Os 40% do líder
Em março de 2014, seis dias após a prisão de um ex-diretor da Petrobras dar início à operação que expôs o maior escândalo de corrupção da história do país, um jantar reuniu representantes da sociedade pernambucana em um restaurante de Recife. Um blog da cidade noticiou o convescote “regado a champã francês e vinho francês” cujo cardápio incluía “salada com carne de sol, bacalhau e seleção de doces de coco”. Organizado pelo “casal encantador” Aldo e Patrícia Guedes, como registrou o colunista social, o evento contou com a presença do atual líder do governo no Senado, Fernando Bezerra Coelho. Aldo Guedes e Bezerra Coelho posaram sorridentes para fotos. Tempos depois, ambos seriam colhidos pela operação que àquela altura já assustava a elite política do eixo Rio-São Paulo.
Guedes foi, por muitos anos, braço direito do ex-governador Eduardo Campos, morto em um acidente aéreo em 2014. Bezerra era um dos aliados mais proeminentes do grupo na política. A Lava Jato acabaria por identificá-los como peças importantes de uma engrenagem de corrupção montada sob os auspícios de Campos – os dois foram alvos de denúncias de corrupção e respondem a processos relacionados a pagamentos de propina. Se no jantar a dupla se abraçava e brindava animadamente, três anos depois o clima já era outro. Aldo Guedes tentou fazer um acordo de delação premiada no qual se dispôs a entregar segredos do esquema. E um dos personagens de seus relatos era justamente o velho aliado e amigo Fernando Bezerra.
Em dez páginas, Guedes, que foi assessor de Campos e presidente da companhia estadual de gás de Pernambuco, resumiu como foi montado um azeitado propinoduto com as maiores empreiteiras do país, a fim de bancar as campanhas do ex-governador e presidenciável em 2006 e 2010. Logo no primeiro capítulo, diz que Fernando Bezerra, representante de uma das mais influentes oligarquias pernambucanas, era uma espécie de arquiteto do esquema e, ao mesmo tempo, beneficiário direto de parte dos dividendos: ele afirma que, do total arrecadado, 60% iam para Eduardo Campos e 40% ficavam com Bezerra.
O acordo da dupla Lyra-Leite deu origem à Operação Desintegração, que em setembro fez buscas no gabinete de Bezerra no Senado para amealhar mais provas do pagamento de propina por parte de empreiteiras. Desta vez, não apenas nos já conhecidos esquemas da Petrobras como também em contratos do Ministério da Integração Nacional. Por indicação de Eduardo Campos, o atual líder de Bolsonaro no Senado comandou a pasta quando a presidente era a petista Dilma Rousseff.
Os dois operadores revelaram os meandros das operações financeiras para viabilizar os repasses das empreiteiras, ao passo que Aldo Guedes ofereceu informações preciosas sobre as maquinações políticas que levaram à montagem do esquema. Nos anexos de sua proposta de delação, ele diz que mantinha uma relação de extrema confiança com Eduardo Campos, de quem chegou a ser sócio em uma fazenda de café. O candidato a delator costumava acompanhar o ex-governador em suas andanças pelo mundo do poder. Foi seu assessor, por exemplo, no Ministério de Ciência e Tecnologia – Campos chefiou a pasta no governo Lula. Ele lembra que foi justamente após a saída do ex-chefe do ministério, para disputar a eleição ao governo de Pernambuco em 2006, que os caminhos de Guedes e Bezerra se cruzaram. Guedes relata que, antes da disputa, Eduardo Campos o procurou para falar que o atual líder do governo de Jair Bolsonaro tinha dado a ideia de reunir algumas empreiteiras para arrecadar valores para a campanha. Bezerra, àquela altura, era prefeito de Petrolina, uma das maiores cidades pernambucanas.
O candidato a delator afirma que, para colocar em prática o plano traçado por Bezerra, foi realizada uma reunião em um hotel de São Paulo com representantes de diversas empreiteiras. Estavam na lista Odebrecht, OAS, Camargo Corrêa e Galvão Engenharia. No encontro, segundo ele, ficou acertado um repasse entre 4 e 5 milhões de reais para a campanha do próprio Eduardo Campos. A contrapartida, explica ele no anexo, seria o compromisso de que aquelas companhias conquistariam contratos na Secretaria de Desenvolvimento Econômico de Pernambuco e no Complexo Industrial Portuário de Suape. As duas estruturas estaduais ficaram sob a gestão de Bezerra, entre 2007 e 2010, no governo de Campos. Nesse período, a regra dos 60% para Campos e 40% para Bezerra também valeu, afirma Guedes.
Aldo Guedes diz que João Lyra era o responsável por operacionalizar algumas das transações. Ele próprio chegou a receber entregas de dinheiro ordenadas pela OAS e pela Andrade Gutierrez. O ex-braço direito de Eduardo Campos narra que, a certa altura, a OAS pediu para efetuar os pagamentos por meio de uma conta em Hong Kong. Como parte do acerto com as construtoras, diz Guedes, foram entregues a elas contratos estaduais relacionados à construção de rodovias e de hospitais, por exemplo, entre outras obras do governo.
O combinado na reunião com as empreiteiras seguiria valendo nos anos seguintes, em outras frentes de poder ocupadas pela dupla Eduardo Campos-Fernando Bezerra. Aldo Guedes afirma que, após se tornar ministro da Integração Nacional de Dilma Rousseff pelas mãos de Campos, Bezerra seguiu honrando o acordo de entregar obras às empreiteiras com as quais o grupo havia se acertado para repartir os dividendos. Na pasta, havia contratos polpudos, como o da Transposição do Rio São Francisco e o do Canal do Sertão, que mais tarde passariam a entrar na mira da Lava Jato.
Também havia no pacote contratos da Petrobras – onde, graças à proximidade com o governo do PT, Eduardo Campos exercia influência. Um dos trechos da proposta de delação de Aldo Guedes diz que coube ao ex-amigo Fernando Bezerra negociar repasses relacionados à terraplanagem da área onde seria erguida a Refinaria de Abreu e Lima, uma das mais vistosas obras da estatal em terras pernambucanas. Por causa desse caso específico, aliás, o senador e Guedes chegaram a ser formalmente acusados perante o Supremo Tribunal Federal — a Segunda Turma, aquela onde a Lava Jato tem sofrido sucessivas derrotas, acabou arquivando a denúncia. O procurador-geral da República em exercício na ocasião, José Bonifácio de Andrada, resumiu assim a atuação da dupla: “Diversamente do que afirmam os acusados Fernando Bezerra Coelho e Aldo Guedes, os crimes de corrupção passiva a eles atribuídos foram suficientemente descritos e caracterizados, assim como devidamente comprovados. Está-se diante de corrupção sistêmica, de caráter marcadamente político, praticada na linha de intersecção das esferas de atuação de duas organizações criminosas, uma implantada na Petrobras e outra em funcionamento no Estado de Pernambuco”. Procurado por Crusoé, Fernando Bezerra não se manifestou pessoalmente. Em resposta por escrito, a assessoria do senador afirmou que são falsas as acusações que lhe foram imputadas por Aldo Guedes e que prova disso é o arquivamento da proposta de delação.
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