Adriano Machado/Crusoé

O calcanhar de Witzel

O governador do Rio se anuncia como candidato ao Planalto, mas seu discurso esbarra na realidade da velha política
29.11.19

O governador do Rio de Janeiro, Wilson Witzel, atraiu os holofotes nos últimos dias ao protagonizar uma cena grotesca — para dizer o mínimo. Após o triunfo do Flamengo sobre o River Plate, na final da Copa Libertadores, Witzel ajoelhou-se diante do atacante Gabigol no gramado do Estádio Monumental de Lima. O autor dos dois gols da virada rubro-negra até havia cumprimentado o governador, mas quando ele ensaiou lustrar sua chuteira, o craque do Flamengo saiu deixando o governador, como se diz na gíria, no vácuo. O gesto de Witzel soou como o mais puro oportunismo político.

Sonhando com a candidatura à Presidência da República em 2022, Witzel não perde a chance de aparecer. Em agosto, por exemplo, quando a situação exigia compostura, o governador comemorava à la Pelé, com socos no ar e punhos cerrados, a operação policial cujo desfecho terminou com a morte do sequestrador de um ônibus na ponte Rio-Niterói. Witzel quer luzes. Ele imagina que, se conseguir aliar a pauta do fim da criminalidade com a do combate à corrupção, poderá pavimentar seu caminho rumo ao Palácio do Planalto daqui a três anos. O problema é que nem todas as suas ideias correspondem aos fatos.

Documentos obtidos por Crusoé comprometem, por exemplo, uma das linhas mestras da justificativa do governador para a criminalidade no Rio. Segundo ele, a culpa seria de Brasília, que teria sucateado a Polícia Federal e reduzido o número de apreensões de entorpecentes. A explicação não se sustenta. Não faz muito tempo, o estado desprezou ajuda federal em uma importante investigação em curso sobre tráfico internacional de armas e drogas. Pouco antes de o governador tomar posse, em dezembro de 2018, a delegacia responsável pelo caso decidiu enviar o inquérito ao Ministério Público Federal, por não ter estrutura para tocar a apuração com “o número risível” de 18 agentes. Nas primeiras semanas da gestão Witzel, no entanto, a delegacia revogou a decisão, tirando o caso da esfera da Polícia Federal e devolvendo-o ao estado. A quadrilha sob investigação tem uma rede de 10 mil pessoas e empresas para lavar dinheiro, movimenta em média 60 milhões de reais por mês e estabeleceu uma inédita parceria com o PCC, a facção paulista. Sob Witzel, porém, as apurações não puderam seguir na esfera federal.

Reprodução/G1Reprodução/G1A cena com Gabigol em Lima: o jogador deixou Witzel no vácuo
Outro calcanhar de aquiles do governador está na própria condução das operações policiais em áreas dominadas pelo crime. A morte da menina Ágatha por uma “bala perdida” no Complexo do Alemão, Zona Norte do Rio, expõe um fio desencapado que atinge em cheio o comando da PM, subordinado diretamente ao governador.  Os policiais envolvidos na morte de Ágatha, de 8 anos, trabalham na Unidade de Polícia Pacificadora da Fazendinha, uma das áreas mais conflagradas do Alemão, conhecida como a “Zona do Medo”. Crusoé teve acesso a papéis que mostram que o cabo que fez três dos seis disparos de fuzil efetuados na ação queria sair da UPP para o policiamento de rua em Niterói, uma cidade mais tranquila. O Palácio da Guanabara até solicitou a transferência. Dois dias antes da morte de Ágatha, porém, o secretário da PM, coronel Rogério Figuereido, negou o pedido do cabo, alegando falta de efetivo. Na noite em que a menina morreu, a UPP tinha 66 policiais escalados e 40 afastados por férias, licença médica e até devido a prisões por crimes. O grupo estava tenso, ainda abalado por um confronto com bandidos ocorrido alguns dias antes, que deixou um PM morto e outros dois baleados na mesma localidade onde Ágatha morreria. Não se pode desvincular o governador da decisão do secretário da PM de impedir a transferência de um dos cabos que, às vésperas da tragédia, pode ter sido o responsável pela morte de Ágatha. É importante lembrar que uma das primeiras medidas de Witzel, tão logo empossado, foi extinguir a Secretaria de Segurança Pública, criando no lugar as pastas da Polícia Civil e a da PM, o que na prática o colocou no comando direto das polícias.

A segurança foi o pomo de discórdia entre Witzel e o presidente da República. A relação do governador com a família Bolsonaro azedou a partir da investigação do assassinato da vereadora Marielle Franco e do motorista dela, Anderson Gomes. Um dos suspeitos, o sargento PM aposentado Ronnie Lessa, morava no mesmo condomínio do presidente Jair Bolsonaro no Rio de Janeiro. Um porteiro ouvido pela polícia de Witzel afirmou que, na noite do crime, Bolsonaro autorizou a entrada no condomínio do ex-sargento Élcio Queiroz, comparsa de Lessa no assassinato. Bolsonaro na época era deputado e registrara presença no plenário em Brasília naquela noite. Antes mesmo de o Ministério Público descartar a história do porteiro, o presidente acusou Witzel de conduzir o inquérito da Polícia Civil para incriminá-lo por “sede de poder”.

O caso Marielle é um desafio para Witzel. A Polícia Civil ainda não descobriu o mandante e a PM também tem muito a esclarecer. Em julho passado, a Justiça mandou apreender no comando da Polícia Militar — numa operação sigilosa — processos de investigações internas contra os dois ex-policiais acusados de matar Marielle. Oficialmente, eles tinham ficha limpa, sem anotações de crimes e “comportamento bom”. A determinação judicial, porém, fez os comandantes encontrarem ao menos nove homicídios atribuídos ao sargento aposentado Ronnie Lessa, segundo relatório obtido por Crusoé. A PM arquivara os casos sem punição, por considerar que Lessa agiu em legítima defesa, quando fazia operações nos morros nos anos 2000. Agora surgem indícios de que ele é um assassino, envolvido com a milícia pelo menos desde 2009, quando perdeu a perna num atentado a bomba, ao que tudo indica planejado por uma gangue rival.

Danilo Verpa/FolhapressDanilo Verpa/FolhapressPastor Everaldo, o “dono” do PSC, exerce forte influência sobre o governo do Rio
Na seara política, Witzel, que pretende vestir o figurino de representante da nova política, também patina. Ele deveria ser no mínimo mais cuidadoso ao escolher aliados. Entre os homens fortes com influência no governo, está o pastor Everaldo Pereira, ex-candidato à Presidência da República e uma espécie de “dono” do PSC, o partido pelo qual o governador se elegeu. Quatro meses depois da posse de Witzel, em abril passado, Everaldo abriu com o filho, Filipe Pereira, ex-candidato a deputado federal, uma imobiliária que já comprou imóveis no valor de 2,9 milhões de reais. O contador da empresa é o mesmo que presta serviço ao PSC. O negócio da família virou assunto nos corredores da sede do governo por gente que teme alguma repetição dos malfeitos do passado que alçaram a política fluminense ao centro do noticiário policial.

Crusoé identificou ao menos dois negócios da imobiliária. Em julho, o pastor assinou escritura de promessa de compra da casa de dois andares onde funciona a empresa, no Recreio dos Bandeirantes, na Zona Oeste. Ele se comprometeu a pagar 2 milhões de reais. Desembolsou 50 mil no ato e parcelou o restante em 20 vezes, no valor de 100 mil por mês, em parcelas garantidas por notas promissórias pagas “no endereço ou local” que os vendedores indicarem. Logo depois, a imobiliária assinou outro contrato de compra de um terreno de 49,7 mil metros quadrados em Barra de Guaratiba, também na Zona Oeste, por 850 mil reais, que serão quitados por meio de 20 notas promissórias. Ou seja, os dois negócios do pastor demandam pagamentos mensais de 140 mil reais para que os imóveis sejam quitados — uma quantia nada desprezível. As transações, em si, não significam necessariamente que a dupla de aliados de Witzel esteja envolvida em encrenca. Mas chamam atenção quando os valores envolvidos são comparados ao patrimônio declarado do pastor e de seu filho. Nas eleições passadas, Everaldo declarou bens de 268 mil reais (120 mil em dinheiro vivo) e Filipe Pereira informou patrimônio de 938 mil reais. Procurado, o pastor afirmou que seus negócios e os de sua família são “assunto privado” e “não dizem respeito à atividade do PSC”.

Witzel se filiou ao PSC em março de 2017, quando ainda era juiz, segundo certidão da Justiça Eleitoral. Ao lado de Pastor Everaldo, presidente do PSC, o então juiz fazia palestras sobre ética, regras eleitorais e participava de reuniões com membros da Assembleia de Deus. Ele aparecia sempre como convidado, uma figura não partidária e até evitava bater palmas após discursos de políticos. Também chegou ir a Brasília ao lado do pastor para uma reunião com o então deputado André Moura, do mesmo PSC, líder do governo Michel Temer. Nessa época, um delator da Odebrecht afirmou que Everaldo recebeu 6 milhões de reais de caixa dois na campanha de 2014, quando disputou a Presidência da República. O executivo disse ainda que foi apresentado ao pastor pelo ex-deputado Eduardo Cunha. A denúncia não andou nos tribunais e Pastor Everaldo se lançou candidato a senador na chapa com Witzel.

Câmara dos DeputadosCâmara dos DeputadosAndré Moura, da tropa de choque de Eduardo Cunha, virou chefe da Casa Civil
Derrotado nas urnas, Everaldo tornou-se um homem forte mesmo fora do governo. Avalizou indicações para postos em órgãos importantes do estado do Rio, como a Cedae, a companhia de saneamento do estado, e passou a ser muito requisitado por deputados estaduais interessados em cargos na máquina administrativa estadual. Seu filho e sócio Filipe Pereira, depois de perder a reeleição para deputado federal, passou a ser assessor especial de Witzel. Em setembro, o pastor emplacou André Moura, o ex-integrante da tropa de Eduardo Cunha com quem tinha se reunido em Brasília, no comando da Casa Civil do governo fluminense. Para além de suas conhecidas ligações com Cunha, Moura não é propriamente um exemplo de político. Bem antes de chegar a Brasília, quando dominava a política no município sergipano de Pirambu, ele já era metido em suspeitas. A certa altura, após deixar o cargo de prefeito da cidade, escolheu um aliado semianalfabeto para sucedê-lo. Pilhado desviando dinheiro, inclusive de merenda escolar, o aliado não só confessou a roubalheira como se disse um “laranja” de Moura, a quem era obrigado a repassar parte do dinheiro. Hoje secretário poderoso de Witzel no Rio, André Moura responde a três ações penais, acusado de formação de quadrilha e peculato.

Pastor Everaldo, o “dono” do PSC e aliado de primeira hora do governador, também é ligado a Eduardo Cunha, que, condenado na Lava Jato, cumpre pena no presídio de Bangu, no Rio. O pastor chegou a ser sócio de Cunha em uma rádio. Não se sabe exatamente por qual razão, mas o governo de Witzel tem se recusado sistematicamente a dar informações sobre como anda a rotina de Cunha no presídio fluminense. Há meses Crusoé tenta obter, pela Lei de Acesso à Informação, a relação de visitas recebidas no cárcere pelo ex-presidente da Câmara. Foram dois pedidos e ambos pararam no gabinete do secretário de Administração Penitenciária, coronel Alexandre Azevedo. Antes de chegar à mesa do secretário, que poderia finalmente liberar as informações, o órgão havia negado os dados. O argumento foi de que a relação de visitas de Cunha é “imprescindível à segurança da sociedade ou do estado” e que sua divulgação “compromete atividades de inteligência”. Em 2017, no governo de Luiz Fernando Pezão, a secretaria liberou a relação de visitas de Sérgio Cabral. A lei do direito à informação continua a mesma, só mudou o governador. Em tempo: Witzel costuma afirmar que “não tem bandido de estimação”.

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