Carolina Antunes/PR

A farra dos jetons

Ministros e outros funcionários de alto escalão usam brechas da lei para continuar recebendo pagamentos extras em conselhos de estatais
31.01.20

O major reformado da Polícia Militar do Distrito Federal Pedro César Nunes Marques de Sousa é um dos três integrantes do conselho fiscal do BNDES Participações, a holding do banco que gere investimentos de mais de 114 bilhões de reais. O currículo do PM divulgado pela empresa detalha sua vivência profissional: além do trabalho de policiamento ostensivo da capital federal, ele fez cursos de polícia comunitária e uma formação a distância sobre “uso progressivo da força”. Não há menções a experiências com gestão de dividendos, emissões de debêntures e análise de balancetes – algumas das funções regimentais dos conselheiros fiscais do BNDESPar. Outros pormenores do currículo, contudo, explicam a nomeação: Pedro César foi assessor legislativo de Jair Bolsonaro na Câmara dos Deputados e hoje é o chefe de gabinete do presidente da República. A indicação para o conselho da estatal rende 8,1 mil reais mensais em jetons ao policial, o que alavanca em quase 50% seu salário.

Pedro César Sousa é um dos 268 servidores que recebem remuneração extra para participar de conselhos de empresas públicas. A histórica boquinha para funcionários próximos do Planalto prossegue nesta gestão, apesar do discurso de austeridade do governo. Em 2019, quase 18 milhões de reais saíram dos cofres públicos em forma de jetons. Ganhar vaga no conselho de uma empresa pública é uma ótima oportunidade: os beneficiados embolsam ajudas mensais de até cinco dígitos para participar de alguns poucos encontros dos conselhos das estatais – um por mês, em geral. O chefe de gabinete de Bolsonaro faz parte de um grupo ainda mais afortunado: ele integra dois conselhos. Além de participar da gestão do BNDESPar, ele foi nomeado em outubro para o conselho do Serviço Nacional de Aprendizagem Comercial, o Senac. A instituição integra o Sistema S e conta com três representantes do governo federal. O jetom previsto para o cargo é de 21 mil reais.

O inchaço da máquina pública é uma das razões para as vultosas despesas com jetons. Existem hoje 202 estatais federais, 46 de controle direto e 156 de controle indireto. As 19 empresas dependentes do Tesouro têm uma folha de pessoal bilionária, que drena recursos de investimentos. O ritmo das privatizações foi lento em 2019, mas o governo promete vender 150 bilhões em 300 ativos este ano, se o Congresso aprovar novas regras para agilizar o processo de desestatização. A legislação prevê a indicação de representantes da União para os conselhos de administração das empresas públicas, mas não estabelece a necessidade de pagamento de remuneração. A legislação determina apenas que, se houver pagamento, os jetons não podem ultrapassar, em nenhuma hipótese, 10% do salário dos diretores da empresa. E a regra, obviamente, não obriga os servidores indicados a receberem o extra para integrarem essas instâncias decisórias. Mas a nomeação para a cúpula das estatais não segue a lógica do interesse público. Desde os governos FHC e Lula, os jetons viraram uma complementação salarial de altos funcionários do Executivo e de amigos dos poderosos de plantão.

Marcos Corrêa/PRMarcos Corrêa/PRBento Albuquerque, ministro das Minas e Energia, tem assento em duas estatais da área militar
Quem também teve um chefe de gabinete beneficiado com jetons é o ministro da Casa Civil, Onyx Lorenzoni. Marco Antônio Rassier Filho, servidor de confiança do deputado licenciado desde os tempos de Congresso Nacional, foi nomeado para os conselhos do BB Banco de Investimentos e da Casa da Moeda. Somadas, as duas remunerações adicionais que ele recebe totalizam 9,4 mil reais. No currículo cadastrado na sociedade anônima vinculada ao Banco do Brasil, responsável por gerir quase 10 bilhões de reais em ativos, Marco Antônio afirma ter “experiência no assessoramento em gabinetes e no contato direto com autoridades e na coordenação de agendas diárias de audiências, reuniões e despachos”. Rassier deixou a chefia de gabinete de Onyx no último dia 7.

No governo Bolsonaro, a farra dos conselhos beneficia até mesmo emedebistas históricos. Braço direito do ex-presidente da Câmara Eduardo Cunha e do ex-ministro Geddel Vieira Lima, ambos presos pela Lava Jato, Carlos Henrique Menezes Sobral conseguiu manter-se no poder graças à mobilização da cúpula emedebista. Hoje, ele é assessor da Secretaria Nacional de Inclusão Social e Produtiva Rural do Ministério da Cidadania, comandado pelo ministro Osmar Terra, do MDB. Desde sua posse na gestão Bolsonaro, Sobral passou pelos conselhos fiscais do Senac e do Sesc – ele segue como titular deste último. Os jetons do cargo são de 21 mil reais por reunião, o dobro do salário que o assessor recebe no ministério.

Postados em altos cargos do Ministério da Educação, o presidente do Inep, Alexandre Pereira Lopes, e o secretário-executivo, Antônio Paulo Vogel, têm vagas no conselho de estatais que não têm qualquer relação com o MEC. Lopes ganha jetons de 3,2 mil reais da Amazul – Amazônia Azul Tecnologia de Defesa S.A. Criada em 2013 para promover o programa nuclear brasileiro, a empresa é vinculada à Marinha e comandada por almirantes. Vogel compõe o conselho da Agência Brasileira Gestora de Fundos Garantidores e Garantias S.A., ligada ao Ministério da Economia e criada para agilizar as exportações brasileiras e projetos de infraestrutura. Também faz parte do conselho da Agência de Financiamento Industrial, uma subsidiária do BNDES. Os dois extras somam 12,5 mil reais. Ambos são servidores de carreiras ligadas ao Ministério da Economia.

Adriano Machado/CrusoéAdriano Machado/CrusoéJorge de Oliveira, da Secretaria-Geral: como Mandetta, ele tem assento no conselho do Senac
A Lei das Estatais, aprovada em 2016, durante o governo de Michel Temer, estabeleceu regras para o processo de escolha de conselheiros. Os representantes do governo em conselhos de estatais devem ter “reputação ilibada e notório conhecimento”. Além disso, precisam atender requisitos como comprovação de uma década de experiência profissional na área de atuação da empresa pública, da realização de atividades vinculadas aos trabalhos da estatal ou de pelo menos quatro anos de exercício em cargos de chefia. Além disso, a lei exige que o candidato tenha formação acadêmica compatível com o cargo e não seja “ficha suja”. O texto, que entrou em vigor em 2018, proíbe a indicação de ministros, de servidores sem concurso, de dirigentes partidários ou de sindicalistas. Veda ainda a escolha de pessoas que possam ter qualquer conflito de interesse com as atividades desenvolvidas pela estatal.

Especialistas reconhecem que a novidade na legislação promoveu uma limpeza nos conselhos, até então tomados de políticos e servidores comissionados. Mas, como quase toda lei, as regulamentações que vieram depois abriram brechas. Um decreto do mesmo ano liberou ministros, por exemplo, para participar de conselhos de estatais que tenham receita bruta inferior a 90 milhões de reais. Um dos beneficiários da exceção é o ministro de Minas e Energia, Bento Albuquerque. Com remuneração básica de 49,9 mil reais, sobre a qual incide um abate-teto de 6,7 mil reais, ele recebe jetons que somam 5,9 mil reais – a remuneração extra não é contabilizada para verificação do teto constitucional. Albuquerque preside o conselho de administração da Nuclebrás Equipamentos Pesados, a Nuclep, e da Empresa de Pesquisas Energéticas (EPE). Segundo o Ministério de Minas e Energia, as duas empresas têm receitas inferiores ao patamar legal, o que autoriza a participação do ministro nos dois conselhos.

Outra grande brecha para garantir benesses a ministros está nas indicações para conselhos de entidades do Sistema S. Como são classificadas como entidades paraestatais, Sesc, Senac e Senai não estão enquadrados nas regras. Nesses casos, portanto, o governo pode indicar ministros, servidores sem concurso, sindicalistas e filiados a partidos políticos. Não faltou quem logo arrumasse um jeito de recorrer à brecha. No conselho fiscal do Senac, que garante um polpudo jetom de 21 mil reais, além do chefe de gabinete do presidente, estão dois ministros: o da Saúde, Luiz Henrique Mandetta, e o da Secretaria-Geral da Presidência, Jorge de Oliveira. Para o conselho do Sesc o governo Bolsonaro indicou Guilherme Afif , assessor especial do Ministério da Economia, e o secretário da Previdência, Rogério Marinho, além de Carlos Sobral, o apadrinhado de Geddel e de Cunha. Completa o time do governo no Sesc Paulo Bauer, ex-senador filiado até hoje ao PSDB que é assessor especial da Secretaria de Relações Governamentais da Casa Civil.

Rogério MarinhoRogério Marinho, secretário da Previdência, também está entre os beneficiários
Para o professor Joelson Sampaio, que coordena a Escola de Economia de São Paulo da FGV e integra o Observatório das Estatais, a lei que impôs limites à participação de altos funcionários públicos em conselhos trouxe avanços. “Acabaram sobrando algumas brechas, mas o saldo é positivo. Houve avanços com relação à independência, à autonomia e à responsabilidade dessas estatais”, explica. “Ficaram, entretanto, alguns critérios subjetivos para avaliar quem está ou não preparado para integrar os conselhos”, acrescenta. Sampaio lembra que esses cargos são importantes para a governança das estatais. “Os conselheiros têm o papel fundamental de zelar pelo valor da empresa, de monitorar a direção e acompanhar a gestão, apoiando projetos estratégicos que agreguem.”

Indagado por Crusoé sobre os critérios utilizados para indicar os conselheiros, especialmente aqueles que ocupam postos no Palácio do Planalto, a Presidência da República informou que não iria responder. Responsável por zelar pelas boas práticas na administração pública, a Controladoria-Geral da União afirmou que incluiu em seu planejamento para este ano uma análise sobre os processos de seleção dos conselheiros escolhidos pelo governo.

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