O circo e a derrota histórica de Renan
Foi um espetáculo quase circense. Depois de mais de 14 horas, em dois dias, o Senado finalmente conseguiu concluir a eleição para escolher seu novo presidente. O resultado foi, digamos, surpreendente. O senador Davi Alcolumbre, do Democratas do Amapá, conseguiu uma proeza ao derrotar o notório Renan Calheiros, uma espécie de Golias que já anos manda e desmanda na casa e tentava presidi-la pela quinta vez. O resultado foi anunciado às 18h55 deste sábado, 2. Ao final, Alcolumbre obteve 42 votos, um a mais que o necessário para resolver a disputa. Renan, ao sentir o cheiro da derrota, anunciou sua desistência e foi embora do plenário.
A eleição foi marcada por uma série de episódios que ajudaram a afundar ainda mais a imagem da classe política. Teve urna fraudada, roubo de uma pasta com documentos da mesa diretora, xingamentos em profusão e vaias. Por pouco não houve troca de socos.
A vitória de Alcolumbre é repleta de significados. Primeiro, pela própria derrota de Renan, tido como o franco favorito. Depois, pela vitória de um movimento na opinião pública pelo voto aberto, que, embora não tenha sido oficialmente instituído nesta eleição, acabou adotado informalmente por grande parte dos senadores, a despeito de uma decisão do Supremo Tribunal Federal, e influiu decisivamente no processo de decisão. Além disso, o resultado fortalece o ministro da Casa Civil, Onyx Lorenzoni, amigo de Alcolumbre e mentor intelectual da candidatura vitoriosa.
Desde o início do governo, Onyx amargava um carimbo na testa. Era tratado como um ministro fraco, com baixo poder de influência junto ao Congresso. Para se ter uma ideia, o ministro da Economia, Paulo Guedes, tinha simpatia por Renan. Achava que ele teria mais força para conduzir as reformas econômicas que o governo Jair Bolsonaro pretende implementar. A vitória de Alcolumbre dá a Onyx um papel mais destacado na empreitada, prioridade número um do governo.
O resultado no Senado coroou a estratégia, muitas vezes errática, do grupo de senadores que nas últimas semanas articulou possíveis caminhos para derrotar Renan. O principal estratagema era conseguir que a eleição ocorresse com voto aberto, algo que, nos cálculos dos senadores, tiraria pelo menos dez votos de Renan. O plano foi colocado em prática ainda na sexta-feira, primeiro dia da nova legislatura, quando a escolha do novo presidente deveria ser definida.
A ideia era que Alcolumbre, por ser o único senador remanescente da Mesa Diretora anterior, presidisse a sessão e, assim, submetesse ao plenário a decisão sobre o voto aberto. Assim foi feito. O senador do Amapá ficou na cadeira por sete horas, seguidas, sem arredar pé, a despeito da pressão dos renanzistas. Conseguiu pautar o voto aberto, que acabou aprovado por 50 senadores. A tropa de Renan, que considerava o voto secreto uma arma importante para eleger o velho senador, reagiu. O principal argumento era que Alcolumbre não poderia presidir a sessão por ser candidato e estaria, assim, operando em causa própria.
O clima no plenário era de tensão. Renan, por mais de uma vez, discursou enervado. A certa altura, quase foi às vias de fato com o tucano Tasso Jereissati, que abriu mão de ser candidato e apoiou Alcolumbre. Era só o começo do festival de cenas deprimentes no plenário. “Seu merda”, disse Renan a Tasso, que revidou chamando o colega de ladrão. Na tentativa de interditar o plano de Alcolumbre e dos demais senadores do núcleo anti-Renan, a senadora Kátia Abreu subiu na mesa da presidência e, aos gritos, tomou a pasta de documentos de Davi Alcolumbre, que presidia a sessão. Com isso, por um longo período ela conseguiu impedi-lo de responder a questões de ordem que deveriam preceder o início da votação.
Com isso, o sábado amanheceu com o cenário aparentemente favorável ao cacique alagoano: ele teria um aliado no comando da sessão e a votação seria secreta, facilitando a vida das excelências que desejavam escolhê-lo, mas temiam a pressão da opinião pública caso tivessem de anunciar publicamente sua opção. Logo cedo, os anti-Renan se reuniram no gabinete de Jereissati para pensar na melhor reação. Os cerca de vinte senadores combinaram que respeitariam a decisão de Toffoli, mas defenderiam que o voto ocorresse por meio de cédula de papel, e não por via eletrônica, como é usual. Isso forçaria muitos a abrirem as cédulas expondo seus votos.
Havia outro combinado: candidaturas anti-Renan se afunilariam em torno de Davi. Horas depois, com a sessão iniciada, o plano foi posto em prática, ainda sem a certeza de que teria êxito. Major Olímpio, Simone Tebet e Alvaro Dias anunciaram que não mais seriam candidatos. Só fizeram isso, porém, depois de registrarem suas candidaturas, o que lhes dava o direito a discursar contra Renan e, ao mesmo tempo, incentivar os demais senadores a mostrarem as cédulas antes de depositá-las na urna.
Três senadores do grupo, contudo, mantiveram suas candidaturas. Esperidião Amin, do PP, não deixou a corrida porque o presidente do partido, Ciro Nogueira, é aliado de Renan e não topava o apoio a Davi. O senador Reguffe, sem partido, quis manter seu nome para aproveitar a vitrine da eleição: queria divulgar sua agenda de enxugamento da máquina administrativa do Senado. O novato Angelo Coronel, do PSD, seguiu o mesmo caminho, embora tenha aproveitado seus minutos de exposição apenas para afagar os colegas de mandato. Fernando Collor, amigo e aliado de Renan, também permaneceu na disputa.
A sessão já corria em clima relativamente pacífico quando, no meio da tarde do sábado, já durante a apuração, descobriu-se uma fraude. O Senado tem 81 senadores, mas havia 82 votos na urna. Alguém havia votado duas vezes – o 82º voto era para Renan, descobriu-se logo depois. O clima esquentou. O grupo anti-Renan acusou José Maranhão e o também emedebista Fernando Bezerra, que o auxiliava na condução da sessão, de terem fraudado a votação. “É uma fraude, não pode ter dois do MDB conduzindo a sessão”, esbravejava o senador Otto Alencar, do PSD da Bahia. Para piorar, Maranhão rasgou os dois votos a mais e colocou os papéis picados no bolso. “Eu tenho a impressão que foi um equívoco”, tentou contemporizar.
Surgiu então a dúvida: o que fazer? Anular os dois votos e contabilizar o restante ou partir para uma nova votação? Após muito debate, ficou decidido que haveria um novo escrutínio. Rapidamente, foi providenciada uma máquina de picotar papel para dar fim aos votos da primeira eleição. Àquela altura, ante a fraude escandalosa, o voto aberto havia ganhado ainda mais força. Os eleitores, pela internet, aumentaram a pressão. Funcionou. O PSDB, por exemplo, recomendou que todos os seus senadores abrissem o voto. Flávio Bolsonaro, o filho do presidente que na primeira votação mantivera o segredo sobre o seu escolhido, anunciou voto em Alcolumbre. O anúncio do primogênito do presidente se mostraria um lance decisivo.
Renan, que acompanhava toda a sessão na primeira fileira, onde têm assento os senadores de Alagoas, ficou ainda mais tenso. Não parava de tremer as pernas e de balançar o celular com as mãos. Até que foi à tribuna e anunciou que estava retirando sua candidatura. “Esse processo não é democrático”, esbravejou. “Para demonstrar que esse processo não é democrático, retiro minha candidatura.”
Aliados de Alcolumbre abraçaram o virtual eleito. Simone Tebet, preterida por Renan na disputa interna no MDB, estava efusiva. Chegou a chorar. “Não teve macho, mas teve mulher para derrubar esse coronel”, disse, sorridente, abraçando uma amiga. Faltava pouco para as 19 horas quando os números foram anunciados. Em seguida, coube ao renanzista José Maranhão declarar oficialmente a vitória de Davi Alcolumbre.
O novo presidente do Senado, que interrompe a histórica hegemonia do MDB no comando da casa, voltou à cadeira de presidente, desta vez em definitivo. Agradeceu os senadores que confabularam nas últimas semanas contra Renan e, lendo o discurso da vitória, prometeu não retaliá-lo. “Espero e confio que possamos entregar esta casa, ao final do biênio que se inicia, com o país retomando os trilhos do desenvolvimento e da prosperidade, enfrentando as reformas complexas que, com urgência, nosso país reclama”, afirmou, acrescentando que o Senado precisa ouvir a voz das ruas. E muitos senadores precisam, também, tomar vergonha. Não podem transformar o Senado em circo, para tentar fazer o eleitor de palhaço.
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