casa de dois andares onde funciona a empresa, no Recreio dos Bandeirantes, na Zona Oeste. Ele se comprometeu a pagar 2 milhões de reais. Desembolsou 50 mil no ato e parcelou o restante em 20 vezes, no valor de 100 mil por mês, em parcelas garantidas por notas promissórias pagas “no endereço ou local” que os vendedores indicarem. Logo depois, a imobiliária assinou outro contrato de compra de um terreno de 49,7 mil metros quadrados em Barra de Guaratiba, também na Zona Oeste, por 850 mil reais, que serão quitados por meio de 20 notas promissórias. Ou seja, os dois negócios do pastor demandam pagamentos mensais de 140 mil reais para que os imóveis sejam quitados — uma quantia nada desprezível. As transações, em si, não significam necessariamente que a dupla de aliados de Witzel esteja envolvida em encrenca. Mas chamam atenção quando os valores envolvidos são comparados ao patrimônio declarado do pastor e de seu filho. Nas eleições passadas, Everaldo declarou bens de 268 mil reais (120 mil em dinheiro vivo) e Filipe Pereira informou patrimônio de 938 mil reais. Procurado, o pastor afirmou que seus negócios e os de sua família são “assunto privado” e “não dizem respeito à atividade do PSC”.
Witzel se filiou ao PSC em março de 2017, quando ainda era juiz, segundo certidão da Justiça Eleitoral. Ao lado de Pastor Everaldo, presidente do PSC, o então juiz fazia palestras sobre ética, regras eleitorais e participava de reuniões com membros da Assembleia de Deus. Ele aparecia sempre como convidado, uma figura não partidária e até evitava bater palmas após discursos de políticos. Também chegou ir a Brasília ao lado do pastor para uma reunião com o então deputado André Moura, do mesmo PSC, líder do governo Michel Temer. Nessa época, um delator da Odebrecht afirmou que Everaldo recebeu 6 milhões de reais de caixa dois na campanha de 2014, quando disputou a Presidência da República. O executivo disse ainda que foi apresentado ao pastor pelo ex-deputado Eduardo Cunha. A denúncia não andou nos tribunais e Pastor Everaldo se lançou candidato a senador na chapa com Witzel.
Pastor Everaldo, o “dono” do PSC e aliado de primeira hora do governador, também é ligado a Eduardo Cunha, que, condenado na Lava Jato, cumpre pena no presídio de Bangu, no Rio. O pastor chegou a ser sócio de Cunha em uma rádio. Não se sabe exatamente por qual razão, mas o governo de Witzel tem se recusado sistematicamente a dar informações sobre como anda a rotina de Cunha no presídio fluminense. Há meses Crusoé tenta obter, pela Lei de Acesso à Informação, a relação de visitas recebidas no cárcere pelo ex-presidente da Câmara. Foram dois pedidos e ambos pararam no gabinete do secretário de Administração Penitenciária, coronel Alexandre Azevedo. Antes de chegar à mesa do secretário, que poderia finalmente liberar as informações, o órgão havia negado os dados. O argumento foi de que a relação de visitas de Cunha é “imprescindível à segurança da sociedade ou do estado” e que sua divulgação “compromete atividades de inteligência”. Em 2017, no governo de Luiz Fernando Pezão, a secretaria liberou a relação de visitas de Sérgio Cabral. A lei do direito à informação continua a mesma, só mudou o governador. Em tempo: Witzel costuma afirmar que “não tem bandido de estimação”.
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