RuyGoiaba

Ninguém gosta da liberdade de expressão dos outros

17.01.20

Já falei mal de Carnaval por aqui e expliquei que só gosto dele como ideia. Talvez ficasse mais claro se eu fizesse um meme daqueles do tipo “expectativa X realidade” que circulam pelas redes sociais. Expectativa (foto do Chico Buarque alegrão): uma festa dionisíaca, repleta de bacantes peladas. Realidade (foto do Chico Buarque tristão): multidão de bêbados chatos e suados, música ruim, briga física por motivos 100% estúpidos, furto em massa de celulares e aquele cheirinho gostoso de ureia que emana dos hectolitros de mijo na rua.

Não é exatamente minha ideia de paraíso, o que explica por que sou o fundador e único integrante do Derrida ou Desce, o bloco carnavalesco mais desconstruído do Brasil: o último Carnaval, por exemplo, eu “pulei” em casa com meu abadá do Leonard Cohen, compositor notório pela alegria contagiante de suas músicas (só que ao contrário). Ainda assim, a tradição secular nos informa que o Carnaval era uma festa pagã que precedia a Quaresma, um ritual coletivo que subvertia papéis sociais, uma inversão de todas as regras e normas cotidianas etc.

O verbo está no passado de propósito: “era”, porque os dionisíacos de hoje têm de seguir inúmeras regrinhas se quiserem pular Carnaval e continuar sendo reconhecidos como CIDADÃOS DE BEM. A mais recente lista de normas veio da Defensoria Pública do Ceará, que recomenda o seguinte aos foliões: não pode se fantasiar de padre, pastor, judeu ou muçulmano, porque “religião não é fantasia” (obviamente, no material divulgado o “muçulmano” é ilustrado pelo desenho de um árabe, já que esse pessoal é muito respeitador das diferenças).

Também não pode homem vestido de mulher, porque “identidade não é fantasia” (“tem mulher cis e trans, travesti, genderfluid e queer”). Não pode se fantasiar de índio nem de cigano, que é “resumir uma etnia a enfeite”. Muito menos se vestir de Nega Maluca ou fazer blackface. Em resumo, toda aquela história de “subversão de papéis sociais” foi para o saco, e você não pode se fantasiar de basicamente nada que não seja igual ao que você já é nos outros 360 dias do ano. Não dá nem para usar apenas short Adidas e chinelo — seria uma evidente apropriação cultural do traje típico dos índios brasileiros.

Perguntei no Twitter qual era exatamente a diferença – fora a caneta do Poder Judiciário na mão — entre esses sujeitos que dizem que “religião não é fantasia” e o desembargador que censurou o Porta dos Fundos por causa daquele especial de Natal com o Jesus gay. Veio um me dizer que o filme do grupo humorístico precisa ser ativamente procurado na Netflix, ao passo que a pessoa ofendida não pode desver aquilo que a ofende — o que imediatamente dá razão a todos os que acham Carnaval, Parada LGBT e eventos similares uma in-de-cên-cia.

Outro alegou que existem diferenças entre “tirar sarro de uma minoria oprimida” (não pode) e satirizar o “cristianismo opressor” (pode). Ou seja: nunca saia de casa sem o seu OPRESSÔMETRO bem calibrado, para saber direitinho quem zoar. O problema é a geringonça dar curto-circuito se algum homem hétero cis se fantasiar de Jesus transgênero — consigo imaginar o ponteiro oscilando loucamente entre o “pode” e o “não pode” até o aparelho explodir.

Em suma, o negócio é o seguinte: seja no Carnaval, seja fora dele, ninguém gosta da liberdade de expressão dos outros. Ou, como apontou o cartunista Ricardo Coimbra, todo mundo diz que adora, MAS cada um com sua ressalva (“nada que ofenda Maomé”, “nada que ofenda Jesus”, “nada que ofenda as minorias”, “nada que ofenda a família e os costumes” etc.). “Ao fim, consideradas todas as ressalvas, não sobra liberdade de expressão nenhuma”, escreve Coimbra. Outro modo de dizer isso é o que Nelson Rodrigues falava dos “nossos libertários” há cinco décadas: “Berram contra todos os regimes de força, mas cada qual tem no bolso a sua ditadura” (o próprio Nelson, aliás, tinha a dele).

Meu conselho, se é que vale alguma coisa: na dúvida, ofenda todo mundo.

***

A GOIABICE DA SEMANA

O governo de Jair Bolsonaro é tão, mas tão contra o fundão eleitoral que ele foi incluído como fonte de receita no estatuto da sigla do presidente, a Aliança pelo Brasil. Também é tão moralizador no trato da coisa pública que, até o momento em que escrevo, manteve na chefia da Secom Fabio Wajngarten, sócio de uma empresa que recebe dinheiro de emissoras de TV e agências de publicidade contratadas pela própria secretaria. Virou basicamente o Ministério da Verdade de “1984”, aquele livro com muita coisa escrita que dificilmente Bolsonaro leu.

Distopia ocorre, nada acontece, feijoada.

O escritor briânico George Orwell, autor de “1984” e de “A Revolução dos Bichos” (que NÃO é um livro sobre a fauna que ocupa o governo Bolsonaro)

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