MarioSabino

Neruda

10.01.20

Pablo Neruda, o poeta chileno. Quem ainda o lê? Eu leio. Sempre relevei o seu comunismo militante. Acho que julgar a obra de Neruda por suas preferências ideológicas é um anacronismo.

Na verdade, releio de vez em quando um único poema dele. Eu o fiz ontem à noite, depois de um acontecimento triste. Trata-se do Poema Número 20, do livro Veinte Poemas de Amor y Una Canción Desesperada. Neruda o escreveu quando tinha justamente vinte anos, há quase um século — e eu, nos meus dezessete anos, já o adivinhava como antecipação:

 

Puedo escribir los versos más tristes esta noche.

 

Escribir, por ejemplo: «La noche está estrellada,

y tiritan, azules, los astros, a lo lejos».

 

El viento de la noche gira en el cielo y canta.

 

Puedo escribir los versos más tristes esta noche.

Yo la quise, y a veces ella también me quiso.

 

En las noches como ésta la tuve entre mis brazos.

La besé tantas veces bajo el cielo infinito.

 

Ella me quiso, a veces yo también la quería.

Cómo no haber amado sus grandes ojos fijos.

 

Puedo escribir los versos más tristes esta noche.

Pensar que no la tengo. Sentir que la he perdido.

 

Oír la noche inmensa, más inmensa sin ella.

Y el verso cae al alma como al pasto el rocío.

 

Qué importa que mi amor no pudiera guardarla.

La noche está estrellada y ella no está conmigo.

 

Eso es todo. A lo lejos alguien canta. A lo lejos.

Mi alma no se contenta con haberla perdido.

 

Como para acercarla mi mirada la busca.

Mi corazón la busca, y ella no está conmigo.

 

La misma noche que hace blanquear los mismos árboles.

Nosotros, los de entonces, ya no somos los mismos.

 

Ya no la quiero, es cierto, pero cuánto la quise.

Mi voz buscaba el viento para tocar su oído.

 

De otro. Será de otro. Como antes de mis besos.

Su voz, su cuerpo claro. Sus ojos infinitos.

 

Ya no la quiero, es cierto, pero tal vez la quiero.

Es tan corto el amor, y es tan largo el olvido.

 

Porque en noches como ésta la tuve entre mis brazos,

Mi alma no se contenta con haberla perdido.

 

Aunque éste sea el último dolor que ella me causa,

y éstos sean los últimos versos que yo le escribo.

Continuo a reler o poema de Neruda mesmo sabendo que ele abandonou a mulher e a filha com hidrocefalia que viria a morrer com oito anos. Mesmo sabendo que ele violou uma moça pobre no Ceilão (atual Sri Lanka), onde serviu como diplomata cinco anos depois de escrever o Poema Número 20 — fato relatado na autobiografia Confesso que Vivi. De etnia tamil, da casta dos párias, ela encarregava-se de limpar o banheiro do chileno — e não é preciso explicar o que a função significava naquele tempo. Neruda escreveu: “Certa manhã, muito determinado, segurei-a firmemente pelo pulso e olhei-a no rosto. Não havia idioma com a qual eu pudesse falar com ela. Deixou-se ser guiada por mim sem um sorriso e logo estava nua na minha cama. Sua figura esbelta, seus quadris cheios, as transbordantes copas dos seus seios, a faziam igual às milenárias esculturas do sul da Índia. Foi o encontro de um homem com uma estátua. Permaneceu o tempo todo com os olhos abertos, impassível. Fazia bem em desprezar-me. A experiência não se repetiu.”

Em 2018, quiseram batizar o aeroporto de Santiago com o nome de Neruda. Houve uma grita das feministas e adjacências. Eu estaria nas adjacências esbravejando contra também. Entendo, indigno-me, mas nem sempre é impossível separar o artista dos seus pecados, assim como não é obrigatório perdoar o indesculpável a fim de admirar a sua obra. “É na arte que o homem se ultrapassa definitivamente.” Simone de Beauvoir. Eu não perdoo Neruda, nada o redime, mas o seu poema é uma flor no esterco. Continua a ser flor, fazer o quê?

Eso es todo. A lo lejos alguien canta. A lo lejos.

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