Adriano Machado/Crusoé

O sequestro da narrativa

26.12.19
Luís Roberto Barroso

O Brasil vive a necessidade de enfrentar três tipos distintos de criminalidade, cada qual com o seu cortejo de malefícios e atrasos civilizatórios: (i) a criminalidade violenta, que inclui homicídios, latrocínios, roubos e estupros; (ii) a criminalidade organizada, que inclui as facções criminosas e sua atuação no tráfico de drogas, de armas e toda a delinquência associada a esses crimes; e (iii) a criminalidade institucionalizada, que é a praticada de dentro das instituições, por agentes públicos desonestos. A detecção da lavagem de dinheiro é decisiva para o enfrentamento tanto do crime organizado quanto da corrupção entranhada no estado.

Nesse sentido, foi um alívio a decisão do Supremo Tribunal Federal, relativamente ao compartilhamento de dados pela Receita Federal e pelo Coaf (rebatizado de UIF). Como disse em meu voto pela revogação da medida cautelar que havia sido concedida, não era bom para o Brasil, para a Justiça nem para o Supremo, nesse quadro e nessa quadra em que o país vive, criar mais dificuldades e entraves burocráticos para o combate à alta criminalidade. Sem mencionar o descrédito que nos traria a percepção internacional de que aqui se lava dinheiro com facilidade.

Tenho dito e repetido da bancada do Supremo Tribunal Federal que o Brasil foi devastado, ao longo de muitos anos, por um processo de corrupção estrutural, sistêmica e institucionalizada. Não foi fenômeno de um governo, de um partido ou de uma pessoa. Foi o acúmulo histórico de décadas, que um dia transbordou. A corrupção nos atrasa na história, com suas consequências desastrosas, que incluem: fraudes em licitações; superfaturamento de contratos; propinas em empréstimos e financiamentos públicos; propinas em desonerações e isenções tributárias; achaques em CPIs; e emendas orçamentárias parlamentares cujos recursos não chegam ao seu destino.

Tão ruim quanto o país feio e desonesto que resulta dessa fotografia é o conjunto de decisões equivocadas que são tomadas pelos motivos errados. É aí que se materializam as obras inúteis e as aquisições desnecessárias. Tudo provado, documentado, confessado.

Há em curso no Brasil, no entanto, um esforço imenso para capturar a narrativa do que aconteceu no país. Muita gente querendo transformar a imensa reação indignada da sociedade brasileira e de algumas de suas instituições no enfrentamento da corrupção numa trama para perseguir gente proba e honesta. E, para isso, não se hesita em lançar mão de um conjunto sórdido de provas ilícitas, produzidas por criminosos – Deus sabe a soldo de quem.

Este processo de tentativa de reescrever a história, com tinturas stalinistas, produz as alianças mais esdrúxulas, de um extremo ao outro do espectro político. Só falta a criação de um Ministério da Verdade, como na obra 1984, de George Orwell, que vivia de reescrever a história a cada tempo, modificando os fatos. Nessa versão, tudo não passou de uma conspiração de policiais federais, procuradores e juízes, cooptados por um punitivismo insano contra gente que conduzia o país com lisura e boas práticas. Na conspiração, também foram incluídos a Receita Federal, o Banco Central e o Coaf. Pior: a conspiração se tornou internacional e agora abrange, também:

a) a Transparência Internacional, que nos coloca em um vexatório 105º lugar no Índice de Percepção da Corrupção. Atenção: a Transparência Internacional apenas divulga os dados apurados. Ela não os fabrica. Não adianta atirar no mensageiro;

b) a OCDE, que reiteradamente vem manifestando preocupação com a forma como vimos tratando a criminalidade que inclui corrupção e lavagem de dinheiro;

c) o Departamento de Justiça dos Estados Unidos, que multou a Petrobras em mais de 800 milhões de dólares por práticas de corrupção com repercussão em território americano;

d) a Securities and Exchange Commission, que multou a Petrobras em 933 milhões de dólares;

e) a Justiça Federal de Nova York, que homologou acordo de 2,9 bilhões de dólares para pôr fim à ação coletiva movida por acionistas lesados por práticas de corrupção; e

f) os bancos suíços que, de ofício, comunicam às autoridades brasileiras os inequívocos indícios de lavagem de dinheiro procedente de atividades ilícitas.

Para que não se perca a memória do país, gostaria de lembrar:

a) eu ouvi o áudio do senador pedindo propina ao empresário e indicando quem iria recebê-la, bem como vi o vídeo do dinheiro sendo entregue;

b) eu vi o inquérito em que altos dignitários recebiam propina para atos de ofício, abriam offshores por interpostas pessoas e sem declará-las à Receita, subcontratavam empresas de fundo de quintal e tinham todas as despesas pagas por terceiros;

c) eu vi o deputado correndo pela rua com uma mala de dinheiro com a propina recebida, numa cena que bem serve como símbolo de uma era;

d) todos vimos o apartamento repleto com 51 milhões de reais, com as impressões digitais do ex-secretário da Presidência da República no dinheiro;

e) eu vi, ninguém me contou, o inquérito em que o senador recebia propina para liberação dos pagamentos à empreiteira pela construção de estádio;

f) todos vimos o diretor da empresa estatal que devolveu a bagatela de 182 milhões de reais; e

g) todos vimos a usina que foi comprada por 1,2 bilhão de reais e revendida por menos da metade do preço.

Eu não preciso continuar a enumeração do que é público e notório. O país vem fazendo um esforço enorme para empurrar para a margem da história essa velha ordem, em que era legítima a apropriação privada do estado e o desvio rotineiro de dinheiro público. A sociedade brasileira já não aceita mais o inaceitável e desenvolveu uma enorme demanda por integridade, idealismo e inclusão social. As instituições precisam corresponder a essas expectativas, ajudando a fazer um país melhor e maior.

Luís Roberto Barroso é ministro do Supremo Tribunal Federal.

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