A prova da intervenção
Como era esperado, o ministro Celso de Mello observou a máxima de Louis Brandeis, integrante da Suprema Corte norte-americana no início do século XX, segundo a qual “o melhor detergente é a luz do Sol”. Nesta sexta-feira, 22, o decano do Supremo Tribunal Federal divulgou praticamente na íntegra o vídeo da reunião ministerial ocorrida há exatamente um mês, em 22 de abril, apontado pelo ex-ministro Sergio Moro como uma das provas da tentativa de interferência do presidente Jair Bolsonaro na Polícia Federal.
O vídeo (assista aqui) faz desmoronar como um castelo de cartas os argumentos esgrimidos por Bolsonaro nas últimas semanas sobre o encontro e mostra que o presidente da República agiu sem constrangimento para fazer valer sua vontade de intervir na PF. O presidente insiste que jamais quis interferir na corporação e que seus rompantes exibidos durante a reunião ministerial tinham como alvo o general Augusto Heleno, ministro-chefe do Gabinete de Segurança Institucional, por revelar temores pela sua segurança pessoal – uma responsabilidade do ministro militar.
O contexto de sua fala, no entanto, deixa claro que as frases “Por isso, vou interferir. Ponto final. Não é ameaça. Não é extrapolação da minha parte. É uma verdade” e “Já tentei trocar gente da segurança nossa no Rio de Janeiro oficialmente e não consegui. Isso acabou. Eu não vou esperar foder minha família toda de sacanagem, ou amigo meu, porque eu não posso trocar alguém da segurança na ponta da linha que pertence à estrutura” fazem óbvia referência à tentativa de ingerência nos expedientes da PF com o único propósito de proteger a si mesmo e a seus familiares. Dado importante e ainda mais revelador das intenções do presidente: no vídeo, ao falar em “interferir”, Bolsonaro olha em direção a Sergio Moro. Como revelou Crusoé há duas semanas e o próprio presidente reconheceu em entrevista na noite desta sexta, em frente ao Palácio da Alvorada, por trás do interesse específico dele na superintendência da PF do Rio, estava o desejo de se livrar das investidas do governador do Rio, Wilson Witzel.
Num outro trecho da reunião, um alterado presidente reclama dos sistemas de informações à sua disposição. “Os ofi…que tem oficialmente, desinforma. E voltando ao tema: prefiro não ter informação do que ser desinformado por sistema de informações que eu tenho”. Aqui, o mandatário abre um parêntese e diz que, ao contrário daquilo que lhe chega às mãos pelas vias oficiais, o sistema particular de informações dele “funciona”. “Sistemas de informações: o meu funciona. O meu particular funciona.”
Em sua decisão de expor a gravação aos raios solares, à exceção de trechos específicos em que há referência a dois países com os quais o Brasil mantém relação diplomática, os EUA e a China, o ministro Celso de Mello não se limitou a examinar a questão da quebra do sigilo do vídeo. O decano dissertou também sobre manifestações de Bolsonaro e de ministros, segundo ele, “incompatíveis com a seriedade das instituições e a respeitabilidade dos signos da República”. Para o magistrado, o vídeo da reunião evidencia “quanto a alguns dos seus participantes, a ausência de decoro, materializada em expressões insultuosas, ofensivas ao patrimônio moral de terceiros, e em pronunciamentos grosseiros impregnados de linguagem inadequada e imprópria a um sodalício composto por importantes autoridades na hierarquia da República”.
O ministro fazia alusão a momentos em que, embaladas por uma profusão de termos de baixo calão, intenções claramente contrárias aos preceitos republicanos e democráticos são explicitadas sem o menor pudor por parte das autoridades máximas do país. Num deles, Bolsonaro propõe armar o povo para se contrapor a autoridades. Noutro, o ministro da Educação, Abraham Weintraub, diz que “botava esses vagabundos todos na cadeia. Começando no STF”. O trecho, classificado por Celso de Mello de “gravíssima aleivosia”, evidenciou, segundo o magistrado, “além do seu destacado grau de incivilidade e de inaceitável grosseria, possível delito contra a honra “ (como o crime de injúria).
Esse particular, somado à nota produzida em tom de ameaça nesta sexta-feira, 22, pelo ministro do GSI, general Augusto Heleno, ampliou o desconforto institucional já existente entre o governo e o STF. No documento sob o título “Nota à nação brasileira”, o ministro tirou a farda do closet para peitar a corte, dizendo que eventual pedido de busca do telefone celular de Jair Bolsonaro “poderá ter consequências imprevisíveis para a estabilidade nacional”. Em um ato processual corriqueiro, Celso de Mello havia remetido horas antes à PGR, para parecer, um pedido formulado por parlamentares de oposição para apreender os aparelhos do próprio Bolsonaro e de seu filho 02, o vereador Carlos Bolsonaro. O presidente reproduziu, na sequência, em suas redes sociais, a nota-ameaça de Heleno.
Do ponto de vista político, ainda não se sabe se a divulgação do vídeo dará combustível para novos pedidos de impeachment contra o presidente – no Congresso, eles já somam 35. A antecipação pela AGU das partes capitais da reunião amorteceu um pouco o impacto das declarações do presidente. O vídeo pode não ser, em si, a “bala de prata” que se esperava, principalmente após o próprio Moro tachá-lo de devastador, mas o contexto – e, especialmente, a cronologia dos fatos, desde as primeiras pressões de Bolsonaro, em agosto passado, até o pedido de demissão de Moro, passando pelas trocas de mensagens anexadas aos autos – dá força à denúncia do ex-ministro naquilo que mais importa para o inquérito em curso: não só houve sucessivas tentativas de interferir na PF, sobretudo para proteger a família do presidente, como a mudança acalentada por ele de fato ocorreu.
“A verdade foi exposta”, afirmou Moro logo após a liberação do vídeo. A oposição, obviamente, já começa a falar em CPI, conhecido foro em que todo mundo sabe como a coisa começa, mas nunca como termina. A depender do desenlace, abraçar o volúvel Centrão e transformar o bloco de partidos “acima de tudo e todos” os demais pode até assegurar ao presidente a sobrevida, mas pode não ser suficiente para blindá-lo para todo o sempre.
Já há no Congresso quem diga que Jair Bolsonaro tanto jactou-se de atleta, que virou um presidente “em exercício”. Ou seja, está exercendo a Presidência “por enquanto”. Mesmo antes da divulgação do vídeo, qualquer dúvida sobre a versão inverossímil disseminada por Bolsonaro e seus auxiliares, incluindo os generais no governo, de que ele estava era preocupado com a qualidade de seus guarda-costas já seria dirimida pelo fato inconteste de que, em 26 de março, Bolsonaro promoveu o chefe de sua segurança pessoal, André Laranja de Sá Corrêa, a general de brigada, transferindo-o para o comando de uma brigada no Rio Grande do Sul.
Para piorar a situação do presidente, o atual número 2 da Polícia Federal, Carlos Henrique Oliveira de Sousa, forneceu ao longo da semana mais uma peça do quebra-cabeças capaz de enredar ainda mais Bolsonaro na trama investigada pelo STF. O diretor-executivo da PF disse em novo depoimento prestado na terça-feira, 19, que o todo-poderoso da Agência Brasileira de Inteligência, Alexandre Ramagem, tramava a troca da chefia da superintendência da PF no Rio de Janeiro antes de ser nomeado pelo presidente para o comando da corporação – ato posteriormente tornado sem efeito por liminar do ministro Alexandre de Moraes, do STF. Ou seja, mexer na chefia da PF do Rio era tão essencial para o governo que Ramagem, mesmo antes de oficializado, já trabalhava nos bastidores para promover a mudança e, com isso, atender ao desejo nutrido por Bolsonaro.
Somado aos depoimentos já prestados, o vídeo compõe um quadro em que o avanço do inquérito se impõe. É, certamente, mais um problema para o procurador-geral da República, Augusto Aras, que nos bastidores dá sinais de que poderá mandar a investigação precocemente para o arquivo. A intervenção de um presidente da República, qualquer que seja ele, em um aparato de segurança do estado em proveito próprio não pode ser tratado como algo trivial.
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