MarioSabino

O médico e o monstro

13.03.20

Eu estava almoçando no domingo passado, quando recebi de uma fonte do Judiciário a sentença condenatória que confirmava que a transexual Suzy, entrevistada uma semana antes por Drauzio Varella no Fantástico, da Rede Globo, havia cometido um crime terrível, em 2010: raptado, estuprado e estrangulado um menino de 9 anos, em São Paulo. Como se não fosse suficiente, ela havia deixado o corpo da criança putrefando na sua sala, durante dois dias, até depositá-lo à porta da casa da família desesperada. Embasados pelo documento, publicamos a notícia em O Antagonista e não demorou para que se tornasse uma das mais lidas e comentadas da história do site. Para se ter ideia, foi mais lida do que a da soltura de Lula, no ano passado.

Compreende-se: Suzy não foi apenas entrevistada num dos programas mais tradicionais e de maior audiência da TV brasileira. Ela também foi abraçada por Drauzio Varella, que se compadeceu da solidão de Suzy. A condenada apareceu no Fantástico como personagem de uma reportagem sobre o tratamento dispensado a transexuais nas prisões nacionais. O abraço em Suzy viralizou nas redes sociais, como exemplo de bondade politicamente correta. A condenada recebeu mais de duas centenas de cartas de solidariedade, e uma vaquinha foi organizada para ajudá-la. Os telespectadores, contudo, só souberam do crime cometido por Suzy no domingo seguinte.

Um vendaval de indignação varreu as redes sociais. Muita gente se sentiu lograda por ter sido levada a manifestar solidariedade a quem foi definido como um monstro. A coisa adquiriu tal vulto que Drauzio Varella divulgou uma nota curta, na qual afirmava: “Há mais de 30 anos, frequento presídios, onde trato da saúde de detentos e detentas. Em todos os lugares em que pratico a Medicina, seja no meu consultório ou nas penitenciárias, não pergunto sobre o que meus pacientes possam ter feito de errado. Sigo essa conduta para que meu julgamento pessoal não me impeça de cumprir o juramento que fiz ao me tornar médico. No meu trabalho na televisão, sigo os mesmos princípios. No caso da reportagem veiculada pelo Fantástico na semana passada, não perguntei nada a respeito dos delitos cometidos pelas entrevistadas. Sou médico, não juiz.”

Nota divulgada, foi a vez de o Fantástico manifestar-se: “O quadro do Dr. Drauzio Varella foi sobre uma situação que o Estado brasileiro precisa enfrentar: mulheres trans cumprem as penas pelos crimes que cometeram em meio a presos homens, o que gera toda sorte de problemas. O crime das entrevistadas não foi mencionado, porque este não era o objetivo da reportagem. Foi divulgada apenas uma estatística geral sobre eles. O quadro gerou muita empatia no público mas também críticas exatamente por não mencionar os crimes.”

Na nota do Fantástico, havia uma imprecisão logo notada pelo site Teleguiado: na reportagem de Drauzio Varella, mencionou-se o motivo da condenação de Lolla, a outra transexual entrevistada. Ela havia sido sentenciada por roubo. Só o crime terrível de Suzy fora omitido. Essa imprecisão, aliada ao tom da nota de Drauzio Varella, alimentou ainda mais a tormenta. A pergunta mais comum dos indignados foi: “ninguém vai pedir desculpas ou abraçar os pais do menino estuprado?” A fatia da militância bolsonarista, por sua vez, acusou Drauzio Varella de fazer a apologia da chamada ideologia de gênero. Do lado dos defensores de Drauzio Varella, vozes levantaram-se para dizer que ele era um humanista e que seguia os passos de Jesus Cristo. A militância petista acusou a direita brucutu de crucificar um homem bom que ousara abraçar fraternalmente uma transexual em horário nobre.

As desculpas vieram na terça-feira desta semana. Drauzio Varella divulgou um vídeo no qual diz que o crime bárbaro de Suzy havia sido uma revelação também para ele. Repetiu que entrara na cadeia como médico, e que o seu olhar de médico não se restringia apenas aos momentos em que atendia pacientes. E que era assim havia mais de 50 anos. Pediu, no entanto, desculpas à família do menino que havia sido involuntariamente envolvida no caso e, em seguida, disse que as estatísticas mostravam que a imensa maioria dos transexuais presos havia sido condenada por roubo e furto — e que a maneira como a matéria apresentara Suzy dava a entender que ela estava na cadeia por esse tipo de crime. Quanto ao abraço, Drauzio Varella afirmou que ficou com pena da transexual depois de ela contar que não recebia visitas havia sete, oito anos (fato que, ao que tudo indica, nada tem a ver com a sexualidade de Suzy, observo, mas com a magnitude do crime por ela cometido). Na noite da mesma terça, o vídeo de Drauzio Varella foi exibido no Jornal Nacional e William Bonner leu uma nota na qual a Rede Globo e o Fantástico pediam igulamente desculpas à família do menino assassinado e aos telespectadores. A nota afirmava ainda que “apenas depois da exibição do quadro” o Fantástico “tomou conhecimento da gravidade do crime” cometido pela transexual.

Suponho que um produtor do programa, encarregado de encontrar um bom personagem para a reportagem sobre transexuais presos, tenha omitido o crime de Suzy aos editores do Fantástico — e, consequentemente, a Drauzio Varella. É uma suposição, repito. Paro por aqui, visto que os problemas internos do departamento de jornalismo da Globo não são da minha conta. Nem a escolha das pautas que vão ao ar. Gostaria apenas de me deter sobre uma questão que julgo essencial: Drauzio Varella entrevistou Suzy como médico ou como jornalista?

Ele enfatizou este ponto nas duas respostas que deu: protagoniza o seu quadro no Fantástico na condição de médico, não na de jornalista. Acho que, na verdade, ele vive uma dualidade. É jornalista na televisão e só volta a ser médico quando o entrevistam, não importa o tipo de veículo, como ocorreu na edição passada da Crusoé. Pode-se dizer que o maior valor jornalístico de Drauzio Varella, para fazer reportagens sobre doenças e temas relacionados a saúde, está na sua credibilidade como médico de ótima formação e reconhecido pela sua competência. Pode-se acrescentar que o maior valor jornalístico de Drauzio Varella, para fazer reportagens sobre presos de qualquer gênero, está na sua credibilidade como escritor que, a partir da sua posição médica em presídios, interessou-se pelas biografias de criminosos que cumpriam pena e escreveu sobre elas. Onde estava a medicina na matéria sobre os transexuais?

Se tivesse se comportado como jornalista que é, Drauzio Varella teria se informado sobre o currículo criminal de Suzy. E talvez a houvesse descartado para a sua matéria, uma vez que, como disse ele, a maior parte dos transexuais presos cometeu roubo e furto, não estupro e assassinato — o que faz de Suzy um ponto muito fora da curva para uma reportagem a respeito do tema, e que só serviu para reforçar o estereótipo de transexuais pedófilos. Se tivesse se comportado como jornalista que é, Drauzio Varella teria resistido ao impulso de abraçar um entrevistado. Há de se manter uma distância prudente. Se tivesse se comportado como jornalista que é, Drauzio Varella não teria se visto na situação de divulgar nota e pedir desculpas em vídeo.

Tratar câncer, operar cérebro, sequenciar coronavírus e transplantar coração são atividades muito mais úteis e nobres do que fazer reportagens e escrever artigos como este. O jornalismo será sempre uma atividade menor e vergonhosa, mesmo quando exercido por humanistas como Drauzio Varella. Fazemos o trabalho sujo, como eu já disse em outro momento, porque alguém precisa fazê-lo, afinal de contas. Somos limpadores de latrinas que se acham espertos. Em O Jornalista e o Assassino — Um Crime Choca os Estados Unidos e Provoca uma Reflexão sobre a Ética Jornalística, reportagem para a revista The New Yorker que virou livro, a americana Janet Malcolm sintetiza impiedosamente: “Qualquer jornalista que não seja demasiado obtuso ou cheio de si para perceber o que está acontecendo sabe que o que ele faz é moralmente indefensável. Ele é uma espécie de confidente, que se nutre da vaidade, da ignorância ou da solidão das pessoas.”

Mesmo limpadores de latrinas como nós, contudo, tem de obedecer a regras. É isso que Janet Malcolm, aliás, mostra no seu livro. Eu abraçaria Janet Malcolm, por piedade dela e de mim mesmo.

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