Acordo ou desacordo?
Em 1929, no auge da grande depressão econômica mundial, o surrealista belga René Magritte pintou uma das obras mais simbólicas da história da arte. Batizado de “A traição das imagens”, o quadro traz a imagem de um cachimbo sobre uma inscrição em cuidadosa letra cursiva, que diz: “isto não é um cachimbo”. A desconexão completa entre as palavras e a figura gera conflito, desconforto e faz da obra um ícone do nonsense. Nesta semana, o presidente Jair Bolsonaro protagonizou um episódio de incongruência entre discurso e realidade comparável ao surrealismo da obra de Magritte. Mesmo depois de negociar com parlamentares e de destacar dois de seus principais ministros para participar das tratativas com as raposas mais felpudas do Congresso, Bolsonaro afirmou que o acordo não era acordo. Na hora de exibir o pacote já pronto para a militância, orientou seus auxiliares a recorrerem a um malabarismo retórico. O inconfessável acordão seria um “entendimento”. O uso de eufemismos são práticas usuais de governantes que se recusam a chamar as coisas pelo nome. Na verdade, pressionado por parte expressiva de seu eleitorado, que abomina o Legislativo e suas práticas, o presidente empreende mais um esforço para negar o irrefutável: ao fim e ao cabo, o Planalto cedeu, sim, à pressão do Congresso pelo controle da execução orçamentária. Sem partido e capacidade de articulação política, mais uma vez Bolsonaro capitulou.
O trato começou a ser colocado em marcha na última quarta-feira, 4. No início da noite, o Congresso aprovou por 398 votos a 2 a manutenção dos vetos de Bolsonaro ao Orçamento impositivo, que dava ao Parlamento o poder de definir a destinação de 30 bilhões de reais. Como para derrubar um veto são necessários os votos da maioria absoluta de ambas as casas (257 deputados e 41 senadores), a matéria não precisará ser analisada pelo Senado. A contraparte do acerto será sacramentada na semana que vem, a partir da votação de projetos enviados ao Legislativo pelo próprio governo que devolvem aos parlamentares a prerrogativa de gerir até 19,7 bilhões de reais. Mesmo assim, o presidente jogou para a plateia. “Não houve qualquer negociação em cima dos 30 bilhões. A proposta orçamentária original do governo foi 100% mantida”, comemorou Jair Bolsonaro em suas redes sociais, tentando criar uma cortina de fumaça para obnubilar o inconteste acerto com o Legislativo. “Independência entre os Poderes e respeito à democracia é o que o povo deseja no Brasil”, acrescentou.
O presidente pode ser useiro e vezeiro em usar a ficção para reconstruir a realidade ao sabor de seus interesses, mas o mundo real nem sempre comporta tamanho atentado aos fatos. Não é possível refutar, por exemplo, por mais que se queira criar uma narrativa capaz de alimentar a ilusão da torcida organizada, que dois de seus principais ministros estiveram na linha de frente das negociações com o Congresso. Na segunda-feira, 2, o ministro da Economia, Paulo Guedes, reuniu-se com o presidente do Congresso, Davi Alcolumbre, na residência oficial do Senado, para tratar do tema. O encontro durou mais de duas horas. Na manhã seguinte, Guedes cancelou uma reunião que teria com integrantes de entidades civis, como o Movimento Brasil Livre e o Vem pra Rua, para discutir as bases do acerto com o próprio Bolsonaro, no Palácio do Planalto. Um almoço entre os dois sacramentou a concertação entre o Executivo e o Legislativo, ratificada um dia depois em entrevista coletiva concedida por auxiliares de Guedes no Ministério da Economia. Na outra ponta, coube ao ministro da Secretaria de Governo, o general Luiz Eduardo Ramos, a combinação com os russos – no caso, o comando do Legislativo – a fim de evitar ruídos de qualquer natureza.
A Constituição determina que compete privativamente ao presidente da República “exercer, com o auxílio dos ministros, a direção superior da administração federal”. Ou seja, o chefe do Executivo tem a incumbência de gerir o estado, observando as diretrizes que melhor lhe convierem e com o poder outorgado pelos eleitores. Em 2015, o Congresso começou a avocar para si parte dessa responsabilidade constitucional com a aprovação do Orçamento impositivo. A regra obriga o governo a pagar as emendas apresentadas pelos parlamentares. Desde então, a parcela do Orçamento gerida na prática pelo Legislativo foi ampliada e hoje há imposição para execução de emendas individuais, de comissão, de bancada e de relator. O que chama atenção, agora, são os valores envolvidos. Nunca os parlamentares tiveram tanto dinheiro à disposição para manejar. Pelo acordo selado nesta semana, e que será encerrado com a aprovação de três projetos de lei na semana que vem, o governo ficará com o controle de 101 bilhões de reais em receitas não carimbadas, ou seja, que podem ser usadas para investimentos. Caberá ao Congresso quase 20% do montante total à disposição do Poder Executivo.
O problema de entregar o destino de mais de 19 bilhões de reais nas mãos dos parlamentares é justamente para onde vai o dinheiro. As chamadas emendas parlamentares foram criadas para atuar como um instrumento para a melhoria das condições de vida da população em cidades com orçamento precário. No mundo ideal, abrir a possibilidade para que deputados e senadores definissem a destinação de parte dos recursos da União seria uma maneira de descentralizar a aplicação do dinheiro público. Mas, na prática, as emendas têm se revelado um duto para a corrupção. As emendas parlamentares estiveram no epicentro de vários escândalos recentes da política nacional. O primeiro deles foi o escândalo dos Anões do Orçamento, desvendado em 1993. A ele se somaram tantos outros que, no geral, funcionam de seguinte forma: o recurso previsto na emenda, antes mesmo de chegar ao seu destino final, é rateado entre a prefeitura, o parlamentar e o empresário que ficará responsável pela obra – normalmente alguém que contribuiu com a campanha do deputado ou do senador. Quando a obra é realizada, o que nem sempre acontece, o seu custo não ultrapassa, muitas vezes, sequer a metade do dinheiro liberado. Ou seja, além de superfaturada, a obra acaba sendo de qualidade duvidosa e, portanto, não se traduz, como deveria, em melhoria de vida da população.
Bolsonaro, no entanto, segue a exercitar o que tem feito de melhor desde que assumiu o poder: a prática do jogo duplo. Enquanto publicamente esgrima argumentos para parecer que se situa na trincheira oposta à do Congresso dos “chantagistas”, intramuros já prometeu controlar sua tropa de choque para evitar sobressaltos. A divulgação do PIB de 2019, na última quarta-feira, constituiu um choque brutal de realidade para o governo. No ano, o país cresceu apenas 1,1%, o menor percentual dos últimos três anos. A pauta econômica é a vitrine do presidente e, a persistirem os resultados desfavoráveis, a reeleição pode ficar sob risco, temem assessores palacianos. A retomada econômica só será acelerada com a aprovação de reformas. Por isso também, Bolsonaro acena ao Congresso, seguindo a orientação de seus auxiliares mais pragmáticos. É uma equação complicada. Se é verdade que é preciso negociar, também não é menos verdadeiro que ficar permanentemente refém de um Congresso inconfiável pode fazer com o que o governante, qualquer que seja ele, perca as rédeas do próprio governo. E a história é pródiga em ensinar no que isso pode dar. Com ou sem contornos de surrealismo.
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