O assassinato de Celso Daniel, ocorrido em 2002, é investigado até hoje pelo MP de São Paulo

O mistério da fita

Uma fita com pistas sobre o assassinato de Celso Daniel. Um pedido de Lula a um amigo para esquecer o assunto. Uma invasão de bandidos em busca de provas contra petistas. Crusoé revela outra história sobre o crime que assombra o PT há quase duas décadas
03.01.20

Passava das cinco horas da tarde quando dois homens, um deles de boina e bengala, desceram de um Spacefox preto em frente a uma loja de roupas de grife em um bairro residencial de Ponta Grossa, no interior do Paraná. Era quinta-feira, 26 de abril de 2018, e a rua estava calma, como de costume. Armada, a dupla rendeu duas pessoas logo na entrada e anunciou o assalto. Outros dois comparsas chegaram em seguida para invadir a casa que fica nos fundos do mesmo imóvel, fazendo 11 reféns, entre eles uma idosa e uma criança. Mas em vez de dinheiro e objetos de valor, os bandidos queriam “os documentos do PT”. As vítimas foram amarradas, amordaçadas e agredidas, enquanto parte da quadrilha quebrava as paredes atrás de um cofre onde o material poderia estar escondido. Após mais de uma hora de terror e destruição, o bando não achou nada e fugiu levando apenas carteiras, celulares, bijuterias e algumas peças da loja. Apesar da explícita conotação política, a Polícia Civil do estado concluiu, poucos meses depois, que o caso foi um típico crime comum, contra o patrimônio, sem indiciar ou prender ninguém.

O episódio ocorreu na casa onde mora uma irmã do fazendeiro Valter Sâmara, um cartorário rico e influente de Ponta Grossa. O nome dele, inclusive, foi mencionado pelos bandidos durante a busca frustrada pelos arquivos petistas. Conforme Crusoé mostrou em novembro, Sâmara foi amigo íntimo do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva durante 25 anos, e chegou a se oferecer como colaborador à força-tarefa da Lava Jato em Curitiba em 2018. Exatamente um mês antes da invasão, um intermediário dele, o advogado Paulo Reusing, havia se encontrado com procuradores da força-tarefa para falar da intenção do ex-companheiro de Lula em contar tudo o que testemunhou sobre o petista ao longo de duas décadas. No repertório apresentado aos investigadores, estavam fatos envolvendo o tríplex de Guarujá, que já havia levado à condenação de Lula em segunda instância, a compra do segundo apartamento em São Bernardo do Campo, que ainda não teve sentença, e outro crime igualmente classificado como “comum” pela polícia, mas muito mais trágico e rumoroso por envolver um proeminente personagem político e uma trama de chantagem e corrupção que até hoje assombra o PT: o assassinato de Celso Daniel, em janeiro de 2002.

A Crusoé, Sâmara revelou fatos inéditos vinculados à morte do então prefeito de Santo André — fatos que pretendia contar à Lava Jato antes da invasão da residência de seus familiares. Entusiasta da operação de combate à corrupção que nasceu no seu estado, em 2014, ele recuou depois do assalto, temendo novas represálias. Suspeitava estar grampeado e se recolheu por mais de um ano. Mas a soltura do ex-presidente Lula, em novembro, encorajou o fazendeiro de Ponta Grossa a quebrar o silêncio. Sâmara conta que, em abril de 2002, três meses após o assassinato de Celso Daniel, recebeu uma fita cassete com a gravação de uma conversa entre Gilberto Carvalho e Miriam Belchior, que eram secretários da administração petista na cidade do ABC. Ele diz que obteve o material das mãos de um antigo amigo, Álvaro Lopes, um lobista conhecido nos corredores do poder de Brasília. que, à época, segundo o fazendeiro, atuava como emissário do então deputado Michel Temer, ex-presidente da Câmara.

O boletim de ocorrência registra o que os bandidos queriam: documentos de interesse do PT
Na conversa, relata Sâmara, Carvalho pede para Miriam continuar de luto pela morte de Celso Daniel, com quem foi casada por dez anos antes do sequestro e assassinato dele. E diz à então secretária municipal de Habitação e Inclusão Social de Santo André para guardar por mais alguns dias uma misteriosa encomenda que ele iria retirar em outra ocasião — o fazendeiro diz acreditar que, pelos termos da conversa, os dois tratavam de dinheiro. O conteúdo da fita impressionou Sâmara. Na mesma semana, ele foi a São Paulo mostrar a gravação a Lula, no apartamento do petista em São Bernardo. “Fiquei bem preocupado quando ele disse que era uma montagem. Eu tinha ouvido a fita e falei que não, aquilo não era montagem nenhuma”, diz o fazendeiro. Ele conta ter deixado a gravação com o petista. À época, Lula já rodava o país em pré-campanha na sua quarta e, desta vez, vitoriosa tentativa de chegar ao Planalto.

Logo após a morte de Celso Daniel, em 20 de janeiro de 2002, a Polícia Federal iniciou a investigação sobre o crime em que realizou uma série de grampos telefônicos entre os suspeitos. Elas duraram até março daquele ano. Um dos alvos era Gilberto Carvalho, secretário da prefeitura de Santo André à época. As 42 gravações mostravam a preocupação do núcleo político do ex-prefeito com a suspeita sobre o envolvimento do empresário Sérgio Gomes da Silva no assassinato. O Sombra, como era conhecido, estava com Celso Daniel no dia do sequestro e foi acusado pelo Ministério Público estadual de ser o mandante do crime. Ele morreu em 2016 com o processo ainda em instrução, após a anulação determinada em 2014 pelo Supremo Tribunal Federal. As fitas originais feitas pela PF já haviam sido destruídas a mando do juiz federal João Carlos da Rocha Mattos, que as considerou provas ilícitas. Em 2003, Rocha Mattos foi preso pela Operação Anaconda e, depois, condenado por venda de sentenças judiciais.

O áudio ouvido por Sâmara chama a atenção por dois fatos importantes: 1) ao contrário dos grampos feitos pela PF, cujas cópias chegaram a ser apresentadas na CPI dos Bingos em 2005, a gravação contida na fita cassete, segundo ele, não era de uma ligação telefônica, mas produto de uma escuta ambiental, o que indica tratar-se de áudio inédito; 2) a conversa fazia alusão à arrecadação ilícita de dinheiro na Prefeitura de Santo André, um suposto esquema nunca  comprovado, mas que converge com a acusação feita pelos irmãos de Celso Daniel, João Francisco e Bruno Daniel, contra Gilberto Carvalho, de que o então secretário e futuro chefe de gabinete de Lula coletava propinas provenientes de um esquema de corrupção municipal, para entregá-las a José Dirceu, à época o presidente nacional do PT. Os desvios teriam financiado as caravanas da pré-campanha presidencial de Lula em 2002 e servido como uma espécie de laboratório para a engenharia montada mais tarde por Dirceu para captar recursos públicos em esquemas como o mensalão e petrolão.

Arquivo pessoalArquivo pessoalValter Sâmara com Lula nos tempos de estreita amizade: ele diz que levou a fita ao ex-presidente
Para Sâmara, o assassinato de Celso Daniel foi um crime político, ao contrário do que concluiu a polícia de São Paulo em duas investigações segundo as quais o ex-prefeito petista foi vítima de um sequestro seguido de morte por uma quadrilha da favela Pantanal. Pela tese do ex-amigo de Lula, também defendida pelos irmãos do petista, o ex-prefeito era conivente com os desvios de dinheiro para o partido, mas teria reagido contra o enriquecimento ilícito pessoal de aliados e empresários amigos do setor de transportes. “Ninguém até hoje teve interesse em descobrir os fatos verdadeiros sobre isso”, afirma Sâmara. O fazendeiro acredita que os bandidos que invadiram a casa de sua irmã em abril de 2018 estavam atrás da fita cassete que ele diz ter deixado com Lula em 2002. Sâmara jura que não ficou com nenhuma cópia da gravação.

Apesar do trauma ainda presente na família, o fazendeiro não exibe mais tanta preocupação. Aos 82 anos de idade, ele jogava paciência sobre uma mesa de carteado na varanda de sua chácara em Ponta Grossa, quando recebeu Crusoé numa tarde de terça-feira. Com um inseparável chapéu de cowboy, bermuda jeans e camisa polo Lacoste, ele espalhou sobre o feltro dezenas de fotos nas quais aparece com Lula, a ex-primeira-dama Marisa Letícia, morta em 2017, e vários outros amigos petistas, como o senador Jacques Wagner, o ex-ministro José Eduardo Cardozo e o ex-deputado e ex-presidente de Itaipu Jorge Samek. Nos seus comentários, sempre fez menção carinhosa a Marisa, de quem virou amigo muito próximo jogando baralho. Sâmara demonstra guardar certa mágoa de Lula pelo tratamento que ele dispensava a Marisa. Diz que ela foi traída pelo ex-presidente.

Ao contrário do que diz o petista, o fazendeiro afirma que é antigo o relacionamento de Lula com Rosângela da Silva, a Janja, a namorada com quem ele afirma ter começado a se relacionar na cadeia e com quem pretende se casar. O namoro, diz, teria começado quando Marisa ainda era viva. “O Lula tinha um caso com ela. Quando a gente viajava para diversos lugares, ela sempre ficava com o Lula. Aquela safadeza de sempre de homem que não tem o respeito pela mulher “, afirma. Socióloga e ex-moradora de Curitiba, Janja foi nomeada para trabalhar em Itaipu por Gleisi Hoffmann, ex-diretora da usina binacional e hoje presidente do PT, no início da gestão de Jorge Samek e do governo petista, em 2003. Ficou lotada no escritório de Itaipu em Curitiba até novembro, quando Lula saiu da prisão, trabalhando no setor de responsabilidade social da empresa.

Antônio Cruz/Agência BrasilAntônio Cruz/Agência BrasilGilberto Carvalho e Miriam Belchior: eles negam a existência da conversa
O fazendeiro conta que, no final do governo Lula, um ex-assessor pessoal do presidente lhe telefonou pedindo ajuda. Queria que ele fosse fiador da Janja no apartamento que ela alugava na capital paranaense. “Aceitei porque o Lula pediu, mas não imaginava que ela não ia entregar a chave, que ia esculhambar o apartamento e deixar todos os compromissos para eu ir lá acertar”, recorda. Sâmara afirma que teve de gastar cerca de 50 mil reais para quitar seis meses de aluguéis atrasados de Janja, entre 2012 e o início de 2013, e ainda reformar o apartamento para entregar a chave ao proprietário.

Antes de ajudar a namorada de Lula, Sâmara disse já ter ajudado a família do próprio petista, inclusive pagando dívidas dos filhos. Como mostrou Crusoé em novembro, o fazendeiro gastou mais de 140 mil reais para comprar 77 peças de mobiliário para o segundo apartamento de Lula em São Bernardo, que era alugado com recursos da Presidência da República e depois teria sido comprado, segundo denúncia do MPF, com dinheiro de propina da Odebrecht — o fazendeiro diz que solicitou formalmente ao PT a devolução dos móveis para doá-los ao 13º Batalhão de Infantaria Blindado, do Exército, em Ponta Grossa. A única empreitada da qual Sâmara pulou fora, segundo o próprio, guarda relação com o famoso apartamento no Guarujá. Depois que optou por ficar com o tríplex reformado pela OAS, Marisa insistiu para que ele comprasse outra unidade no mesmo prédio, no edifício Solarium, na praia das Astúrias. Mas nessa ele não caiu.

Procurados por Crusoé, Lula e Janja responderam que não vão se manifestar sobre as declarações de Sâmara. Gilberto Carvalho disse que a gravação mencionada pelo ex-amigo de Lula é “invenção do Sâmara ou uma grosseira montagem” e desafiou o fazendeiro a “provar a veracidade desta fita”. O ex-ministro de Lula afirma que as investigações feitas pela Polícia Civil de São Paulo e pela Polícia Federal já apontaram os responsáveis pelo assassinato de Celso Daniel e que “o resto é luta política, ativismo judicial do Ministério Público de Santo André e picaretagem de oportunistas”. Miriam Belchior negou que algum dia tenha tido com Gilberto Carvalho o diálogo mencionado por Sâmara. “Essa conversa nunca existiu”, disse ela.

A gravação ouvida pelo ex-amigo de Lula nunca chegou ao conhecimento das autoridades que investigaram a morte de Celso Daniel. O promotor que apurou o caso, Roberto Wider Filho, diz que o áudio, se ainda existir, pode contribuir para iluminar a história do crime. “Eu nunca ouvi essa conversa, mas se ele (Sâmara) tiver interesse em falar com o Ministério Público ou entregar esse material, nós temos bastante interesse”, afirmou o promotor a Crusoé. Ainda há um inquérito aberto no MP paulista apurando as circunstâncias do assassinato.

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