Câmara dos Vereadores-RJO segundo filho do presidente figura em escritura como representante de mulher que vendeu casa para Jair Bolsonaro

Carlos, o procurador

A curiosa participação do filho do presidente em uma operação imobiliária que marcou o início do salto patrimonial da família Bolsonaro
28.06.19

Carlos Bolsonaro foi o vereador mais votado no Rio de Janeiro em 2016, quando conquistou o quinto mandato consecutivo, mas se tornaria um político realmente poderoso longe da tribuna, ao comandar a campanha do pai pelas redes sociais no ano passado e – mesmo sem cargo no governo – esbanjar influência ao ponto de sua opinião pesar até na demissão de ministros. Outra face de Carlos, desconhecida do público, aparece agora em documentos, obtidos por Crusoé, sobre o negócio imobiliário que representou o grande salto na vida financeira de Jair Bolsonaro.

Em novembro de 2002, o então deputado federal e a sua segunda mulher, Ana Cristina Valle, selaram num cartório do centro do Rio a compra de uma casa por 500 mil reais, ou 1,4 milhão em valores atuais. Localizado na Barra da Tijuca, Zona Oeste do Rio, com 515 metros quadrados, o imóvel valia mais que o total de bens, cerca de 420 mil reais, declarados à época por Bolsonaro à Receita Federal.

A negociação começara três meses antes, em agosto, com a assinatura da chamada escritura de promessa de compra e venda. Segundo esse documento, Bolsonaro e Ana Cristina deram um sinal de 90 mil reais (não ficou esclarecido se foi em espécie) e um cheque de 160 mil reais da agência do Banco do Brasil localizada na Câmara, em Brasília — e ainda assinaram uma nota promissória de 250 mil reais que venceria, em parcela única, no mês de dezembro daquele ano.

O documento registrado em cartório: agora, Carlos diz que não participou do “negócio jurídico”
Ao fechar esse acordo, a vendedora do imóvel, a economista Maria Celina Magalhães, nomeou dois procuradores para assinar no cartório a escritura definitiva, que transferiria a casa para o nome do casal Bolsonaro, tão logo ocorresse o pagamento da promissória. A surpresa é que os dois procuradores eram gente de extrema confiança não de Maria Celina, mas da intimidade de Bolsonaro. Ela entregou a tarefa a Carlos, então com 19 anos e recém-eleito vereador, e ao capitão da reserva do Exército Jorge Francisco, que chefiou o gabinete do então deputado.

Jorge Francisco morreu de infarto em abril de 2018, o que levou um Bolsonaro emocionado, às lágrimas, a cancelar a agenda de sua então campanha a presidente. Na última segunda-feira, 24, na dança de cadeiras no governo, o filho de Francisco assumiu a Secretaria-Geral da Presidência. O major Jorge Antônio de Oliveira se tornou um dos ministros mais próximos de Bolsonaro. Ele mantém uma relação de amizade com os filhos do presidente, o que será importante para se manter no cargo.

Além de capitão da reserva, Francisco era advogado com traquejo para atuar como procurador, mas quem compareceu ao cartório, em novembro de 2002, para fechar a transação foi apenas Carlos. Diante da escrevente, como mostram os registros, ele atestou que Bolsonaro e a mulher já tinham quitado a promissória de 250 mil reais, mas não detalhou em qual data nem informou se foi por meio de depósito bancário, cheque ou dinheiro vivo. Em seguida, no lugar da vendedora Maria Celina, ele assinou a escritura que transferiu a casa para o nome do pai e da madrasta.

Adriano Machado/CrusoéAdriano Machado/CrusoéJair Bolsonaro: imóvel comprado valia mais que todos os bens declarados por ele
Os documentos que Crusoé levantou não esclarecem como Bolsonaro e Ana Cristina liquidaram a nota promissória e o sinal de compra, de 90 mil reais. Só fica claro o pagamento em cheque de 160 mil reais do Banco do Brasil. Os cartórios são obrigados a comunicar à Receita Federal o valor total das transações. Também costumam detalhar nas escrituras a forma de pagamento, incluindo até o número do cheque ou comprovante de depósito bancário. Isso é uma prática comum, mas não há exigência prevista em lei, explica o presidente da Comissão de Direito Imobiliário do Instituto dos Advogados de São Paulo, Everaldo Augusto Cambler. Ele falou sobre as regras gerais do mercado, sem analisar especificamente o caso do hoje presidente. Vendedora da casa, a economista Maria Celina morreu em dezembro de 2004. O viúvo, o economista Edison Carlos Magalhães, diz não se recordar nem dos procuradores nem da forma de pagamento. Ele afirma que a mulher cuidou sozinha da transação.

Pouco antes do negócio imobiliário, ao registrar a sua candidatura em 2002, Jair Bolsonaro informara à Justiça Eleitoral possuir bens de 419,2 mil reais. Os itens mais valiosos eram uma outra casa com valor declarado de 70 mil reais na vila de Mambucaba, em Angra dos Reis, na costa fluminense, o apartamento de 75 mil reais que ele tem em Brasília e outro apartamento de 90 mil reais no primeiro andar de um prédio no bairro de classe média do Maracanã, Zona Norte do Rio, onde morava com Ana Cristina. Entre junho e agosto de 2002, o então deputado tirou do próprio bolso 14,5 mil reais em dinheiro vivo para a sua campanha de reeleição, um gasto considerável, pois o salário de um parlamentar era de 8 mil àquela altura.

Logo depois, em setembro, o hoje presidente da República vendeu o apartamento onde morava no Maracanã por 165 mil reais, pagos em dois cheques, e assumiu o compromisso de sair do imóvel até novembro. A quantia levantada correspondia a apenas um terço do valor de 500 mil reais da casa nova que ele e Ana Cristina comprariam, tendo Carlos como procurador, que ainda se somaria à despesa extra de 17,4 mil reais com o Imposto sobre Transmissões de Bens Imóveis, o ITBI. Não havia informações públicas sobre a situação financeira de Ana Cristina àquela época. Uma consulta a nomeações na Câmara dos Deputados mostra que, enquanto acertava a compra do imóvel, Bolsonaro deu uma boa ajuda à família dela.

Hudson Corrêa/CrusoéHudson Corrêa/CrusoéA entrada do condomínio onde fica a casa, na Barra da Tijuca: Bolsonaro passou a propriedade adiante
Em 7 de outubro, um dia após ser reeleito, o então deputado empregou em seu gabinete Henriqueta e Andrea Valle, respectivamente a mãe e a irmã de Ana Cristina, que receberiam salários entre 2 mil e 2,5 mil reais, em valores da época. O pai de Ana Cristina, José Cândido Procópio, também logo conseguiria uma nomeação, mas no gabinete do então deputado estadual Flávio Bolsonaro, o filho mais velho, que tomara posse para o primeiro mandato em fevereiro de 2003.

Hoje senador, Flávio enfrenta uma investigação do Ministério Público do Rio sobre lavagem de dinheiro sob suspeita de praticar o chamado “rachid”, como é conhecido o velho hábito de parlamentares de reter para si parte do salário de seus assessores. A Promotoria de Justiça apura se o então deputado estadual se apropriava das verbas para comprar imóveis. O inquérito teve início após a descoberta de que Fabrício Queiroz, ex-assessor de Flávio, movimentara sem explicação 1,2 milhão de reais em sua conta bancária, de 2016 a 2017. Queiroz caiu na malha do Coaf (Conselho de Controle de Atividades Financeiras) e, desde então, o MP desconfia de que ele era o responsável por coletar a parcela dos salários devolvida pelos colegas.

Como parte da investigação, em abril passado a Justiça do Rio determinou a quebra do sigilo bancário de nove empresas e 86 pessoas, entre elas Flávio e vários ex-funcionários de seu antigo gabinete. A lista de ex-assessores atingidos pela medida judicial inclui José Cândido e Andrea, o pai e a irmã de Ana Cristina. Nomeada por Jair Bolsonaro em 2002, Andrea se transferiu alguns anos depois para o gabinete de Flávio na Assembleia do Rio.

Nas eleições de 2006, Bolsonaro omitiu da Justiça Eleitoral a compra da casa de 500 mil reais. Declarou bens de 433 mil, quase a mesma coisa de 2002, sem listar o imóvel. Tempos depois, em setembro de 2009, ele vendeu a casa por 1,1 milhão de reais (2 milhões em valores atuais). Embolsou o dinheiro sozinho, pois se divorciara de Ana Cristina e, com a partilha de bens, tornou-se o único proprietário. Na campanha para presidente do ano passado, Bolsonaro informou ter um patrimônio de 2,2 milhões. Agora é dono de duas residências num condomínio também na Barra da Tijuca. O gabinete do filho do presidente respondeu às perguntas de Crusoé sobre a transação com uma única frase: “O vereador Carlos Bolsonaro não participou deste negócio jurídico”. Jair Bolsonaro também foi procurado, mas até a publicação desta reportagem não havia se manifestado.

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