O mistério da ‘Abin paralela’
Desde dezembro, quando a deputada Joice Hasselmann disse à CPMI das Fake News ter ouvido falar do plano de Carlos Bolsonaro de criar uma “Abin paralela” dentro do Palácio do Planalto, vaga por Brasília a suspeita sobre o uso da máquina de inteligência estatal para satisfazer interesses políticos e pessoais do clã presidencial. O objetivo do aparato proposto pelo filho 02 do presidente da República seria montar dossiês contra adversários e monitorar jornalistas. Na segunda-feira, 2, Gustavo Bebianno, ex-ministro palaciano, não só confirmou o que a deputada havia dito, como agregou detalhes à história durante uma entrevista no programa Roda Viva, da TV Cultura. Segundo Bebianno, em “um belo dia”, Carluxo apareceu com os nomes de “um delegado federal e três agentes” para atuar na tal agência paralela. A justificativa era a desconfiança do filho de Bolsonaro em relação à Abin oficial. A ideia, disse o ex-ministro, teria sido levada ao conhecimento do general Augusto Heleno, chefe do Gabinete de Segurança Institucional da Presidência, que ficou preocupado, mas deixou o tema a cargo de outro general, Carlos Alberto dos Santos Cruz, então titular da Secretaria de Governo, e do próprio Bebianno. Os dois ministros, então, teriam ido ao próprio presidente da República e feito um alerta: se o plano fosse colocado em prática, Jair Bolsonaro estaria correndo risco de sofrer um processo de impeachment. “De forma passiva, desviando, (o presidente) não enfrentou o assunto, e a coisa foi cozinhada”, afirmou Bebianno.
O ex-ministro diz que a ideia de Carlos surgiu logo no início da gestão de Bolsonaro. Além do presidente, do grupo que tratou do assunto só Heleno ainda está no governo. Bebianno foi defenestrado em fevereiro do ano passado após uma briga pública com o próprio Carluxo. Santos Cruz, até então homem de confiança e amigo pessoal de Bolsonaro, caiu em junho, na esteira de um print falsificado levado ao conhecimento do presidente com mensagens de celular em que ele aparecia falando mal do chefe e de seu filho. Pouco antes, em maio, Carlos emplacou no comando da Abin oficial o delegado federal Alexandre Ramagem, de quem ficara amigo ainda na campanha, quando o policial chefiou a equipe de segurança do então candidato Bolsonaro. Até aquele momento, Ramagem era funcionário da pasta do próprio Santos Cruz. Na PF desde o início dos anos 2000, o delegado passou pela Superintendência de Roraima, onde foi responsável pela delegacia de combate ao crime organizado. De sua passagem por lá, não há notícia sobre qualquer atuação na área de inteligência. Em 2011, mudou-se para Brasília e, na sede da PF, ocupou cargos pouco destacados até ser escalado para integrar as equipes responsáveis por grandes eventos, como a Copa do Mundo e os Jogos Olímpicos. Em 2017, ganhou mais visibilidade ao atuar na Lava Jato do Rio de Janeiro, em especial na Operação Cadeia Velha, que mirou desvios milionários envolvendo empresários e deputados do estado. No ano seguinte, foi designado para coordenar a segurança do então candidato Jair Bolsonaro. Foi então que os laços com a família hoje presidencial se estreitaram.
Na prática, a agência recebe informações de vários outros órgãos, como a própria PF, a Receita Federal, o Coaf e o Banco Central, analisa e produz relatórios, sempre sigilosos, que são enviados ao Planalto. Em paralelo, deve estar atenta a informações relevantes angariadas a partir do trabalho de campo de seus espiões, em atuação dentro e fora do país, que contam com os préstimos de informantes generosamente remunerados com nacos da verba secreta anualmente destinada ao serviço. Tudo isso — ao menos é o que se espera – deve ser feito sempre de acordo com os ditames legais, previstos na Constituição Federal. A produção efetiva da Abin, porém, é alvo de questionamentos e queixas há tempos. Alguns episódios da história recente são eloquentes. Os nossos espiões não descobriram, por exemplo, que a americana NSA, uma das várias agências de inteligência a serviço do governo americano, espionou por longo período o governo brasileiro. Nem informaram o Planalto com a necessária presteza de que Evo Morales ocuparia uma planta da Petrobras em solo boliviano. Um agente brasileiro a serviço em Caracas teve o apartamento invadido pelo serviço secreto chavista, que lhe roubou o computador pessoal e seu plano de trabalho no país vizinho. Isso sem falar no envolvimento de espiões (ou arapongas, para usar um epíteto que ganhou fama ao longo dos anos) em escândalos, como grampos ilegais.
Não bastassem as confusões e as queixas recorrentes que pesam sobre o trabalho dos agentes da própria Abin, os casos recentes que envolvem a nomeação de policiais para a agência mostram o potencial explosivo dessa mistura. Ainda no início de seu governo, Lula nomeou para o comando do órgão o delegado Mauro Marcelo de Lima e Silva, da Polícia Civil de São Paulo. Não deu certo. Houve reação interna à escolha. Não faltava quem dissesse que o delegado estava lá para executar serviços para os chefes petistas – ele negava, obviamente. A certa altura, Lima e Silva enviou um e-mail a seus subordinados condenando as suspeitas da CPI dos Correios sobre o envolvimento de espiões da agência nas denúncias que resultaram no escândalo do mensalão. A mensagem, na qual ele se referia aos parlamentares da comissão como “bestas-feras em pleno picadeiro”, vazou. Fogo amigo, evidentemente. O delegado, que completava um ano no cargo, caiu. Mais tarde, Lula nomeou para o posto o delegado Paulo Lacerda, homem de sua confiança que havia chefiado a Polícia Federal. Desta feita, a confusão foi ainda maior. Lacerda foi acusado de montar dentro da Abin uma estrutura paralela para servir à Operação Satiagraha, do delegado Protógenes Queiroz, seu pupilo. Seguiram-se suspeitas de grampos ilegais e de atuação clandestina de oficiais pagos pela agência.
No ano passado, o orçamento da Abin foi de 713 milhões de reais. Para este ano, a agência terá ao menos outros 650 milhões para gastar. O órgão tem hoje 1,3 mil funcionários, incluindo os que atuam em áreas administrativas e os profissionais de campo. Em resposta a um pedido de informações de Crusoé sobre as declarações de Gustavo Bebianno acerca da tal “Abin paralela”, a Secretaria de Comunicação da Presidência da República informou que não se manifestaria sobre o assunto. Procurados, o GSI e a Abin também silenciaram. Assim como nos Estados Unidos, no Brasil cabe a uma comissão do Congresso Nacional fiscalizar o trabalho dos órgãos de inteligência, incluindo a Abin. Só que, por aqui, a tarefa não é cumprida a contento. Até mesmo as reuniões do grupo, composto por deputados e senadores, são raras. Atualmente, a comissão é presidida pelo senador Nelsinho Trad e tem como vice-presidente o deputado Eduardo Bolsonaro, irmão de Carlos.
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