Adriano Machado/CrusoéO motorista e o caseiro: Eriberto e Francenildo não se arrependem de ter contado o que viram

É preciso falar

Anos após ganharem a ribalta, o caseiro que denunciou Palocci e o motorista que ajudou a derrubar Collor dizem o que pensam sobre revelar escândalos do poder
28.02.20

O entourage de um político poderoso costuma tocar afinado. É formado por pessoas de absoluta confiança, muitas vezes conhecidas de longa data e escolhidas a dedo, que sabem à perfeição qual é o seu papel na linha de produção, digamos assim. Se o grupo é corrupto e age como uma quadrilha, a blindagem é questão de sobrevivência e a lei do silêncio quase sempre impera. Mas, felizmente, há chances de incidentes pelo caminho. E foi graças a incidentes que o país pôde conhecer alguns dos mais bem azeitados esquemas de corrupção já montados na República. Não fosse pela colaboração de criminosos do grupo corrupto, por exemplo, a Lava Jato não teria desmontado os dutos do petrolão. Bem antes de os delatores da operação ganharem a ribalta, porém, dois modestos funcionários de políticos graúdos tiveram papéis cruciais em escândalos. Eles ajudaram a derrubar Fernando Collor de Mello da Presidência e Antonio Palocci do Ministério da Fazenda do governo Lula. Crusoé foi atrás do motorista Eriberto França e do caseiro Francenildo Costa para saber como eles vivem, anos depois de ocuparem as manchetes, e o que pensam sobre a decisão que um dia tomaram de revelar aquilo que viam nas coxias do poder.

“Eu faria tudo de novo”

Há 13 anos, trabalhando como caseiro, Francenildo viu de perto Antonio Palocci, então ministro da Fazenda e homem forte do governo Lula, entrar e sair de uma mansão às escondidas durante festas animadíssimas e reuniões para partilha de dinheiro. Resolveu contar tudo. Palocci até tentou negar, mas foi apeado do cargo dias depois. O troco veio a galope para o caseiro. Três dias após ter denunciado o ministro, Francenildo teve seu sigilo bancário violado na Caixa. Era uma tentativa de mostrar que ele teria recebido dinheiro para denunciar Palocci. O caseiro, porém, demonstraria que o dinheiro que havia em sua conta fora depositado por seu pai biológico.

Desde que decidiu contar em uma entrevista o que sabia sobre Palocci, o caseiro de pele castigada pelo sol e mãos calejadas jamais conseguiu ter outra vez a carteira de trabalho assinada. Mas ele não se faz de rogado. “A coragem de trabalhar eu vou ter sempre”, diz. É reconhecido nas ruas — e nem sempre isso é bom. “Me chamam de safado, dedo duro, dizem que o Palocci vai me matar.” Perguntam, fazendo troça, por que ele ainda trabalha, pois estaria rico. “Eu só respondo: ‘Da vida do vizinho quem sabe é o fuxiqueiro’. Também tem gente que me dá parabéns, quer tirar foto. Os elogios que me botam lá em cima compensam esses daí.” Entre ataques e vivas, ele toca a vida fazendo um pouco de tudo. Pinta, constrói, limpa, lava, reforma, quebra, planta. Às vezes leva seu filho de 20 anos, que parou de estudar no ensino médio, para ajudar na labuta. Orgulha-se de ter uma clientela cativa.

O piauiense de Nazária, pacata vila com menos de 10 mil habitantes nos arredores de Teresina, mora na periferia de Brasília com a mulher e os dois filhos. O mesmo lugar em que vivia quando ficou conhecido em todo o Brasil. Com a ajuda do advogado, Wlicio Chaveiro, e amigos, fez supletivos e conquistou os diplomas de ensino fundamental e ensino médio. Ele afirma que, de toda a história, faria apenas uma coisa diferente — e não se trata da decisão de denunciar ou não. “Eu não botava o dinheiro do meu pai na conta. Deixava embaixo do colchão para não terem feito o que fizeram comigo, quebrado o meu sigilo. Aí não ia ter nada.”

Francenildo fala a Crusoé: vida melhor após o escândalo, mas nem tanto
Calmo e sempre fitando o chão enquanto fala, o homem de 37 anos de repente fecha o semblante. “O trem foi barra pesada, um pesadelo da porra. Eu estava falando a verdade, né? Hoje em dia tem gente filmada com mala de dinheiro e tudo, e fala que é inocente. Imagine eu naquela época. Ninguém acreditou em mim.” Sobre a acusação que fez a Palocci, ele diz: “Pode ser qualquer um. Eu faria tudo de novo”. Francenildo diz ter uma curiosidade sobre a delação de Palocci na Lava Jato. “Será que não tem um anexozinho falando do meu caso, falando que eles erraram comigo? Até agora, ninguém pediu desculpas”, diz. Se ainda não conseguiu o pedido de desculpa, o caseiro foi indenizado pela Caixa. Em maio passado, após recorrer a todas as instâncias e perder, o banco público pagou 950 mil reais ao cliente, por ter violado o sigilo dele.

O dinheiro trouxe um pouco de conforto, mas Francenildo continua acordando cedo para trabalhar com o filho. Fez uma pequena reforma em casa, para a qual comprou alguns móveis, e investiu em seu negócio. Trocou o carro antigo por uma pequena picape nova e adquiriu equipamentos modernos, automáticos. Com isso, passou a atender mais clientes no mesmo Lago Sul, o bairro da mansão onde viu as farras de Palocci e sua turma. O restante do dinheiro ele guardou para “emergências”. Além da indenização, o caseiro embolsou algum dinheiro recentemente para autorizar que a sua história fosse contada em um filme do mesmo cineasta que dirigiu “Bruna Surfistinha” — a produção está em curso.

Francenildo mantém até hoje, em casa, o cartão azul e laranja da Caixa da época em que sua conta foi violada. Ele segue com conta aberta no banco e reage com bom humor quando perguntado por que não foi para a concorrência. “É bom que não preciso ir a outro banco, né? Foi só jogar o dinheiro dentro”, diz.

“Tem que falar e assumir”

Se pudesse voltar no tempo, Eriberto França talvez fizesse diferente. Ele seguiria dirigindo para a Presidência da República sob Fernando Collor, mas diz que pensaria duas vezes antes de denunciar que Paulo César Farias, ex-caixa de campanha do então presidente, bancava despesas pessoais da então primeira-família. Quando pensa nas cifras bilionárias de dinheiro surrupiado no petrolão, por exemplo, Eriberto se irrita. “Em relação à Lava Jato, o impeachment do Collor não é nada. Aquilo ali foi um grãozinho de areia numa praia qualquer. Não vou dizer que o Collor é santo, mas perto dessa galera aí ele foi um estagiário, um aprendiz.” Ele reclama da falta de reconhecimento. “Você se desgasta, desgasta a família, corre perigo de vida. O brasileiro tem memória curta. Se tem 30 anos (que denunciou Collor) e não fui reconhecido, vou ser quando?”, diz.

A falta de emprego também incomoda. O homem de 54 anos, que era uma espécie de faz tudo da secretária de Collor, está há oito sem um registro sequer na carteira de trabalho. Eriberto se vira fazendo bicos em produtoras de vídeo. Aprendeu o ofício na antiga Radiobrás, hoje Empresa Brasil de Comunicação, a EBC. Teve duas passagens por lá. A última acabou em 2011, quando ganhava 1,9 mil reais por mês. Antes, teve cargo no Ministério dos Transportes. A mulher dele também está desempregada. Os dois filhos se graduaram e trabalham. A família mora de aluguel em um apartamento de classe média em Brasília.

Eriberto diz que os bicos o ajudam a manter as contas em dia. O sogro também ajuda com algum dinheiro. O motorista do caso Collor diz ter asco de política e, sempre que alguém lança a ideia de resgatar o passado para lançá-lo candidato, reage com veemência. “Fui convidado por ex-governador de Brasília, por senador, por deputado. Mas tenho medo de entrar num esquema da política e me corromper…”. E completa: “Eles metem a mão no que é nosso, no erário, roubam, roubam, roubam. Aí passam alguns meses na cadeia, voltam para suas mansões milionárias. Tem que ser cadeia para valer. Não esse negócio de delação, tornozeleira eletrônica.”

Adriano Machado/CrusoéAdriano Machado/CrusoéEriberto França diz que recusou convite para retornar ao Palácio do Planalto
O ex-motorista jura que ainda guarda segredos dos velhos tempos — e observa que a posse dessas informações é a sua proteção. “Isso é a minha segurança. Por isso que não fizeram nada comigo. Nem minha esposa, casada comigo há 32 anos, sabe. Se eu for abrir o resto do leque, ainda tem coisa para cacete. Foi só a metade. Tem coisas tenebrosas. Vai morrer comigo, vai para o túmulo.”

Antes de sair da EBC, Eriberto recebeu um convite para trabalhar, acredite se quiser, no Palácio do Planalto. Declinou na hora. “Você chega ali e ainda encontra gente da época do Collor. Tem um pessoal doido por ele. Eu ia ser hostilizado por causa de uma gratificaçãozinha de 1 mil reais? Conheci o sistema de perto, dentro do gabinete presidencial. Não volto para lá.” E para onde quer ir, então? “Estou tentando voltar para a EBC. É só uma saideira para cavar minha aposentadoria. Aí vou montar um comércio. Talvez distribuidora de bebidas, restaurante, vendinha. Vai ter bode, mocotó, buchada”, conta o potiguar de Pau dos Ferros, cidadezinha de 30 mil habitantes.

A exemplo de Francenildo, Eriberto também espera receber uma indenização. Só que, no caso dele, é por insalubridade nos tempos em que trabalhou na TV pública. Apesar do arrependimento, o motorista não tem dúvida de que agiu certo. E estimula o gesto. “Se você acha que a coisa está errada, prejudicando pessoas, tome uma atitude. A denúncia não é pecado, não. Isso aqui é uma democracia. Tem que falar e assumir, mesmo sabendo que o preço pode ser alto.”

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