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Jornalismo em tempos disruptivos

26.12.19
Carlos Alberto Di Franco

Não há sociedade democrática sem informação. Informação ampla, transparente, completa. O direito à privacidade não pode ser um escudo protetor, sobretudo no caso de figuras públicas.

A informação não é um enfeite. É o núcleo da missão da imprensa e a base da democracia. Homens públicos invocam o direito à privacidade como forma de fugir da investigação da mídia.

Entendo que o direito à privacidade não é intocável. Pode cessar quando a ação praticada tem transcendência pública. É o caso dos governantes ou candidatos a cargos públicos. Os aspectos da vida privada que possam afetar o interesse público não devem ser omitidos em nome do direito à privacidade.

A famosa conferência de Rui Barbosa A Imprensa e o Dever da Verdade reforça o que estou dizendo. A imprensa, dizia Rui Barbosa, é a vista da Nação. “Por ela é que a Nação acompanha o que lhe passa ao perto e ao longe, enxerga o que lhe malfazem, devassa o que lhe ocultam e tramam, colhe o que lhe sonegam, ou roubam. (…) O poder não é um antro: é um tablado. A autoridade não é uma capa, mas um farol. A política não é uma maçonaria, e sim uma liça. Queiram, ou não queiram, os que se consagraram à vida pública, até à sua vida particular deram paredes de vidro. Agrade, ou não agrade, as constituições que abraçaram o governo da Nação pela Nação têm por suprema esta norma: para a Nação não há segredos; na sua administração não se toleram escaninhos; no procedimento dos seus servidores não cabe mistério; e toda encoberta, sonegação ou reserva, em matéria de seus interesses, importa, nos homens públicos, traição ou deslealdade aos mais altos deveres do funcionário para com o cargo, do cidadão para com o país.”

O texto, brilhante, de Rui Barbosa põe o dedo nas chagas de ontem e de hoje. Não pode existir uma separação esquizofrênica entre vida privada e vida pública. Há atitudes na vida privada que prenunciam comportamentos na vida pública. E o leitor tem o direito de conhecê-las. Se assim não fosse, tudo o que teríamos para ler na imprensa seriam amontoados de declarações emitidas pelas fontes interessadas. O direito à informação pode supor, portanto, a legítima invasão da privacidade.

Gostaria, amigo leitor, de apontar as principais armadilhas no caminho da qualidade informativa.

O protagonismo equivocado dos profissionais. O bom repórter ilumina a cena, o jornalista engajado constrói a história. O importante é saber escutar. As respostas são sempre mais importantes que as perguntas que fazemos. A grande surpresa no jornalismo é descobrir que quase nunca uma história corresponde àquilo que imaginávamos. A reportagem de qualidade não é o empenho de confirmação de uma hipótese. É a tentativa de descobrir a verdade dos fatos.

A passividade dos repórteres. A overdose de pautas a cumprir, a falta de especialização e a escassa e má utilização dos bancos de dados transformam repórteres em coadjuvantes de um espetáculo conduzido pelos entrevistados. Nasce o jornalismo de registro, a matéria carregada de aspas. Não há investigação. A fonte deita e rola. O repórter é mero coadjuvante. A cobertura política está dominada pela síndrome declaratória. Sobra Brasília e falta o país real. Sobram declarações e falta apuração. A agenda não pode ser determinada pelo poder, mas pela cidadania.

Jornalismo de dossiê. Dossiê não é matéria para publicação. É matéria para apuração. É pauta. Não é ponto de chegada. É ponto de partida. A precipitação pode ser, a médio prazo, um tiro de morte na credibilidade. O jornalismo investigativo tem cedido espaço a uma compulsiva e acrítica transcrição de fitas. A opinião pública começa a ficar cansada com o clima de espetáculo que tomou conta de certas coberturas. Quer menos estardalhaço e mais criminoso na cadeia. É preciso revalorizar as clássicas perguntas que devem ser feitas a qualquer repórter que cumpre pauta investigativa: checou? Tem provas? A quem interessa essa informação?

Uma imprensa investigativa, não partidária, independente e fiel à verdade dos fatos: esses são os desafios fascinantes do jornalismo moderno.

As rápidas e crescentes mudanças no setor da comunicação colocaram os antigos modelos de negócios em xeque. A dificuldade em encontrar um caminho seguro para a monetização dos conteúdos multimídia e as novas rotinas criadas a partir das plataformas digitais produzem um complexo cenário de incertezas.

É preciso pensar, refletir duramente sobre a mudança de paradigmas, uma vez que a criatividade e a capacidade de inovação – rápida e de baixo custo – serão fundamentais para a sobrevivência das organizações tradicionais e para o sucesso financeiro das nativas digitais.

Mas é preciso, previamente, fazer uma autocrítica corajosa a respeito do modo como vemos o mundo e da maneira como dialogamos com ele.

Qual é o nosso mundo?

Antes da era digital, em quase todas as famílias existia um álbum de fotos. Lembram disso? Lá estavam as nossas lembranças, os nossos registros afetivos, a nossa saudade. Muitas vezes abríamos o álbum e a imaginação voava. Era bem legal.

Agora, fotografamos tudo e arquivamos compulsivamente. Nosso antigo álbum foi substituído pelas galerias de fotos de nossos dispositivos móveis. Temos overdose de fotos, mas falta o mais importante: a memória afetiva, a curtição daqueles momentos. Milhares de fotos são incapazes de superar a vivência de um instante. É importante guardar imagens. Mas é muito mais importante viver cada momento com intensidade. As relações afetivas estão sucumbindo à coletiva solidão digital.

Algo análogo, muito parecido mesmo, ocorre com o consumo da informação. Navegamos freneticamente no espaço virtual. Uma enxurrada de estímulos dispersa a inteligência. Ficamos reféns da superficialidade. Perdemos contexto e sensibilidade crítica. A fragmentação dos conteúdos pode transmitir certa sensação de liberdade. Não dependemos, aparentemente, de ninguém. Somos os editores do nosso diário personalizado. Será? Não creio, sinceramente. Penso que há uma crescente nostalgia de conteúdos editados com rigor, critério e qualidade técnica e ética. É preciso reinventar o jornalismo e recuperar, num contexto muito mais transparente e interativo, as competências e a magia do jornalismo de sempre.

Jornalismo sem alma e sem rigor. É o diagnóstico de uma perigosa doença que contamina redações. O leitor não sente o pulsar da vida. As reportagens não têm cheiro do asfalto. As empresas precisam repensar os seus modelos e investir poderosamente no coração. É preciso dar novo brilho à reportagem e ao conteúdo bem editado, sério, preciso, isento.

É preciso contar boas histórias. Com transparência e sem filtros ideológicos. O bom jornalista ilumina a cena, o repórter manipulador constrói a história. Na verdade, a batalha da isenção enfrenta a sabotagem da manipulação deliberada, da preguiça profissional e da incompetência arrogante. Todos os manuais de redação consagram a necessidade de ouvir os dois lados de um mesmo assunto. Mas alguns procedimentos, próprios de opções ideológicas invencíveis, transformam um princípio irretocável num jogo de aparência.

A apuração de mentira representa uma das mais graves agressões à ética e à qualidade informativa. Matérias previamente decididas em guetos sectários buscam a cumplicidade da imparcialidade aparente. A decisão de ouvir o outro lado não é honesta, não se apoia na busca da verdade, mas num artifício que transmite um simulacro de isenção, uma ficção de imparcialidade. O assalto à verdade culmina com uma estratégia exemplar: repercussão seletiva. O pluralismo de fachada, hermético e dogmático, convoca pretensos especialistas para declarar o que o repórter quer ouvir. Mata-se a notícia. Cria-se a versão.

A crise do jornalismo está intimamente relacionada com a perda de qualidade do conteúdo, com o perigoso abandono de sua vocação pública e com sua equivocada transformação em produto mais próprio para consumo privado. É preciso recuperar o entusiasmo do “velho ofício”. É urgente investir fortemente na formação e qualificação dos profissionais. O jornalismo não é máquina, tecnologia, embora se trate de suporte importantíssimo. O valor dele se chama informação de alta qualidade, talento, critério, ética, inovação.

A internet é um fenômeno de desintermediação, uma realidade disruptiva. E que futuro aguarda os meios de comunicação, assim como os partidos políticos e os sindicatos, num mundo desintermediado? Só nos resta uma saída: produzir informação de alta qualidade técnica e ética. Ou fazemos jornalismo para valer, fiel à verdade dos fatos, sem engajamentos ideológicos, apoiado na força de uma opinião equilibrada e qualificada, verdadeiramente fiscalizador dos poderes públicos e com excelência na prestação de serviço, ou seremos descartados por um consumidor cada vez mais fascinado pelo aparente autocontrole da informação na plataforma digital.

Sem jornalismo público, independente e qualificado, o futuro da democracia é incerto e preocupante. O jornalismo precisa recuperar a vibração da vida, a cara, o coração e a alma.

Próxima: A hora dos Estados

Carlos Alberto Di Franco é jornalista, doutor em comunicação pela Universidade de Navarra e diretor do programa Estratégias Digitais para Empresas de Mídia do ISE Business School.

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