MarioSabino

O menino e a peste

06.03.20

Aos doze anos, eu achava que morreria de meningite meningocócica. Uma epidemia da doença grassava na cidade de São Paulo, o mundo sabia, mas o regime militar não deixava os jornais noticiarem. Saiu o general Emílio Garrastazu Médici, entrou o general Ernesto Geisel, e o meu medo de morrer de meningite meningocócica aumentou. Não só a epidemia piorara exponencialmente — houve mês com mais de 2 mil novos casos registrados —, como os jornais tiveram permissão para falar no assunto, ainda que com restrições. Até que diante da gravidade do quadro geral que atingia principalmente crianças, o regime militar concluiu que a censura à imprensa, total ou parcial, não resolvera o problema de saúde pública e importou vacinas da França.

Essas vacinas nunca haviam sido testadas massivamente, e não demorou para que se espalhasse o boato de que nós, os vacinados, morreríamos como cobaias. Apesar desse outro medo disseminado, lembro da alegria de receber a vacina contra a meningite meningocócica, com aquele revólver que paradoxalmente infundia vida, numa agência dos Correios transformada em posto de saúde improvisado. Foi um dos dias mais felizes da minha infância (ainda não haviam inventado a pré-adolescência), o que dá o grau da minha felicidade desde sempre.

Antes de tomar a vacina, eu adotara precauções próprias para evitar a meningite meningocócica. Passei a rezar mais do que o estabelecido pelos padres com os quais eu era obrigado a me confessar uma vez por mês (a porta da igreja era encimada pela frase “sinite parvulos venire ad me”, popularizada como “vinde a mim as criancinhas”, que eu julgava premonitória da minha infecção meningocócica). Como Deus não fazia por menos de quatro pecados, e eu não era um pecador como hoje, eles eram sempre má-criação, desobediência, troca de sopapos com os meus irmãos e sonsidade. No limite. A penitência era proporcionalmente branda, mas, com medo da doença, lancei mão do meu livre-arbítrio e dobrei a dose de pai-nossos, ave-marias e atos de contrição receitados pelos confessores. Passei a ter pensamentos impuros somente depois de tomar a vacina — e tendo a crer que ela me livrou das confissões, além dos meningococos. A ciência destrói a religião.

Experimentei, quando menino, a epidemia de meningite meningocócica na década de 1970 como se fosse um europeu assombrado pelas pestes que dizimavam milhões de pessoas na Idade Média e séculos imediatamente posteriores. A palavra “peste” é de exatidão rara. Expressa, sem atenuações, o sentimento que mistura ameaça, horror, medo, paranoia e superstição causado pelo mal invisível que se precipita para nos ceifar a vida. O termo “praga” é bom, mas pode ser aplicado a insetos e animais em excesso. Não tem a mesma força. Os vocábulos médicos “epidemia”, “pandemia” e “surto” são eufemismos higienizados. A ciência destrói a língua.

Quando as pestilências eram associadas a castigo divino, bem antes da revolução sanitária, ocorria um efeito interessante: ao desaparecer, elas deixavam as pessoas moralmente piores, como se merecedoras de mais punição. A licenciosidade imperava durante certo tempo. No seu relato sobre a peste de Milão, que dizimou boa parte da população da cidade em 1630, o cardeal Federico Borromeo dedica um capítulo ao tema. Ele diz que “antes de mais nada, esse mal pode ser causado por uma certa alegria que explode inoportunamente em função do perigo evitado, e os sentidos ávidos parecem querer ressarcir a perda desses prazeres dos quais foram privados, como depois da fome os homens desejam a comida com excessiva intemperança. Outra causa pode ser a dissolução da disciplina civil, que costuma ser a melhor guardiã dos costumes. De resto, a própria disciplina civil foi dissolvida pelo fato de que, seja a mulher sem o marido, sejam os filhos sem os pais, abandonaram os freios e aos magistrados não foi mais lícito aplicar a lei”. Federico Borromeo e a peste de Milão entraram para a literatura via Alessandro Manzoni, em Os Noivos, romance histórico publicado em 1827. Era leitura obrigatória nas escolas italianas, assim como A peste nas escolas francesas. Não sei se continuam a ser. Devem ler resumos mastigados, como ocorre com os clássicos brasileiros.

A peste é um romance do francês Albert Camus, autor que já visitou esta coluna. Foi publicado em 1947. Com a epidemia de coronavírus, livrarias na França e na Itália esgotaram os seus estoques de exemplares da obra. A história é sobre uma peste bubônica que se alastra na cidade de Oran, na Argélia então francesa. Tudo começa com o doutor Bernard Rieux que tropeça num rato morto na saída do seu consultório. Dois dias depois, “as fábricas e os depósitos vomitaram centenas de cadáveres de ratos. Em alguns casos, foi necessário acabar de matar os bichos, pois sua agonia era demasiado longa (…) A partir do quarto dia, os ratos começaram a sair para morrerem em grupos. Dos porões, das adegas, dos esgotos, subiam em longas filas titubeantes, para virem vacilar à luz, girar sobre si mesmos e morrer perto dos seres humanos. À noite, nos corredores ou nas ruelas, ouviam-se distintamente os seus guinchos de agonia”.

Apesar dos ratos mortos e dos primeiros homens a sucumbir à doença, o cotidiano insiste em manter a sua marcha monótona em Oran, com todos se recusando a ver o que estava diante dos olhos. O panorama só muda quando se inicia a empilhar cadáveres humanos e a cidade entra em quarentena, como a chinesa Wuhan. Ao final, epidemia debelada, enquanto os cidadãos festejam, o doutor Bernard Rieux lembra o que a multidão ignorava: “o bacilo da peste não morre nem desaparece nunca, pode ficar dezenas de anos adormecido nos móveis e na roupa, espera pacientemente nos quartos, nos porões, nos baús, nos lenços e na papelada. E (Rieux) sabia, também, que viria talvez o dia em que, para desgraça e ensinamento dos homens, a peste acordaria os seus ratos e os mandaria morrer numa cidade feliz.”

A Peste é interpretado como metáfora da França ocupada pelos nazistas, na Segunda Guerra Mundial, e do totalitarismo que se mantém em estado latente, continuamente à espreita. Ao ler o livro, no entanto, o que reencontrei nele foi mesmo a minha angústia de menino de doze anos com medo de morrer de meningite meningocócica. Se o medo do coronavírus está levando um monte de gente a comprar A Peste, trata-se de efeito colateral positivo. Lave as mãos, não tussa ou espirre sem proteger a boca com o cotovelo — e leia ou releia o livro de Albert Camus. A literatura às vezes funciona como remédio.

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  1. Mário é um iluminado! Suas publicações além de nos informar são também uma aula de literatura,jornalismo e história. "Camus" não gostar de Sabino?

  2. 1979. Também fui vítima da meningite, mas era novo demais para pensar em morte, pois tinha cinco anos. Ainda hoje me lembro de cenas do Hospital Emílio Ribas: outras duas crianças ao meu lado (guardei na memória que eram irmãos e gêmeos) no quarto; um corredor; soro, e uma das minhas tias me observando de uma janelinha, na porta. Mas, a imagem mais nítida é o presentinho de Natal que ganhei pó lá: um caminhãozinho carregando bois.

  3. Mário, fui leitor diário do Antagonista desde o primeiro posto, mas agora quero me livrar dessa revista imediatamente, é um escárnio o que vocês fizeram com a maioria de seus leitores.....chamam todos brasileiros q apoiam esse governo de bolsonaristas, gado, milícia digital, é revoltante. Afirmo e o tempo dirá, 90% não é nada disso, são apenas brasileiros desesperados para apoiar quem erra menos... vocês apodreceram. .. UM FAVOR: FACILITE O CANCELAMENTO DE MINHA ASSINATURA DE IMEDIATO!

    1. Você me mantém refém dessa publicação decadente.

  4. É sempre num clima máximo de entusiasmo que aguardo por todas as sextas-feiras, quando, então, leio e releio os seus textos, incansavelmente!! Parabéns, sempre!!!

  5. Me lembro da epidemia de meningite. Me obrigou acfucar sen sair de casa algum tempo. Mas nessa época eu não saía muito, afinal.

  6. Nossa como vc gosta de falar de vc.... já sei o q vc gosta de ler , suas doenças, me fala Qto vc calça? Número da sua camisa? Fala sério....

  7. Brilhante… Seria bom ter 1 Mário Sabino para cada Milton Hatoum que aparece. Infelizmente a mediocridade se propaga mais rápido que o COVID-19 nesse país E por mais que selecionemos, acabamos nos deparando com colunistas militantes por todo lado

  8. Todos eram mais felizes, pois não tinhamos médicos, tinha a simpatia, o chá da vovó, hoje temos a internet, a aids, o conavirus não sou saudosista, em compensação somos uma sociedade de massa do politicamente correto.

  9. Na época ,eu colocava um saquinho com alho,sal grosso,cânfora e pimenta do reino em grãos,costurava tipo uma pequena almofadinha fazia varias,prendia com presilha aí meus filhos prendiam nas fardas para ir à escola, até que dava certo ,era um ritual dos antigos,meus filhos obedeciam ,imagine se fosse hoje,seria bem estranho.

  10. Também me lembro bem da “peste” de meningite. A fila para enfrentar o revólver da vacina, vigiada pelas freiras para que ninguém escapasse, me vem à memória como uma multidão ,num dia escuro , aglomerada para exorcizar o demônio que , se não matase, iria nos deixar marcas para o resto da vida... e, para completar a tragédia, tinha o filme “Marcelino pão e vinho “. Era o meu futuro como a única criança que não levantava o braço na fila quando a diretora perguntava que queria ser freira!

  11. Lembro-me muito bem dessa epidemia de miningite. Os Jogos Abertos do Interior, tradicional olimpíada entre cidades do interior paulista foi suspensa naquele ano, por conta do risco de disseminação, e grande parte da população nem sabia porque estava havendo aquela suspensão dos jogos. Soube-se bem depois

    1. Mais importante foi o cancelamento dos jogos Panamericanos de São Paulo. Acho que foi em 1974, e os jogos sediados na Colômbia.

  12. Caro sonsidade. Sempre demonstras uma cultura invejável. Acho que antes de você nascer, aos 18 anos li Os Noivos de A. Manzoni. Me foi pedido um trabalho, nota 10 foi lido até na festa fim de ano.Até fiquei sem graça. Quanto ao A, Camus já reli umas dez vêzes nesta minha longa vida. Felizmente continuo a ler sempre. Mário, és um poço de literatura, muito rico.

  13. Seu texto me remeteu a 1978. Eu tinha filhos pequenos; o mais velho, a completar 5 anos, adoeceu, com febre alta. Precisou fazer aquele exame que tira líquido da espinha para teste de meningite meningococica. Fiquei preocupada, claro, mas não tanto quanto deveria. Talvez exatamente porque o governo obrigava os meios de comunicação a não informar o que ocorria de fato. O teste deu negativo e eu tratei de organizar a festinha de aniversário dele, ainda febril. Se fosse hoje, eu surtaria!

    1. Também me lembro da pistola da vacina contra meningite. Excelente texto.

  14. É bom ser intelectual e construir narrativas com histórias, textos e livros. O verniz dos conceitos das épocas iludem as personagens das ficções e da realidade. É um deleite para os eruditos.

  15. Os chineses de Wuhan descobriram que podem nunca ler ou voltar a ler "A Peste". Estão com a sua ocupação autoritária por décadas a obliterar a visão. A notícia "vazou" por obra e graça do Santo Espírito e da santa Internet. A política destrói a leitura. (A saúde nem tanto)

  16. Mário, a infância da minha geração foi assombrada pela poliomielite - paralisia infantil. Albert Sabin criou a vacina na década de 60, renunciou aos direitos da patente o que possibilitou o combate ao vírus no mundo. Perguntei a minha zelosa mãe o que ela fazia para nos previnir. "Higiene, boa alimentação e muita, muita muita oração". Fomos salvos mas infelizmente muitos da minha geração foram acometidos por essa terrível doença e hoje as novas gerações nem sabem quem foi Albert Sabin.

    1. Se estamos recordando, fui aluna de um ex-assessor do Sabin, respeitadissimo, que nos afirmava, categoricamente, que fora outro da equipe o inventor da vacina. Demitido, foi ela usurpada pelo.Sabin, que para evitar processo não a assumiu; se fez de bom samaritano. Histórias dos velhos tempos...

  17. até hoje confiava em tudo q vc escrevia...mas agora acabei de ler o q vc escreveu sobre a vacina de meningite...q seria insegura e perigosa...gentiiii...trabalhei exatamente com isso e sei q a vacina era francesa e segura...um simples açucar contendo as proteinas do meningococo... Mario Sabino seja mais cuidadoso...afinal jornalista bom informa certo!

    1. Querida Nayla, releia o texto tom mais atenção, faltou-lhe entender aspectos sutis.

    2. É impressionante como até aqui, nesses comentários, fica justificado porque o Brasil fica em penúltimo lugar no exame global Pisa, de interpretação de texto. A moça aí☝🏿prova que ou leu apressadamente - e isso é possível - ou é brasileira mesmo..tira zero na interpretaçào de texto no Pisa.

    3. Pelo amor de Deus criatura! Você leu quando ele fala no boato??? Você sabe o que é boato?

  18. Pois é, Mestre Sabino. Tudo a ver: Enquanto lá fora Governos fecham museus; são cancelados eventos esportivos, culturais e religiosos e são fechadas até Escolas... AQUI, mesmo após o gigantesco fator de risco Carnaval, alguns canalhaS e seus paus mandado$, Convocam a MULTIDÃO.... e o Governo apoia, calado ou não. O presidiário Lula, leve e solto, visita o Papa na “”Itália””e ainda por cima circula com a comitiva pela Europa, tal como a outra coisa, chamada Dilma.

  19. Sabino.... como eu gosto do seu jeito de ver... entender... e escrever suas histórias... É como se eu estivesse participando das suas emoções e vivências...

  20. Como sempre, excelente o texto de Sabino. Além da refinada cultura, chama a atenção a facilidade de comunicação. Também vivi parte deste medo à época da epidemia de meningite. Para mim o que marcou foi a visão da porta do Emilio Ribas. E não é que, anos depois quando para lá fui como estudante de medicina, sentia a mesma emoção estranha ao passar por aquele portão.

  21. Fiz os exames manipulando liquor e encaminhando para o Emílio Ribas. FHC fez o favor de retirar a insalubridade para Profissionais de Saúde. A única cabeça sensata aqui precisa entender que ficar no meio na atual conjuntura é apoiar a volta de tudo como era antes no quintal de Abrantes. As patadas do Presidente são bem mais amenas que do Gal Nilton Cruz. Trocar o Parlamentarismo em 1889 por República deu nessas mazelas. Ja viu discursos de Ruy Barbosa pôs República? Site do Senado Íntegra.

  22. Literatura e sanitarismo. A China sempre eclodindo doenças inéditas e a imprensa ignora. Assisti vídeo sobre mercado a céu aberto chinês e é d estarrecer a falta total d higiene: bichos domésticos e selvagens destrinchados lado a lado em mesas comuns, sujeira pra todo lado, luva nenhua, máscara nenhuma, nem pias. Enquanto houver descaso assim podemos nos preparar a ondas e ondas d perdigotos letais

  23. Sou dessa época. Meu pai morria de medo da epidemia e por isso fiquei sem ir a escola 1 mês. Apesar da falta de notícias, o medo era real. Todos nós sabíamos.

  24. A doença é um caminho para o conhecimento em todos os sentidos. Bem estar e segurança ao homem con hábitos simples de higiene. Somos responsáveis. No Brasil há diversos riscos comuns que nos afetam como uma bala perdida, um desmoronamento, as inundações, as agressões, as drogas, a fome, a dengue, o sarampo e agora o Coronavirus. O ministério da saúde me surpreendeu está trabalhando muito bem. Parabéns governo Bolsonaro.

    1. Putz, eu adorei ! Maneira heterodoxa de não ser monotemático

    1. Você foi muito feliz no seu artículo para não dizer genial é muito engraçado Maria Isabel PEREZ

    2. Qdo vc não sabe eh igual a fome, dorme q passa. Suas colocações torna a leitura agradável, tds q viveram à época sentiram a dor sem a ter. Nossos pais aos postos de saúde com a gurizada sob “custódia” e as “pistolas” nos livrando do mal, boas lembranças e aki estamos para nos deliciar com suas travessuras culturais.

    3. Lembro bem das filas longas para tomar a vacina contra meningite. Acho que foram 3 doses. O interessante é que eu não lembro de ter medo. Lembro somente de, ao ouvir a descrição dos sintomas, sentia-os imediatamente todos, numa resposta psicológica. Em poucos minutos estava correndo e brincando, sem me preocupar com nada. Acredito que meus pais se preocuparam. Bons tempos que a preocupação não era minha.

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