Alan Santos/PR

O estado de bem-estar liberal

Em busca de uma marca social, o governo prepara pacote de medidas que aprimora o Bolsa Família, tentando adaptar o programa às bases econômicas liberais do ministro da Economia, Paulo Guedes
06.12.19

Ao contrário do que povoa o imaginário popular, há inspiração liberal nos programas sociais e de transferência de renda adotados no Brasil e no mundo. Friedrich Hayek, defensor do liberalismo clássico e um dos expoentes da Escola Austríaca, apoiava – antes mesmo de a esquerda se apropriar da bandeira – a adoção de meios financeiros para proteger socialmente os cidadãos de privações severas. Liberal de quatro costados, Milton Friedman, por sua vez, foi o idealizador do imposto de renda negativo como instrumento de combate à pobreza, pelo qual pessoas com renda inferior receberiam uma quantia do governo em vez de serem taxadas por ele. O ministro da Economia, Paulo Guedes, portanto, não inventa a roda, nem Bolsonaro trai os princípios econômicos que prometeu perseguir ainda na posse quando embalam a nova intenção do governo: carimbar uma marca social a partir de medidas destinadas às camadas mais carentes da população.

O cardápio social do governo será apresentado nos próximos dias em cerimônia no Palácio do Planalto. A ideia é aproveitar os bons auspícios na economia, como o aumento de 0,6% do PIB, para anunciar o pacote e reforçar a sensação de que, apesar das polêmicas na seara política ao longo do ano, o horizonte para 2020 descortina um céu desanuviado. O martelo foi batido em reunião na noite da quarta-feira, 4, com a presença do ministro da Cidadania, Osmar Terra. O carro-chefe será o Bolsa Família, com impacto direto na renda de cerca de 43 milhões de pessoas. Para incrementar o programa, está previsto um adicional entre 6,81 e 7 reais por mês para as 13,8 milhões de famílias beneficiadas. Atualmente, o valor transferido é de 89 reais mensais.

O reajuste será possível graças a um respiro no orçamento: produtos enquadrados durante os governos Lula e Dilma como itens da cesta básica desonerada, mas que não costumavam estar presentes na mesa da população de baixa renda, serão tributados novamente, como queijo brie, Polenguinho, Yakult, ovo de jacaré e até caviar. Parece brincadeira, mas não é. “A desoneração do caviar e de produtos como queijo brie serve a outros interesses. O dinheiro a mais na conta atende diretamente aos mais pobres, que vão poder direcionar o seu gasto para onde quiserem. É só perguntar o que eles preferem”, diz um técnico do governo. Segundo cálculos do Ministério da Economia, é possível até aumentar em 24,10 reais o valor do Bolsa Família se 4 bilhões obtidos com a reoneração de produtos da cesta básica forem direcionados ao programa.

Wilson Dias/Agência BrasilWilson Dias/Agência BrasilOsmar Terra: encontro em novembro para alinhavar plano
O direito à preferência será também um dos pilares da reformulação do programa Minha Casa, Minha Vida, inserido no contexto do pacote social de Bolsonaro. Os beneficiários terão liberdade, por exemplo, para definir se vão querer comprar, construir ou reformar o imóvel. Poderão escolher ainda o engenheiro responsável pela obra e até o projeto da residência. O modelo funcionará por meio de um sistema de voucher, uma espécie de vale-crédito. Até então, os inscritos no programa recebiam a casa pronta da construtora. “Às vezes a família quer uma casa mais simples e maior. Há quem prefira cômodos menores e acabamento com mais qualidade. A ideia é deixar isso a critério de quem for receber o benefício”, diz o ministro do Desenvolvimento Regional, Gustavo Canuto. Terão prioridade moradores de municípios com até 50 mil habitantes, onde o governo pretende oferecer os vouchers a famílias com renda mensal de até 1,2 mil reais a um valor médio de 60 mil reais por beneficiário. Quem recebe entre 1.200 e 5 mil reais por mês poderá ingressar na modalidade de financiamento do Minha Casa, Minha Vida com juros bem mais modestos do que os praticados pelo mercado atualmente – entre 4,5% e 4% ao ano. Com a reformulação do programa, a expectativa da equipe econômica é a construção de 400 mil novas casas só em 2020.

O processo de embalagem das ações sociais do governo consumiu parte relevante da agenda do primeiro escalão desde o início de novembro. O encontro inaugural ocorreu em pleno feriado da Proclamação da República no gabinete do ministro da Casa Civil, Onyx Lorenzoni. Participaram da reunião os ministros da Cidadania, Osmar Terra, da Educação, Abraham Weintraub, e da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, Damares Alves. Ali, os ministros fizeram um raio-x dos programas já existentes. Três horas depois, deixaram a Casa Civil sob o compromisso de entabular medidas capazes de reforçá-los. Mais adiante, integrou-se à equipe a primeira-dama, Michelle Bolsonaro, madrinha do Programa Criança Feliz, cuja meta é ampliar de 820 mil para 1 milhão o número de crianças de até três anos e gestantes atendidas no próximo ano. Por último, o grupo incorporou o ministro da Economia, Paulo Guedes, e o secretário de Política Econômica, Adolfo Sachsida, a quem coube encontrar brechas no Orçamento para colocar as propostas em marcha. “O que nós estamos construindo, na verdade, é um conjunto de ações. Será um plano para o avanço social no Brasil”, propagandeia Lorenzoni.

Agência BrasilAgência BrasilO Bolsa Família será mantido como carro-chefe dos programas sociais oficiais
Foi durante essas reuniões que surgiram ideias como o lançamento de mais um incentivo de 300 reais por mês, bancado inteiramente pelo BNDES, para atletas de alto rendimento, o Bolsa Atleta Escolar, uma complementação ao já existente Bolsa Atleta em favor de cinco mil estudantes com dedicação à atividade desportiva. Nos últimos dias, tanto o Ministério da Cidadania como o da Educação correram contra o relógio para associar o programa ao pacote social prestes a ser anunciado pelo governo — política, afinal, também é a arte de não deixar o cavalo encilhado passar. Já uma das meninas dos olhos do ministro Paulo Guedes, o Imposto de Renda negativo, vislumbrado por Milton Friedman no início da década de 60, permanece em análise, mas pode não ser implementado neste momento. Na prática, trata-se de uma forma de complementar a renda de quem não atingir o salário mínimo. Durante a discussão da reforma da Previdência, o ministro chegou a sugerir a inclusão do imposto negativo no sistema de capitalização. Se não vingar agora, a proposta permanecerá em banho-maria para, quem sabe, ser adotada mais adiante.

Se tudo der certo, o esforço do governo ajudará a esvaziar o discurso do PT de que, com o partido fora do poder, haveria um desmonte dos programas sociais. Será preciso, porém, evitar a tentação eleitoreira. No início da década de 1980, quando o Banco Mundial passou a recomendar programas de transferência de renda aos países pobres e em desenvolvimento, Lula e o PT trataram o benefício como “bolsa esmola”. Até descobrirem que o assistencialismo rendia caminhões de votos. José Dirceu foi quem arquitetou o plano. Com isso, o Fome Zero, tocado por Frei Betto no início do primeiro mandato de Lula, foi substituído pelo Bolsa Família. Coube a um dos fundadores do partido, o advogado Hélio Bicudo, morto no ano passado, revelar os propósitos. “Serão 12 milhões de bolsas que poderão se converter em votos em quantidade três ou quatro vezes maior. Isso nos garantirá a reeleição de Lula”, teria dito Dirceu a Bicudo nos idos de 2004. Objetivo cumprido, o petismo passou a fazer o diabo – leia-se terrorismo eleitoral – para apropriar-se da paternidade do programa, de DNA liberal. Disseminou nas regiões menos favorecidas do país que adversários malvados chegariam numa espécie de cavalo alado para dinamitar o Bolsa Família. Uma falácia, por óbvio, que o tempo fez questão de expor.

A pobreza, na verdade, deveria ser uma chaga imune a proselitismos. O governo Bolsonaro não pode cair na esparrela petista. Não se deve também perder de vista que doses cavalares, e portanto desmedidas, de estado de bem-estar social contribuíram para levar países mundo afora à derrocada. A Grécia está aí para não deixar mentir. A história se repete, em geral, como tragédia. No início é tudo uma maravilha, mas uma hora a conta chega. Os modelos de “welfare state” foram gestados na década de 1960, época em que se imaginava que a pirâmide etária seria eternamente robusta na base (muitas crianças e jovens) e estreita no topo (poucos idosos). Assim, foi criada a ilusão de que haveria sempre relativamente poucas pessoas recebendo dinheiro da Previdência, muitos trabalhadores pagadores de impostos e crianças a perder de vista, o que garantiria futuros e bons contribuintes. Naquela circunstância, um estado de bem-estar era matematicamente sustentável. Hoje, como as pessoas vivem mais e procriam menos, o modelo – se implementado sem travas capazes de segurar o oportunismo político – pode levar ao colapso. A sensibilidade social é, sim, importante. Mas o alerta deve estar sempre ligado.

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