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A virada de Biden

O esforço dos democratas para enfraquecer o esquerdista Bernie Sanders dá certo e Joe Biden avança na corrida para enfrentar Trump
06.03.20

Foi na Carolina do Sul, terra natal de James Brown, aquele que um dia imortalizou na música o poder de voltar e se levantar (Get up offa that thing), que o ex-vice-presidente Joe Biden ressuscitou na corrida presidencial dos Estados Unidos. Graças ao amplo apoio da comunidade negra, a mesma onde nasceu o “rei do soul”, Biden pôde se levantar no último sábado e dizer aos eleitores do Partido Democrata que estava de volta ao jogo. A vitória do fim de semana no pequeno estado do sudeste foi mais do que simbólica. Além de dar confiança à campanha do pré-candidato, ela atraiu duas importantes adesões políticas que ajudaram Biden a conseguir um feito histórico três dias depois, na famosa Superterça. Contrariando as pesquisas, o ex-vice de Barack Obama venceu em dez dos 14 estados em disputa e ultrapassou o senador Bernie Sanders em número de delegados, tornando-se o grande favorito para enfrentar o presidente Donald Trump na eleição de novembro.

Analistas políticos passaram a quarta-feira decifrando números e tecendo teses para tentar explicar o fenômeno Biden, mas foi o próprio presidente americano, com o sarcasmo que lhe é peculiar, quem interpretou os fatos da forma mais crua. “O establishment democrata uniu-se e esmagou Bernie Sanders, DE NOVO!”, twittou Trump. De fato, o establishment democrata uniu-se em torno de Biden para evitar que Sanders, o senador “socialista democrático” que tem ideias consideradas muito radicais, deslanchasse na dianteira. Mas para que isso ocorresse Biden precisava mostrar que ainda mantinha os sinais vitais. E os sinais vieram na acachapante vitória na Carolina do Sul, que, além dos delegados, trouxe na bagagem o apoio do ex-prefeito Pete Buttigieg e da senadora Amy Klobuchar, que abandonaram a disputa.

O grande feito na Superterça também rendeu a Biden o apoio de outro expoente do establishment democrata, o bilionário Michael Bloomberg. Mesmo gastando mais de 400 milhões de dólares na campanha, o ex-prefeito de Nova York protagonizou um dos maiores fiascos da história das primárias americanas. O magnata torrou dinheiro com propagandas na TV e deixou para entrar oficialmente nas prévias apenas na Superterça. Com apenas 23 dos chamados “grandes eleitores” conquistados até a noite desta quinta-feira, 5, “mini Mike” fez jus ao apelido dado por Trump. Biden já havia amealhado 566 delegados, ante 495 de Sanders. Fora do páreo, Bloomberg prontamente prometeu empenho na candidatura do ex-vice-presidente. Para ele, Biden é o único que tem chances de desbancar o presidente republicano na eleição. “Três meses atrás, entrei na corrida para presidente para derrotar Donald Trump. Hoje, estou saindo da corrida pela mesma razão: derrotar Donald Trump”, disse Bloomberg. O ex-prefeito carece de capital político, mas não lhe falta capital em dólares. O magnata previu gastar até 1 bilhão na eleição presidencial. Ainda resta a metade do budget.

Matt Johnson/FlickrMatt Johnson/FlickrBernie Sanders: os democratas se unem para deixá-lo pelo caminho
O pragmatismo externado por Bloomberg virou a tônica dentro do Partido Democrata. É praticamente consenso que somente uma candidatura mais moderada é capaz de impedir a reeleição de Donald Trump em novembro, embora Sanders ainda apareça à frente do presidente em algumas pesquisas. Para os partidários de Biden, a eleição de 2016 serve de exemplo. Na ocasião, a então candidata democrata Hillary Clinton bateu Trump no voto popular, com uma vantagem de quase 3 milhões de votos, mas perdeu a Casa Branca no colégio eleitoral, que é definido pelo número de delegados conquistados pelos candidatos em cada estado. O republicano venceu em 30 dos 50 estados, levando todos os seus delegados e abrindo uma vantagem de 34% no número de “grandes eleitores”. Nos EUA, muitos estados são historicamente dominados por cada um dos partidos. É o caso do Texas, reduto republicano, e de Nova York, território democrata. A eleição, então, se define nos chamados “estados-pêndulo”, que apresentam resultados variáveis a cada eleição. A Carolina do Norte, onde Trump venceu em 2016, é um deles. Para o establishment democrata, a vitória esmagadora de Biden sobre Sanders nesse estado, com uma vantagem de quase 20 pontos percentuais, é um forte indicativo de que o ex-vice-presidente é, de fato, um nome mais competitivo que o do senador esquerdista na corrida presidencial.

Outro aspecto que põe em descrédito o potencial de Sanders no colégio eleitoral é que seus melhores desempenhos ocorreram em estados que já são tradicionalmente dominados pelos democratas, como Califórnia e New Hampshire. Entre os principais apoiadores de Sanders, estão os eleitores jovens e latinos. Mas no Texas, por exemplo, onde os republicanos são fortes eleitoralmente, esperava-se que Sanders derrotasse Biden. O ex-vice-presidente, no entanto, venceu com uma surpreendente folga. Representando uma candidatura de esquerda dentro do Partido Democrata, o senador independente sofre considerável rejeição do eleitor mais conversador do meio-oeste americano, como os moradores dos estados de Iowa, Missouri e Oklahoma, onde Trump venceu Hillary em 2016. Em Minnesota, outro estado da região, Sanders liderava as pesquisas, mas perdeu para Biden, favorecido pelo apoio de Klobuchar, senadora por aquele estado. Desde que chegou à Casa Branca, Trump tem dito que fará da região um campo de batalha para pintá-la de vermelho, a cor republicana, na eleição deste ano. Em 2016, Hillary o derrotou no estado.

Esta é a terceira vez que Biden pleiteia a candidatura a presidente pelo Partido Democrata. Senador pelo estado de Delaware por quase quatro décadas, o advogado de 77 anos se aventurou pela primeira vez na disputa em 1988. Na ocasião, ele despontou como favorito, levantou o maior volume de doações, mas sucumbiu em meio a acusações de plagiar discursos e inventar fatos da sua biografia, como um diploma universitário falso e ter participado do movimento dos direitos civis dos negros, entre os anos 1950 e 1960. Àquela época, Biden se destacava pela facilidade em dialogar com os chamados baby boomers, a geração que nasceu entre os anos 1946 e 1964, no pós-Segunda Guerra. Hoje, são esses mesmos eleitores, que estão com 60 e não mais 30 anos de idade, o grande alicerce da campanha de Biden contra Sanders. O apoio dos boomers ao vice de Obama foi mais decisivo do que o apoio dos jovens ao senador esquerdista, que tem demonstrado incapacidade de se conectar com os eleitores mais velhos. Biden venceu Sanders por uma margem de 22 pontos na faixa etária entre 45 a 64 anos, e ampliou a vantagem entre os idosos. Já Sanders reinou soberano entre os mais novos, mas eles representam uma fatia menor do eleitorado.

Sanders acusou o golpe da Superterça. Visivelmente abatido, disse após as prévias que nunca uma candidatura havia ameaçado tanto o establishment como a dele, e prometeu seguir firme em campanha. Biden, por sua vez, já centrou todo seu discurso em Donald Trump, como se a batalha das primárias já estivesse resolvida. “Disseram que minha candidatura estava morta. A campanha está apenas começando. Nós vamos empacotar Donald Trump”, bradou diante de apoiadores na Califórnia. Com o afunilamento da disputa democrata, Barack Obama deve entrar aos poucos na campanha, emprestando seu prestígio a Biden. Já Trump, que não disfarçava a preferência em enfrentar Sanders em novembro, deverá reforçar seu arsenal para duelar com aquele que sempre foi visto como o principal rival. No ano passado, ele sofreu um processo de impeachment depois de buscar ajuda da Ucrânia para prejudicar Biden — o atual presidente parecia calcular, bem antes, quem seria seu maior adversário.

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