Ting Shen/Xinhua

O vírus da desglobalização

Com fronteiras fechadas e países em transe sob o temor de uma recessão mundial, o novo coronavírus testa os limites da globalização
20.03.20

Em pouco mais de uma semana, ao menos 92 países — quase a metade das nações do mundo — anunciaram o fechamento parcial ou total de suas fronteiras para conter a pandemia do novo coronavírus, que causa a Covid-19. Estados Unidos e Canadá concordaram em uma restrição recíproca para todo tipo de tráfego não essencial. A União Europeia cerrou todas as fronteiras externas para não residentes por 30 dias — e internas também. Até lugares remotos, como o Djibouti, o Uzbequistão e o Iêmen entraram na onda. Na América Latina, o Brasil foi um dos últimos países a bloquear suas fronteiras. Uma portaria publicada na quarta, 18, proibiu a entrada de venezuelanos. Quem desobedecer será deportado imediatamente. Um dia depois, o governo brasileiro fechou os limites com outros oito países vizinhos.

A multiplicação acelerada das barreiras entre os países não tem paralelo na história e marca uma reversão no fenômeno da globalização. É como se as fronteiras, que nas últimas décadas foram sendo abolidas na prática e, assim, repetidamente ignoradas pelos cruzeiros, aviões e navios cargueiros e de turismo, de repente retomassem a importância que tiveram em um passado que parecia sepultado. Causou choque na Europa, por exemplo, a decisão unilateral da Alemanha de controlar as suas fronteiras com países que aderiram ao Acordo de Schengen. Se era para ser um espaço único nas alegrias e tristezas, por que fechar?

As primeiras fronteiras físicas foram criadas pelos impérios, para impedir invasões de bárbaros. Resquícios desse período são a Muralha da China, idealizada pelo imperador Qin Shi Huang no século 3 a.C., e os muros de pedra, valas, fortalezas e torres de vigilância construídos pelos imperadores romanos na Europa. Com a queda do Império Romano, em 476 d.C., vários reinos surgiram no espaço que hoje abriga a União Europeia. Ao longo dos séculos seguintes, apesar das guerras e disputas por colônias, seus monarcas desenvolveram certo sentido de coexistência, o que acabaria moldando uma nova ordem para todo o planeta. “Diferentes dinastias e nacionalidades em competição eram percebidas não como uma forma de caos a ser eliminado, mas, na visão idealizada dos estadistas europeus, como um mecanismo intrincado tendendo ao equilíbrio que preservava os interesses, a integridade e a autonomia de cada povo”, escreveu o diplomata americano Henry Kissinger, em seu livro Ordem Mundial. O estado-nação nasceu então como um território devidamente delimitado por fronteiras, sobre o qual um governo exerce soberanamente o seu poder. No século XVII, esse entendimento foi formalizado nos acordos conhecidos como a Paz de Vestfália.

No século XX, a entrada tardia de alguns países no tabuleiro do poder colonial deflagrou duas guerras mundiais. Nas décadas que se seguiram, não apenas foi possível evitar uma terceira guerra global como a paz foi sendo assegurada gradualmente. Primeiro, com a criação de organizações internacionais, como a ONU. Depois, com o comércio. Fazendo pouco caso dos limites nacionais, empresas privadas multinacionais estreitaram os vínculos entre as nações, enriqueceram pessoas e tornaram conflitos bélicos altamente indesejáveis. Do lado negativo, uma parte delas, que se tornou mais forte do que muitos países, também patrocinou ditaduras e pisoteou o meio ambiente.

Cecilia Fabiano/LaPresse/DiaEsportivo/FolhapressCecilia Fabiano/LaPresse/DiaEsportivo/FolhapressO Coliseu de Roma, que foi fechado ao público
Foi justamente a Europa, palco do fascismo, do nazismo e das duas grandes guerras, a região que mais avançou na ideia de apagar fronteiras. Pensada como uma entidade política supranacional, a União Europeia retirou uma porção significativa da soberania dos governantes. Trinta países, incluindo quatro de fora do bloco, assinaram o Acordo de Schengen, que aboliu os postos fronteiriços. Com pessoas circulando livremente em um espaço comum, os rancores nacionalistas do passado esmaeceram-se.

O resto do mundo seguiu na mesma toada. A queda do Muro de Berlim, em 1989, e o fim da União Soviética, em 1991, derrubaram a divisão rígida da Guerra Fria e ampliaram o espaço para os empresários fazerem negócios. Desde então, o volume do comércio internacional foi multiplicado por oito. Fábricas se instalaram em países em desenvolvimento, em busca de mão de obra barata. Mais de 1 bilhão de pessoas deixaram a extrema pobreza. A diferença entre países pobres e ricos diminuiu. Em trinta anos, o PIB per capita dos países em desenvolvimento foi multiplicado por 5, enquanto o dos países ricos, por 2,5. Esse é o saldo econômico da globalização.

Os anúncios sucessivos de fechamento de fronteiras dos últimos dias, na esteira do salve-se quem puder geral, contrariam essa tendência globalizante. O passo atrás já vinha ocorrendo principalmente nos países desenvolvidos, por obra de grupos excluídos. Nas nações ricas, uma boa parte da classe média com baixa escolaridade não consegue se encaixar nos novos empregos do mundo digital e sente nostalgia dos trabalhos industriais do passado. Em 2015, a chegada de 1 milhão de imigrantes à Europa pelo Mediterrâneo também ajudou a semear a xenofobia. Emergiu a corrente denominada antiglobalista, que teve a sua glória no Brexit, a saída do Reino Unido da União Europeia.

As medidas recentes, obviamente, nada têm a ver com ideologia. Depois da tragédia em curso na Itália, a França e a Espanha decretaram o confinamento de seus cidadãos. A Alemanha, como já dito, impôs controles fronteiriços na segunda, 16. Em reunião para discutir as violações ao Acordo de Schengen, a chanceler Angela Merkel — a mesma que disse em 2015 que a Europa tinha obrigação moral em acolher os imigrantes — defendeu a obstrução das fronteiras externas da União Europeia por 30 dias. Levou. Os países da União Europeia deram-se conta de que os serviços de saúde são nacionais, com características e limites próprios, e que cada um deveria cuidar dos seus próprios cidadãos, se o objetivo era conter a pandemia.

Cecilia Fabiano/LaPresse/DiaEsportivo/FolhapressCecilia Fabiano/LaPresse/DiaEsportivo/FolhapressPaciente infectado com Covid-19 é transportado na Itália
A mesma globalização que enriqueceu o mundo imprimiu velocidade de propagação ao novo coronavírus. Sem fronteiras ou com fronteiras mais fluidas e menos controles, o turismo de massa e as viagens de negócio atingiram proporções inimagináveis. Em apenas quatro meses, o novo coronavírus infectou 200 mil pessoas em mais de 170 países (a ONU, para se ter uma ideia, tem 193 membros). O vírus é, assim, quase uma metáfora da globalização. O nome insosso da doença causada pelo vírus, Covid-19, foi pensado de modo a não suscitar preconceito contra os chineses, onde a pandemia começou, e para não atiçar ataques contra os animais que podem tê-la transmitido para os humanos, como os morcegos. Com a gripe espanhola, tudo foi diferente. Daquela vez, a pandemia alastrou-se em três ondas, ao longo de três anos, deixando um saldo macabro de dezenas de milhões de mortos, dadas as condições sanitárias e médicas da época — um número incomparável com os atuais 10 mil óbitos causados pelo coronavírus. Apesar do nome, a epidemia não começou na Espanha. Ela foi batizada assim porque, como o país se manteve neutro na I Guerra Mundial, os meios de comunicação espanhóis eram dos poucos que falavam abertamente sobre a doença. Nos demais, as notícias eram censuradas.

Impedir que notícias sobre o novo coronavírus alcancem a população hoje é praticamente inviável, embora a China tenha tentado censurar as notícias sobre a doença que se instalara na cidade de Wuhan, epicentro da pandemia. Mesmo em países como Cuba e no Irã, os cidadãos conseguem se informar pela internet. É assim que a globalização, ironicamente, ao mesmo tempo que permite que um vírus se alastre rapidamente, também faz parte da solução. Embora o fenômeno tenha se intensificado nos últimos dias, em suas orientações a Organização Mundial da Saúde não recomenda o bloqueio das fronteiras. A justificativa é que, quando as pessoas são impedidas de viajar legalmente, elas acabam fazendo isso de maneira ilegal, o que favorece a propagação da epidemia. O confinamento das pessoas em suas casas, a conscientização da população sobre os métodos de higiene e a correta atuação dos sistemas de saúde são mais efetivos, defende a organização de burocratas confortavelmente instalada na Suíça.

Os governantes, porém, têm preferido não correr riscos. Inclusive porque a maior ameaça é colapsar os sistemas de saúde, se a curva de crescimento continuar a subir abruptamente e não achatar-se com alguma rapidez — o novo coronavírus, que ataca os pulmões e pode causar síndrome respiratória aguda, exige a internação de todos os casos mais sérios, muitos deles em UTI. Se faltam leitos para os seus próprios cidadãos, como atender os de outros países? A portaria brasileira que proíbe a entrada de venezuelanos, por exemplo, cita a “dificuldade de o Sistema Único de Saúde brasileiro comportar o tratamento de estrangeiros infectados pelo coronavírus”.

Há também um ganho político com a decisão de fechar fronteiras. “A percepção geral é a de que os governantes que as fecham serão beneficiados, independentemente do desenvolvimento da epidemia. Mesmo se ocorrer uma calamidade em seus países, eles serão elogiados por terem atuado com firmeza. Caso os efeitos da doença sejam amenizados, a restrição ao fluxo de pessoas será considerada como um dos fatores do sucesso”, diz Nidi Bueno, professor visitante da Escola de Serviço Exterior da Universidade Georgetown.

XinhuaChina teve redução no número de novos casos de infectados
Para além dos reflexos da epidemia sobre os sistemas de saúde pública, os países se preocupam com os danos incomensuráveis — já sentidos duramente — à economia. O avanço da doença e a consequente paralisação das economias, com o confinamento de profissionais de praticamente todos os setores, vêm causando prejuízos maiores do que os da crise de 2008. As Bolsas despencam vertiginosamente e, no Brasil, o dólar ultrapassou em muito a marca dos 5 reais, algo jamais visto desde a adoção da moeda brasileira, em 1994.

A situação é tão grave que os bancos centrais dos Estados Unidos e da União Europeia jogaram logo na mesa pacotes de 1,5 trilhão de dólares e 750 bilhões de euros, respectivamente, para salvar os países do naufrágio. Uma ilustração de que o nacionalismo vive mesmo onde não deveria é o Banco Central Europeu. A presidente do banco, a francesa Christine Lagarde, começou negando ajuda maior à Itália, para indignação de Roma; mudou de ideia coincidentemente quando a França se viu obrigada a confinar a população. Seja como for, até agora os pacotes não funcionaram. O maior problema para o mercado financeiro é precificar a crise. Ou seja, ter um horizonte de quando ela vai acabar. Ninguém sabe, de verdade. O pico dos registros dos casos de infecção na Itália está previsto para a semana que vem — atingido o pico, eles começariam a cair. Se isso não ocorrer, o pânico aumentará. E há ainda os Estados Unidos, que já ultrapassaram a marca dos 10 mil contágios. Como se comportará o coronavírus nos 50 estados americanos, em especial Nova York e Califórnia? O governador da Califórnia ordenou o confinamento, mas o de Nova York resiste. No Brasil, a previsão é a de que o pico será em 20 de abril, mais ou menos. A única boa notícia vem da China, onde as infecções endógenas zeraram, a crer no governo chinês. O que ocorre agora lá é o registro de casos de pessoas que vieram do exterior — o bom vírus à casa torna. Para tentar dar um horizonte ao mercado, Bill Gates, que deixou recentemente o conselho da Microsoft para se dedicar integralmente à filantropia, voltou à cena econômica para dizer que a crise do novo coronavírus duraria, no máximo, mais dez semanas.

O coronavírus passará, assim como passaram tantas outras pestilências. Mas talvez o seu efeito desglobalizante tenha impacto a ser sentido ao longo dos próximos anos. A pandemia fechou fronteiras temporariamente, mas quem sabe tenha gerado a percepção de que a homogeneização promovida pela globalização não está imune a características culturais mais atávicas — como a de comer bichos estranhos que hospedam seres invisíveis perigosos como o da Covid-19. O vírus da desglobalização também deixou evidente que, quando a vida está em risco, as nacionalidades revivem. Ele mostrou ainda que o mundo atingiu o seu limite no turismo de massa e no de negócios. As cidades mais visitadas não suportam mais tanta gente de fora, seja a turismo ou a negócios. Falta controle sanitário de quem visita, a estrutura urbana padece com a enorme população flutuante e os cidadãos locais sentem-se compreensivelmente invadidos. Uma certa dose de desglobalização pode levar a que não se perca o que foi conquistado nos últimos anos e até criar anticorpos contra a xenofobia.

Os comentários não representam a opinião do site. A responsabilidade é do autor da mensagem. Em respeito a todos os leitores, não são publicados comentários que contenham palavras ou conteúdos ofensivos.

500
Mais notícias
Assine agora
TOPO