Adriano Machado/Crusoé

O limbo da corrupção

Quase um ano depois da decisão do STF que mandou casos de propinas com caixa 2 para cortes eleitorais, o saldo é exatamente aquele que se imaginava: os processos patinam e as condenações são raras
31.01.20

Na semana passada, você soube aqui que o senador José Serra conseguiu se livrar da Lava Jato em São Paulo. Suspeito de receber mais de 52 milhões de reais em propinas, o inquérito a que ele respondia foi arquivado graças a uma mistura de fatores. Um deles, primordial, guarda relação com a decisão do Supremo Tribunal Federal que mandou para a Justiça Eleitoral casos que misturam corrupção, lavagem de dinheiro e caixa 2 para campanhas. É algo que vem favorecendo dezenas de políticos pelo país afora. Nos últimos dias, Crusoé se debruçou sobre processos remetidos para cortes eleitorais e constatou que as piores previsões sobre a sua capacidade de conduzir investigações criminais complexas estão se confirmando: os processos patinam e as condenações são raras. Quase um ano depois, é possível dizer que, sim, ao pronunciar o veredicto, o STF ajudou a garantir a impunidade.

Números levantados junto a dez dos maiores tribunais de todo o país falam por si. De 107 inquéritos e onze ações penais consultados, só houve condenações em dois casos até hoje. Trata-se dos casos envolvendo os petistas Fernando Haddad e Fernando Pimentel. Haddad foi condenado por caixa dois em sua campanha à prefeitura de São Paulo em 2012 e Pimentel, por tráfico de influência e lavagem de dinheiro por utilizar seu cargo de ministro do governo Dilma Rousseff, para acertar repasses de empresas para a sua campanha ao governo de Minas em 2014. Ambos ainda recorrem das condenações. Os motivos para o desempenho pífio da Justiça Eleitoral são muitos. Em primeiro lugar, estão a influência política dos caciques em suas regiões e a falta de estrutura física e de capacitação técnica nos tribunais eleitorais para conduzir casos criminais complexos. Além disso, há a alta rotatividade de juízes e promotores eleitorais, que costumam ficar só dois anos no cargo. Por fim, soma-se ao cenário o fato de que a Justiça Eleitoral tem a tarefa primordial de organizar eleições em todo o país a cada dois anos.

Tudo começou em 2018, logo após o plenário do Supremo decidir, por unanimidade, restringir o foro privilegiado de deputados e senadores. A decisão na época foi comemorada como uma vitória para o combate à corrupção e aos crimes do colarinho branco. Com a restrição do foro, porém, coube à Segunda Turma da corte, onde tramitam os casos da Lava Jato, decidir para onde enviar os processos. Já naquele ano, o colegiado que conta com os ministros Gilmar Mendes, Ricardo Lewandowski, Celso de Mello, Edson Fachin e Cármen Lúcia começou a adotar o entendimento de que, quando crimes como corrupção e lavagem de dinheiro envolvessem também a suspeita de crimes eleitorais, como caixa 2, as investigações e ações penais deveriam ser remetidas para a Justiça Eleitoral nos estados. Em março de 2019, o plenário do Supremo se debruçou sobre o tema e decidiu, por seis votos a cinco, referendar a posição que vinha sendo adotada na Segunda Turma. O voto de desempate coube ao presidente do STF, ministro Dias Toffoli. Desde então, foram inúmeras as decisões determinando a remessa de procedimentos para as cortes eleitorais. Alguns exemplos ilustram à perfeição o impacto da decisão.

Marcos Oliveira/Agência SenadoMarcos Oliveira/Agência SenadoJosé Serra no Senado: processo arquivado por “extinção de punibilidade”
Na capital federal, está a cargo do promotor Clayton Germano, do Ministério Público local, a condução de nove inquéritos que tramitam atualmente na 1ª Zona Eleitoral do DF. Entre os casos está um inquérito envolvendo o ex-presidente Michel Temer. À diferença do grupo de nove procuradores da Lava Jato na PGR que estava dedicado exclusivamente a investigações desse tipo, Germano terá de tocar sozinho o caso, que soma centenas de páginas de documentos, além de horas intermináveis de depoimentos de delatores. Tudo isso enquanto divide sua atuação eleitoral com a de promotor encarregado de fiscalizar, veja só, a aplicação dos recursos da saúde no Distrito Federal. O promotor acumula as funções de dois gabinetes e ainda é responsável por casos que herdou quando integrava o grupo de combate ao crime organizado. Ou seja: dificilmente o processo terá a atenção que merece.

O caso de Temer é aquele em que o ex-presidente, juntamente com seus ex-ministros Eliseu Padilha e Moreira Franco, foi indiciado pela Polícia Federal por corrupção e lavagem de dinheiro, por ter pedido 14 milhões de reais à Odebrecht para financiar campanhas do MDB naquele ano. Se o promotor não concluir as investigações até janeiro do ano que vem, quando termina sua passagem pela seção eleitoral, o procedimento passará às mãos de um novo titular, que terá que analisar tudo do zero novamente. Também passou pelo gabinete um inquérito destinado a investigar Dilma Rousseff a partir da delação premiada do casal João Santana e Mônica Moura. Os dois disseram ter recebido por fora 10 milhões de reais para fazer a campanha da petista em 2014. Esse caso, em especial, mostra bem como o vaivém dos autos acaba virando um bom negócio para os investigados. O processo foi remetido pelo Supremo à 13ª Vara Federal de Curitiba ainda em 2017, mas graças a um recurso de Guido Mantega, também investigado, a Segunda Turma livrou Dilma da Lava Jato em Curitiba e mandou que as informações seguissem para Brasília. Nenhuma diligência foi realizada. Quatro meses depois, o caso voltou para o Paraná.

O tempo é um problema para os investigadores e um aliado dos advogados dos envolvidos. É o que mostra, por exemplo, outra investigação relativa à campanha de Dilma em 2014. O caso envolve o acerto de 24 milhões de reais em propinas entre Marcelo Odebrecht e Guido Mantega para que o PT pudesse comprar o apoio político de quatro partidos a sua chapa presidencial. Em abril de 2018, Edson Fachin mandou o caso para a Justiça Federal em São Paulo. Em agosto daquele mesmo ano, porém, o ministro acolheu um recurso de um dos investigados, segundo o qual o dinheiro, na verdade, era caixa 2 e não corrupção. Ele determinou que a investigação fosse para a Justiça Eleitoral no DF. O MP Eleitoral, contudo, entendeu que houve um acerto para o PT comprar o tempo de TV dos partidos que o apoiaram, e não um simples caixa 2. O argumento foi aceito e, em janeiro de 2019, o caso voltou para São Paulo. Os advogados conseguiram fazer com que a investigação se arrastasse por mais seis meses só nas idas e vindas da discussão se era crime eleitoral ou não.

Marcos Corrêa/PRMarcos Corrêa/PRHelder Barbalho: promotor liberou suspeitos de intermediar ajuda para  campanha do governador
A quase 2 mil quilômetros de Brasília, em Belém, uma recente operação da Polícia Federal expôs as dificuldades enfrentadas pela Justiça Eleitoral para avançar sobre caciques políticos. A Operação Fora da Caixa, deflagrada no dia 9 de janeiro deste ano, mirava o caixa dois de 1,5 milhão da Odebrecht para a campanha do governador local, Helder Barbalho, em 2014. O valor era referente a um acerto da empreiteira com políticos para as obras da usina de Belo Monte. Dois investigados por suspeita de intermediar os recursos foram presos temporariamente, graças a uma ordem da Justiça Eleitoral, mas pouco depois o Ministério Público deu uma guinada e entendeu que ambos já poderiam ser soltos. A mudança de posição ocorreu graças a uma feliz coincidência para os investigados. A promotora responsável pelo caso estava em férias e, em seu lugar, assumiu um colega que é filho de um antigo aliado do pai de Helder, o notório senador Jader Barbalho – juntos, os dois respondem até hoje a uma ação por suspeita de desvios na Sudam. “Confesso até que talvez, se fosse mais à frente na investigação, se tivesse que analisar provas, algum outro detalhe, talvez eu viesse a me declarar suspeito”, diz o promotor Alexandre Tourinho. O processo tramita em uma zona eleitoral de Belém cuja juíza titular veio da Vara da Infância e Juventude de Belém. Ou seja: os responsáveis por julgar nem sempre têm a experiência necessária para tratar de casos que envolvem corrupção e lavagem de dinheiro. Diferentemente da Justiça Federal, onde há varas especializadas em crimes financeiros, na Justiça Eleitoral muitas vezes os processos ficam com juízes sem qualquer vivência na área criminal.

Os (maus) exemplos se repetem no Rio de Janeiro e em São Paulo. Um dos primeiros beneficiários da sequência de decisões do Supremo de remeter para as cortes eleitorais suspeitas de crime envolvendo políticos foi o ex-senador petista Lindbergh Farias. Ainda em março do ano passado, a Segunda Turma mandou para a Justiça Eleitoral no Rio o inquérito em que ele é suspeito de receber 4,5 milhões de reais da Odebrecht durante as campanhas para prefeito de Nova Iguaçu, em 2008, e para senador, em 2010. Desde que chegou no Rio, o caso ainda não andou.

Já em São Paulo, onde tramitam 32 inquéritos eleitorais decorrentes da Lava Jato, o ex-governador tucano Geraldo Alckmin não tem motivos para se preocupar. Delatado na Lava Jato, ele também teve seu caso enviado para a Justiça Eleitoral. Não há previsão de quando as diligências destinadas a reunir provas para o processo serão concluídas. O promotor que estava responsável pelo inquérito renunciou em novembro, depois de passar onze meses no posto sem ter apresentado uma denúncia sequer envolvendo políticos. No lugar dele assumiu um colega que ocupou um cargo na gestão de Alckmin e é da confiança do atual procurador-geral de Justiça de São Paulo, Gianpaolo Smanio, alçado ao cargo pelas mãos do tucano.

A seguir nesse ritmo, o prognóstico feito pelo coordenador da Lava Jato em Curitiba, Deltan Dallagnol, logo após o veredicto do Supremo, parece bem encaminhado rumo à confirmação. Na ocasião, Dallagnol afirmou que a decisão começava a “fechar a janela de combate à corrupção política que se abriu há cinco anos, no início da Lava Jato”.

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