Marcos Brandão/Senado FederalNa disputa pelo controle da execução orçamentária, Bolsonaro cede ao Parlamento: os "chantagistas" levaram 19 bi

Acordo ou desacordo?

Apesar da insistência em negar a realidade, o presidente Jair Bolsonaro sela entendimento com o Congresso e permite que os parlamentares tenham poder sobre quase 20 bilhões de reais do Orçamento
06.03.20

Em 1929, no auge da grande depressão econômica mundial, o surrealista belga René Magritte pintou uma das obras mais simbólicas da história da arte. Batizado de “A traição das imagens”, o quadro traz a imagem de um cachimbo sobre uma inscrição em cuidadosa letra cursiva, que diz: “isto não é um cachimbo”. A desconexão completa entre as palavras e a figura gera conflito, desconforto e faz da obra um ícone do nonsense. Nesta semana, o presidente Jair Bolsonaro protagonizou um episódio de incongruência entre discurso e realidade comparável ao surrealismo da obra de Magritte. Mesmo depois de negociar com parlamentares e de destacar dois de seus principais ministros para participar das tratativas com as raposas mais felpudas do Congresso, Bolsonaro afirmou que o acordo não era acordo. Na hora de exibir o pacote já pronto para a militância, orientou seus auxiliares a recorrerem a um malabarismo retórico. O inconfessável acordão seria um “entendimento”. O uso de eufemismos são práticas usuais de governantes que se recusam a chamar as coisas pelo nome. Na verdade, pressionado por parte expressiva de seu eleitorado, que abomina o Legislativo e suas práticas, o presidente empreende mais um esforço para negar o irrefutável: ao fim e ao cabo, o Planalto cedeu, sim, à pressão do Congresso pelo controle da execução orçamentária. Sem partido e capacidade de articulação política, mais uma vez Bolsonaro capitulou.

O trato começou a ser colocado em marcha na última quarta-feira, 4. No início da noite, o Congresso aprovou por 398 votos a 2 a manutenção dos vetos de Bolsonaro ao Orçamento impositivo, que dava ao Parlamento o poder de definir a destinação de 30 bilhões de reais. Como para derrubar um veto são necessários os votos da maioria absoluta de ambas as casas (257 deputados e 41 senadores), a matéria não precisará ser analisada pelo Senado. A contraparte do acerto será sacramentada na semana que vem, a partir da votação de projetos enviados ao Legislativo pelo próprio governo que devolvem aos parlamentares a prerrogativa de gerir até 19,7 bilhões de reais. Mesmo assim, o presidente jogou para a plateia. “Não houve qualquer negociação em cima dos 30 bilhões. A proposta orçamentária original do governo foi 100% mantida”, comemorou Jair Bolsonaro em suas redes sociais, tentando criar uma cortina de fumaça para obnubilar o inconteste acerto com o Legislativo. “Independência entre os Poderes e respeito à democracia é o que o povo deseja no Brasil”, acrescentou.

O presidente pode ser useiro e vezeiro em usar a ficção para reconstruir a realidade ao sabor de seus interesses, mas o mundo real nem sempre comporta tamanho atentado aos fatos. Não é possível refutar, por exemplo, por mais que se queira criar uma narrativa capaz de alimentar a ilusão da torcida organizada, que dois de seus principais ministros estiveram na linha de frente das negociações com o Congresso. Na segunda-feira, 2, o ministro da Economia, Paulo Guedes, reuniu-se com o presidente do Congresso, Davi Alcolumbre, na residência oficial do Senado, para tratar do tema. O encontro durou mais de duas horas. Na manhã seguinte, Guedes cancelou uma reunião que teria com integrantes de entidades civis, como o Movimento Brasil Livre e o Vem pra Rua, para discutir as bases do acerto com o próprio Bolsonaro, no Palácio do Planalto. Um almoço entre os dois sacramentou a concertação entre o Executivo e o Legislativo, ratificada um dia depois em entrevista coletiva concedida por auxiliares de Guedes no Ministério da Economia. Na outra ponta, coube ao ministro da Secretaria de Governo, o general Luiz Eduardo Ramos, a combinação com os russos – no caso, o comando do Legislativo – a fim de evitar ruídos de qualquer natureza.

Agência SenadoAgência SenadoPara Major Olímpio, os 19 bilhões de reais são “o preço da prostituição”
A tarefa de gerir os 19,7 bilhões de reais conquistados pelo Congresso ficará sob a responsabilidade do relator do Orçamento, Domingos Neto, do PSD do Ceará. “Existe hoje na Lei de Diretrizes Orçamentárias um dispositivo que permite ao relator oficiar qualquer ministério, determinando a alteração de dotação orçamentária, sem que haja qualquer estudo de impacto. Isso não é correto, é antidemocrático”, criticou o deputado Marcel Van Hatten, do Partido Novo. Embora seja o dono da caneta, Domingos Neto age em sintonia fina com os caciques do Legislativo. Em seu terceiro mandato, o deputado tem apenas 31 anos, mas o poder de um autêntico representante do alto clero. Ex-líder do PSD na Câmara e pupilo do presidente da sigla, Gilberto Kassab, o jovem atua também sob a orientação de Rodrigo Maia, de quem se aproximou pela semelhança de temperamentos. Os colegas o descrevem como diplomático e bom articulador político. Sem alarde, ele cresceu na estrutura de poder do Congresso e, para ascender à relatoria do Orçamento, obteve o aval do líder do Centrão, Arthur Lira, do PP de Alagoas.

A Constituição determina que compete privativamente ao presidente da República “exercer, com o auxílio dos ministros, a direção superior da administração federal”. Ou seja, o chefe do Executivo tem a incumbência de gerir o estado, observando as diretrizes que melhor lhe convierem e com o poder outorgado pelos eleitores. Em 2015, o Congresso começou a avocar para si parte dessa responsabilidade constitucional com a aprovação do Orçamento impositivo. A regra obriga o governo a pagar as emendas apresentadas pelos parlamentares. Desde então, a parcela do Orçamento gerida na prática pelo Legislativo foi ampliada e hoje há imposição para execução de emendas individuais, de comissão, de bancada e de relator. O que chama atenção, agora, são os valores envolvidos. Nunca os parlamentares tiveram tanto dinheiro à disposição para manejar. Pelo acordo selado nesta semana, e que será encerrado com a aprovação de três projetos de lei na semana que vem, o governo ficará com o controle de 101 bilhões de reais em receitas não carimbadas, ou seja, que podem ser usadas para investimentos. Caberá ao Congresso quase 20% do montante total à disposição do Poder Executivo.

O problema de entregar o destino de mais de 19 bilhões de reais nas mãos dos parlamentares é justamente para onde vai o dinheiro. As chamadas emendas parlamentares foram criadas para atuar como um instrumento para a melhoria das condições de vida da população em cidades com orçamento precário. No mundo ideal, abrir a possibilidade para que deputados e senadores definissem a destinação de parte dos recursos da União seria uma maneira de descentralizar a aplicação do dinheiro público. Mas, na prática, as emendas têm se revelado um duto para a corrupção. As emendas parlamentares estiveram no epicentro de vários escândalos recentes da política nacional. O primeiro deles foi o escândalo dos Anões do Orçamento, desvendado em 1993. A ele se somaram tantos outros que, no geral, funcionam de seguinte forma: o recurso previsto na emenda, antes mesmo de chegar ao seu destino final, é rateado entre a prefeitura, o parlamentar e o empresário que ficará responsável pela obra – normalmente alguém que contribuiu com a campanha do deputado ou do senador. Quando a obra é realizada, o que nem sempre acontece, o seu custo não ultrapassa, muitas vezes, sequer a metade do dinheiro liberado. Ou seja, além de superfaturada, a obra acaba sendo de qualidade duvidosa e, portanto, não se traduz, como deveria, em melhoria de vida da população.

Walterson Rosa/FolhapressWalterson Rosa/FolhapressRelator do Orçamento, Domingos Neto age em sintonia fina com os caciques
Os parlamentares estão confiantes de que o combinado será cumprido. Os três projetos de lei que ungem o acordo entre Legislativo e Executivo podem até enfrentar a resistência de alguns grupos e partidos, mas devem ser aprovados sem grande dificuldade na próxima semana. “A gente precisa acreditar na palavra dos senadores. Porque, se não, acabou, não se vota mais nada por um bom período”, argumentou um otimista Rodrigo Maia. Ao lado de Alcolumbre, o presidente da Câmara dos Deputados comandou as tratativas para manter sob a caneta do Congresso uma parcela expressiva do Orçamento. Parlamentares bolsonaristas estão entre os que bradam contra o acordo e ameaçam entrar em obstrução a fim de tumultuar a votação dos projetos de lei que regulamentam o Orçamento impositivo. Entre os aliados do Executivo que prometem dificultar a unção do acerto está o senador Major Olímpio, do PSL. Ele classificou os 19 bilhões de reais como “o preço da prostituição” e afirmou tratar-se de um “acordo macabro”. “Enquanto não mudarmos de presidencialismo para parlamentarismo, quem dirige o Poder Executivo é Jair Bolsonaro. Nós, do movimento Muda Senado, lutamos pela manutenção das garantias que o povo deu ao presidente para ser o gestor dos recursos públicos, com a estrutura do estado brasileiro, e não com esse compadrio safado que querem fazer aqui”, criticou o senador. “Quem é amigo do rei, quem é amigo do relator, dos presidentes das casas, terá sua região irrigada, para garantir eleições municipais. É uma safadeza que se faz com recurso público. O relator do Orçamento não pode ficar com o dinheiro total previsto para seis ministérios”, detonou o parlamentar.

Bolsonaro, no entanto, segue a exercitar o que tem feito de melhor desde que assumiu o poder: a prática do jogo duplo. Enquanto publicamente esgrima argumentos para parecer que se situa na trincheira oposta à do Congresso dos “chantagistas”, intramuros já prometeu controlar sua tropa de choque para evitar sobressaltos. A divulgação do PIB de 2019, na última quarta-feira, constituiu um choque brutal de realidade para o governo. No ano, o país cresceu apenas 1,1%, o menor percentual dos últimos três anos. A pauta econômica é a vitrine do presidente e, a persistirem os resultados desfavoráveis, a reeleição pode ficar sob risco, temem assessores palacianos. A retomada econômica só será acelerada com a aprovação de reformas. Por isso também, Bolsonaro acena ao Congresso, seguindo a orientação de seus auxiliares mais pragmáticos. É uma equação complicada. Se é verdade que é preciso negociar, também não é menos verdadeiro que ficar permanentemente refém de um Congresso inconfiável pode fazer com o que o governante, qualquer que seja ele, perca as rédeas do próprio governo. E a história é pródiga em ensinar no que isso pode dar. Com ou sem contornos de surrealismo.

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